Rui Peralta,
Luanda
Ex-Jugoslávia,
1991-1999, Ruanda, 1994, Serra Leoa, 1991-2002. Se revermos muitas das imagens
televisivas que nos mostraram os corpos, concluiremos que muitos desses corpos
eram de mulheres. Aliás não foi por acaso que o Tribunal Penal Internacional,
em Haia, criou tribunais penais internacionais ad-hoc estabelecendo
jurisprudência internacional para casos de violação como arma de guerra,
violação como tortura, violência sexual massiva como acto de terrorismo. Toda
esta centralização na mulher teve como origem os factos ocorridos nos conflitos
atrás referidos. Esta lista poderia continuar se nos focarmos nas guerras no
Médio-Oriente, Afeganistão, Iraque, Somália, Líbia, Síria, Iémen, ou no
comportamento dos Capacetes Azuis da ONU em alguns dos conflitos mencionados.
O discurso oficial dos USA após o 11 de Setembro remete a tese do Choque de
Civilizações, uma tese do senhor Huntington, que tinha como argumento o
seguinte: os padrões geopolíticos da guerra-fria seriam reestruturados em torno
do conflito cultural entre o Oeste, predominantemente cristão e o Mundo
Islâmico, apresentados como intrinsecamente opostos e incompatíveis. Um
importante e imponente mecanismo de doutrinamento é colocado em marcha após o
11 de Setembro. Foram desenhadas novas estratégias de domínio cultural
local-global (os USA estenderam o compromisso de “luta contra o terror” a todo
o mundo, fazendo que essa narrativa converta as restantes sociedades e se
tornasse a narrativa dominante, justificação e legitimação da hegemonia
norte-americana) e foram efectuados processos internos de militarização da vida
quotidiana e dos meios de comunicação social, tornados em instrumentos de
propaganda.
A NATO, na tentativa hegemónica unipolar, iniciou um processo de
re-territorialização (á maneira imperial, pré-capitalista) cultural, assente na
reconstrução do outro. Essa mensagem foi massificada, apresentando-se á opinião
pública como ética dominante. O “outro” foi deslocalizado, ilegalizado. Passou
a ser um intruso capaz de introduzir-se nas fronteiras imperiais dos USA e da
fortaleza europeia sem vistos (e em alguns casos já estava no interior das
fronteiras, devido aos “acidentes históricos”), mantendo amplas redes de
financiamento e de suporte a “actividades ilícitas”. Esta lógica de domínio
atinge o seu absurdo fora dos espaços centrais quando é assumida pelos Estados
das periferias (África é um exemplo de bom aluno que fez os trabalhos de casa,
mas só nesta matéria. As oligarquias africanas são adversas á
internacionalização - alérgicas ao outro - e teimam em manter as suas
fronteiras-fortalezas, onde funcionam milhares de funcionários e toneladas de
requerimentos, carimbos, taxas e papelada diversa). Nesta perspectiva o
Ocidente legitima a violência, bombardeando alguém, sem saber a quem. A
geopolítica ocidental passou a definir territórios e fronteiras a esse alguém
indefinido e não identificado. O Afeganistão recebeu o primeiro golpe, depois
veio o Iraque, depois a Síria, a Líbia…
Enquanto no exterior se actua geopoliticamente, no interior das fronteiras
ocidentais actua-se de forma identitária, identificando-se com precisão o
inimigo (sempre com uma aparência determinada – o islâmico, o/a homossexual, o
ocidentalizado, o emigrante, o imigrante, etc. - e esteticamente marcado) e
revia-se a legislação antiterrorista. Criou-se um novo imaginário. O outro
passou a ser o inimigo, o eixo do mal. Como esta violência tornou-se corpórea,
estética, despertou outras violências, todas com base no mesmo princípio. Por
isso as mulheres foram afastadas deste eixo geopolítico, patriarcal a Ocidente
e a Oriente, assim como no centro e na periferia. Tornaram-se, elas, as
mulheres, objecto deste conjunto de violências que atravessam de forma
transversal as relações internas e internacionais, pessoais e interpessoais,
profissionais e familiares.
Fez-se crer, durante a invasão ao Afeganistão, que o objectivo era derrubar o
regime fascistóide dos Taliban e libertar as mulheres afegãs das suas burcas.
Imaginem o absurdo de ver os marines norte-americanos em missão feminista!
Esqueceram-se de que os aliados sauditas, por exemplo, espezinham a identidade
feminina. Assim como nunca deixaram fazer ouvir as súplicas da Associação
Revolucionária das Mulheres Afegãs (RAWA) para acabarem com os bombardeamentos.
A militarização da sociedade, a ingerência e o uso da violência nas relações
internacionais, implica o destroçar da cidadania, a revitalização de conceitos
machistas próprios das sociedades patriarcais. Territorialidade, espaço,
energia, vitalidade, heroicidade, segurança, Poder, guerra, são todas
interpretadas nesta perspectiva machista, patriarcal, geradora de violência
sobre o outro. Por isso passa despercebida, no estudo das Relações
Internacionais, trabalhos e teses femininas, como a da geografa politica
Cynthia Enloe, ou o pacifismo feminista da Liga Internacional das Mulheres para
a Paz e Liberdade, fundado em Haia, no ano de 1915, ou os diversos trabalhos
produzidos por grupos como as Mulheres em Zonas de Conflito, por exemplo, todos
eles questionando a concepção militarista das relações internacionais, da
segurança nacional, da geopolítica e da geoestratégia.
Os estudos tradicionais geopolíticos tornaram invisíveis as mulheres e
mantiveram as suas propostas na invisibilidade. Cobriram-nas com um véu, assim
como se encobre a violência sobre as mulheres nos locais de trabalho, a
descriminação salarial ou a violência sobre as mulheres exercida no seio da
família. Encobre-se, torna-se invisível e inaudível, no lar, nas universidades,
nas fábricas, nas escolas, no campo, nas relações sociais, na História, onde se
realça coragem e dignidade dos homens e o sacrifício das mulheres, eternas na
dor do parto, onde se assumem como mães de homens e de mulheres.
Como
se a dignidade fosse uma questão masculina e o sacrifício uma tarefa das
mulheres…
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