domingo, 21 de fevereiro de 2016

O RIDÍCULO MATA




Vinte e sete chefes de governo de países da União Europeia deram a David Cameron o que ele queria. Tanto os que se dizem federalistas, como os que não sabem o que são, como os que só pensam em austeridade aceitaram levantar entraves à famosa “livre circulação” de pessoas, outorgaram o direito de veto ao santuário neoliberal da City, permitiram a institucionalização de um apartheid social para os imigrantes e aceitaram que o Reino Unido esteja isento dessa gloriosa máxima da farsa continental que obriga os Estados membros a “trabalhar por uma Europa cada vez mais estreita”.

“Vivam e deixem-me viver”, terá mendigado o primeiro-ministro britânico aos seus confrades, naquela que para o fervoroso diário federalista El País foi a cimeira “mais ignominiosa” da história da União Europeia. Do “efervescente” italiano Matteo Renzi, a Hollande, Merkel e cada um dos 27, ninguém escapa à furibunda pena do articulista, a imagem do estado de desespero em que caíram os fundamentalistas da União Europeia tal como ela é, pressentindo a degradação acelerada que tem exame decisivo no próximo 23 de Junho, a data do referendo no Reino Unido.

Falar em acordo alcançado em Bruxelas é uma falácia para esconder um desfecho anunciado, mais pormenor menos pormenor, no qual tudo é concedido a Cameron para que este, na qualidade de “europeu novo” convertido por conveniência, faça campanha convicta pelo “sim” e consiga que a União escape a uma deserção que lhe será fatal. Ao pé de um “ brexit”, a hipotética saída da Grécia, que esteve em agenda há uns tempos, é um meigo sopro comparado com um furacão.

Como se previa, Cameron conseguiu dar xeque-mate à livre circulação de pessoas – uma espécie de mandamento sagrado fundador da União – permitindo-lhe levantar entraves à entrada de imigrantes, ainda que cheguem de países comunitários. Como? O governo britânico pode suspender os direitos sociais dos novos imigrantes durante quatro anos após o estabelecimento de contratos para desempenho de trabalhos menos qualificados, política esta que pode ser estendida durante sete anos.

Os dirigentes europeus permitiram também que a City, a praça de negócios mundial e um santuário da extorsão neoliberal, tenha direito de veto sobre decisões da União. Na prática, se a City discordar de uma medida de instâncias europeias, incluindo o Parlamento Europeu, o assunto regressa a Bruxelas para ser corrigido pela Comissão.

A norma fundadora essencial, que obriga os governos dos Estados membros a empenharem-se numa “Europa cada vez mais estreita”, não se aplicará doravante ao Reino Unido, concederam os 27. Isto é, Cameron conseguiu, ainda que a resposta no referendo seja “sim”, que o Reino Unido esteja na União Europeia sem estar. Ou, como dizem os “europeístas” sem mácula, o primeiro-ministro britânico arrancou o privilégio de usufruir do melhor de dois mundos.

Também o Parlamento Britânico foi contemplado com direito de veto, tornando-se assim mais Parlamento que os restantes 27. A cimeira aceitou que qualquer projecto legislativo europeu barrado por 55% dos deputados britânicos terá que regressar a Bruxelas para ser emendado. Quanto aos outros parlamentos, que se submetam à ortodoxia dos tratados, que aliás não foram referendados pela maioria dos povos.

Com tudo isto, o Conselho Europeu pagou um preço muito alto apenas para ver. Porque existe a noção de que, apesar das cedências e da conveniente conversão de Cameron de eurocéptico em europeísta, será difícil que estas cedências se repercutam no comportamento do eleitorado britânico.

Ao contrário do que apregoam os instrumentos de propaganda europeístas, a oposição dos britânicos à continuação na União Europeia não é um exclusivo das correntes populistas, neofascistas e das eurocépticas no interior do Partido Conservador. O descontentamento é transversal à sociedade, abrange sectores de todas as correntes políticas, o que se reflecte na existência de três frentes sociais e políticas plurais que irão fazer campanha pelo “não”. Não é apenas a questão da soberania que está em causa, da qual podem queixar-se todos os povos da União Europeia, com maioria de razão os dos países do euro - o que nem sequer é o caso do Reino Unido. O que vem ao de cima nos temas em debate entre os britânicos são as consequências gravosas das políticas de austeridade, das privatizações destruindo os serviços públicos, da eliminação de direitos e sociais e laborais decorrentes da política de integração europeia cumprindo a agenda neoliberal, da ampliação brutal do fosso das desigualdades.

Os factores de caos social enumerados são comuns e toda a União e não atingem apenas os britânicos. Por razões próprias, são os britânicos que agora os levantam e diagnosticam pondo o dedo na ferida: eles resultam da política europeia errática e antissocial. Daí que os dirigentes europeus estejam com os nervos em franja perante o referendo britânico e tenham cedido de maneira a abrir uma excepção, um precedente de que irão arrepender-se amargamente. Se o Reino Unido continuar, outros poderão reclamar tratamento de excepção quando entenderem; se o Reino Unido sair, outros poderão seguir-lhe o rasto.

Os chefes de governo da União Europeia estão em vias de perceber que o ridículo da farsa a que se prestaram mata. A vítima será a própria União.

*José Goulão - Mundo Cão

CRISES E NARRATIVAS



Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião

Realizou-se no dia 17 de fevereiro, no ISCTE, um seminário sobre "As Narrativas da Crise e a Crise das Narrativas?", organizado pelo DINÂMIA"CET do ISCTE, pelo Observatório sobre Crises e Alternativas do CES-UC (a que pertenço) e pelo Sindicato dos Jornalistas. O seminário resultou de um projeto de investigação, que analisou as narrativas de uma das instituições da troika (o FMI) e de jornalistas económicos na imprensa portuguesa (crónicas e editoriais)1, e nele participou um amplo e diversificado conjunto de oradores.

Portugal atravessa um período político muito sensível e são notórios condicionalismos e dependências resultantes da nossa condição periférica e do peso diminuto do país na União Europeia (UE). Esta surge-nos carregada de problemas graves que não estão a ser tratados com o empenho político, o rigor e os valores que se exigiam. Proliferam as fraturas e o cheiro a podre no ambiente político da Europa.

Os vírus multiplicaram-se. A "austeridade" é, com todas as crenças que a suportam, o vírus mais perigoso. Nos últimos tempos, a partir de pronunciamentos de caráter económico, social ou político, tem-se reforçado a denúncia da narrativa hegemónica da crise assente na legitimação da abordagem "focada na dívida pública e nos custos unitários do trabalho". Até o senhor Blanchard, ex-economista principal do FMI, veio a público com um grupo de economistas apelar a "uma narrativa consensual da crise" que substitua aquela. Independentemente do crédito que mereça esse hipotético consenso, estamos, pois, muito longe da concretização prática daquele descrédito. As pressões feitas sobre o Governo português, algumas absolutamente inqualificáveis, continuam.

O holandês Dijsselbloem é ministro das Finanças no seu país e, na UE, preside ao Eurogrupo. Enquanto presidente desta "instituição", comanda posições de achincalhamento a Portugal e incomoda-se por os portugueses quererem um Orçamento do Estado que atenue o duro sacrifício que nos foi imposto em direitos fundamentais. Os argumentos são sempre os da escassez dos recursos financeiros de que dispomos. Ora, é exatamente na Holanda que grande parte dos maiores grupos económicos portugueses situam a sua sede fiscal, para não pagarem em Portugal os impostos que deviam pagar. Sobre isso, aquele senhor nada diz.

Por detrás das políticas de austeridade castradora, estão objetivos políticos externos e internos, esteve a atuação de políticos, a intervenção acutilante de banqueiros (que bem sabiam dos desfalques que tinham andado a fazer), esteve o trabalho de municiação de quadros de leitura sobre a "realidade" do país feito por académicos neoliberais, esteve toda uma intervenção comunicacional que ajudou à criação das "verdades" do contexto com que se culpabilizaram e submeteram os portugueses. A persistência nas mensagens foi e é de tal forma intensa, que leva as pessoas a confundirem o conteúdo noticioso da crise com as origens, expressões e efeitos da própria crise.

Os grandes meios de comunicação social pertencem a grupos económicos e servem estrategicamente interesses que jamais permitem que algum deles se transformem em espaço de favorecimento de leituras alternativas. Por outro lado, os jornalistas vão reduzindo em número, estando sujeitos a condições de trabalho mais dependentes e limitadas. As agendas são, muitas vezes, abocanhadas pela obrigação de seguir os comentários dominantes.

A crise das narrativas alternativas não será definitiva. É possível construir uma nova hegemonia. Com trabalho persistente e articulado entre centros de investigação e academias diversas, com a participação de grupos profissionais estratégicos nestes processos, com a mobilização de meios e capacidades de múltiplas instituições e organizações, deitando mão de instrumentos como os princípios básicos dos processos de Reestruturação da Dívida Soberana aprovados na Assembleia Geral da ONU a 29 de julho de 2015, e, fazendo em simultâneo mobilização social e política, é possível chegar lá.

1.ª PARTE DESTE ESTUDO SERÁ PUBLICADO, NA PRÓXIMA, SEMANA, NOS CADERNOS DO OBSERVATÓRIO SOB O TÍTULO "NARRATIVAS DA CRISE NO JORNALISMO ECONÓMICO", ASSINADO POR JOSÉ CASTRO CALDAS E JOÃO RAMOS DE ALMEIDA.

*Investigador e professor universitário

Portugal. “DECISÃO DA ANAC VEM CONFIRMAR A RAZÃO DAS DENÚNCIAS DO PCP”



O PCP considerou hoje que a decisão da Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) em relação ao negócio da TAP dá razão às denúncias do partido sobre "as várias ilegalidades" na privatização da transportadora aérea.

"Esta decisão da ANAC vem confirmar a razão das denúncias do PCP ao longo do tempo sobre as várias ilegalidades, e esta é mais uma, da privatização da TAP", afirmou hoje o deputado Bruno Dias, em declarações à Lusa.

A Autoridade Nacional de Aviação Civil admitiu hoje que existem "fundados indícios de desconformidade" das regras europeias na venda de 61% da TAP à Gateway, tendo imposto medidas destinadas a impedir decisões de gestão extraordinária durante um prazo de 90 dias.

A TAP e a Portugália ficam assim impedidas de tomar decisões de gestão extraordinária ou que tenham impacto significativo no património, na atividade e na operação das duas empresas.

O deputado comunista defendeu que "estão por explicar, e não podem deixar de ser postos em causa, os vários negócios e decisões que têm vindo a ser anunciados ao longo destes últimos tempos por esta gestão e por este consórcio que agora controla a companhia".

E deu como exemplo: "as questões das rotas, das aeronaves, dos terrenos, as operações financeiras, tudo aquilo que tem vindo a ser anunciado não pode deixar de ser posto em causa", bem como "de que quem hoje está no controlo da TAP não podia ter entrado na companhia, como agora se evidenciou".

Para Bruno Dias, "está na hora de colocar um ponto final a esta instabilidade de uma vez por todas".

"Porque a situação que está a ser imposta à TAP é insustentável ao longo do tempo e nunca devia ter começado com este processo de privatização. É preciso fazer regressar urgentemente a TAP à plena gestão e controlo público", afirmou.

Lusa, em Notícias ao Minuto

Portugal. PASSOS CONDICIONOU DEPUTADOS PARA DESRESPONSILIZAR CARLOS COSTA”



Deputado socialista critica Passos Coelho, com o olhar lançado sobre o governador do Banco de Portugal.

Passos Coelho acusou ontem o primeiro-ministro de fazer um “ataque descabelado” e inédito ao governador do Banco de Portugal com falta de cultura democrática.

Em reação, João Galamba recordou, numa publicação feita na sua página no Facebook, o momento em que viu “Passos Coelho dar ordens ao seu grupo parlamentar para inverter a agulha na Comissão de Inquérito ao caso BES e deixar de criticar o trabalho do governador. E teve de o fazer em público, tais eram as críticas que os deputados do seu partido vinham fazendo à supervisão”.

“Já que gosta tanto de cultura democrática”, atirou o deputado socialista, “Passos talvez pudesse explicar como é que o condicionamento do trabalho de deputados numa Comissão Parlamentar de Inquérito, com o objetivo de libertar Carlos Costa das suas próprias responsabilidades no caso BES, se enquadra no respeito pela democracia e pelas funções do parlamento, enquanto órgão de soberania a quem cabe fiscalizar e escrutinar os poderes públicos”.

Algumas horas antes, João Galamba tinha-se já mostrado perplexo com as farpas lançadas por Passos Coelho, dizendo, na mesma rede social.

“Parece que o cavalheiro que ameaçou o Tribunal Constitucional vem dizer não sei o quê de um primeiro-ministro que ousou criticar o homem de mão do ex-primeiro ministro (reconduzido no cargo exatamente por ser homem de mão) porque isso é um ataque às instituições independentes. Isto nem inventado”, escreveu.

Goreti Pera – Notícias ao Minuto

Portugal. “DIREITA APOIOU A COMISSÃO EUROPEIA A CHANTEGEAR O PAÍS”



Líder do Bloco de Esquerda diz que Bruxelas “fez pressão” até ter a garantia de que os impostos indiretos seriam aumentados.

Esta tarde, em Torres Novas, Catarina Martins deu uma sessão de esclarecimento sobre o Orçamento do Estado para 2016, documento esse que, afirma, “entrou em Bruxelas com menos 300 milhões de euros de recuperação das famílias do que saiu de lá”.

A culpa para essa alteração nas contas do Governo, segundo a líder do Bloco, é de Bruxelas. “[O Orçamento] continua a recuperar os rendimentos, mas Bruxelas fez pressão até conseguir aumentar impostos indiretos que de facto retiram 300 milhões de euros à recuperação de rendimentos que estava a ser conseguida”.

As culpas, contudo, não são apenas da Comissão Europeia, uma vez que “a Direita apoiou [Bruxelas] nesta chantagem contra o país”, ao “não hesitar em mandar o nosso país gastar 3 mil milhões com o Banif para o entregar ao Santander”, concluiu.

João Oliveira – Notícias ao Minuto

Acordo entre União Europeia e Reino Unido é "xenófobo"

A porta-voz do BE considerou hoje como xenófoba a medida relativa aos benefícios sociais, do acordo entre União Europeia e Reino Unido, considerando que, quem fica calado, é cúmplice de políticas que fazem "crescer o ódio entre os povos".

No encerramento do 1.º Encontro Nacional +60 do Bloco de Esquerda, que decorreu hoje, em Almada, Catarina Martins quis chamar a atenção para uma das medidas aprovadas em Conselho Europeu, para que o Reino Unido não saia da União Europeia, considerando que "mostra o beco sem saída em que a União Europeia se encontra".

As medidas preveem que, "daqui a alguns anos, os apoios sociais sejam diferentes conforme a nacionalidade dos trabalhadores, ou seja, que os trabalhadores nacionais tenham direitos de proteção social num país, que não têm os trabalhadores não nacionais", explicou, considerando que "uma Europa que admite que possa vir a ter uma lei em que trabalhadores têm proteção social diferente, dependendo da sua nacionalidade, é uma Europa que se afirma como xenófoba".

Na opinião da porta-voz do BE, "não é possível olharmos para a Europa que oferece como projeto de futuro o nivelamento por baixo e a desconfiança ou o ódio crescente entre os seus povos".

"Essa [é a] irresponsabilidade de uma direita que se instalou no coração da Europa, e que muitas vezes, por omissão ou por silêncio, tem sido apoiada por um largo setor político. Veja-se: 28 governos da União Europeia aceitaram uma medida que só pode ser da [direita] mais radical, da mais extrema-direita europeia. É um perigo", condenou.

Para Catarina Martins, "quem fica calado e quem aceita que medidas que são intrinsecamente xenófobas e que são intrinsecamente ataques ao Estado social, é cúmplice dessas mesmas políticas", e é por isso que o Bloco não pode ficar calado.

"Há quem nos venha dizer que tenhamos calma e que fiquemos sossegados, porque, para os trabalhadores que já estão no Reino Unido, nada mudará, só mudará para os que forem para lá, no futuro", disse ainda.

É contra "a xenofobia e contra o 'dumping' social" que, na voz da líder bloquista, "se faz todos os dias a ideia do europeísmo e da luta do Bloco de Esquerda".

"Não temos dúvidas nenhumas do perigo do passo que foi tomado neste Conselho Europeu. Quando a nacionalidade serve para diminuir o apoio nacional, há duas coisas que estão a acontecer à Europa: a primeira é o profundo desprezo por quem trabalha, a segunda é crescer o ódio entre os povos", alertou.

O primeiro-ministro britânico, David Cameron, conseguiu o acordo da UE para um estatuto especial do país e reformas em quatro áreas para fazer campanha pelo 'sim' no referendo sobre a permanência do seu país entre os 28, o chamado 'Brexit': competitividade, governação da zona euro, benefícios sociais e soberania nacional.

Em relação aos benefícios sociais, foi acordado que a indexação dos abonos de família a crianças residentes fora do Reino Unido, "às condições de vida" do país de residência, começará a ser aplicada, a partir de 2020, a trabalhadores de qualquer Estado-membro.

O acordo alcançado permite que o líder britânico faça campanha pela permanência do país na UE, no referendo que terá lugar a 23 de junho.

Lusa, em Notícias ao Minuto

SOMOS UM PAÍS DE MERDOSOS OU DE MEDROSOS?



“O quê? Mas então este individuo, lá por ser uma autoridade da psicanálise, desboca-se assim deste modo e diz as verdades puras e duras? Que somos um país de merdosos? E agora? O que vão pensar dele? Com verdades destas decerto que não angaria amizades nem venerações? Pois. Oh porra! Ele está-se nas cacas sibilinas para tudo isso! Somos um país de merdosos? Pois somos!”

Este – em cima e entre aspas - foi o pensamento que me atacou logo que olhei o título sobre a entrevista de Carlos Vaz Marques ao psicanalistas  Coimbra de Matos. Mas não, retirei essa ideia de ele estar a ser um desbocado quando li melhor e corrigi. Medrosos. e não merdosos, como erradamente li. Cobardes? Pois. Uma questão de troca de posição da letra "r".

Na realidade as minhas interpretações, corretas ou incorretas, são de pura lana-caprina face ao conteúdo da entrevista que pode ler a seguir. Apesar dos seus mais de 80 anos Coimbra de Matos merece todo o respeito e reconhecimento pelo que representa na sua atividade profissional, a psicanálise. O mestre. Vamos ter de ler. Aproveite-se o domingo.

Não resisto a deixar aqui um aparte sobre como comecei a dar forma a esta entrada para a entrevista hoje publicada no Público e ficar na dúvida sobre a palavra medrosos e merdosos. Quero acreditar que foi intencional (conforta-me), se bem que pode ser reconhecido que todos os cobardes são merdosos e o inverso também é verdade.

Bom resto de domingo. É quase noite. Nada tema. Não existem papões a não ser na sua imaginação.Tudo se há-de compor, até os medrosos e os merdosos se recomporão, para darem lugar aos homens e mulheres novos(as) que florescerão neste país. Um dia a coragem voltará a ser semeada em Portugal, crescerá e dará frutos suculentos. Há quem assim pense e espere um novo Abril – nem que aconteça em Setembro ou em outro mês qualquer. Contudo será Um Novo Abril.

Redação PG / MM

"Somos um país de medrosos" - entrevista

Carlos Vaz Marques - Público

É provavelmente o nome mais respeitado da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva. Deitámos o país no divã do psicanalista.

Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma curva do Douro. A vista assombrosa de São Leonardo de Galafura transporta-nos para uma espécie de tempo mítico. Pendurada na parede em frente à porta, aquela fotografia é uma janela para as origens de Coimbra de Matos. Ao longo de duas horas de conversa, o psiquiatra e psicanalista, nascido em 1929, evoca por diversas vezes episódios da infância para ilustrar o que diz. Embora se tenha afastado da importância que a teoria psicanalítica clássica dá ao passado. António Coimbra de Matos é um ávido consumidor da ideia de futuro. A papelada que se amontoa na secretária a que nos sentamos, um de cada lado, revela o tipo de organização muito pessoal de quem privilegia a actividade à arrumação obsessiva. Fuma incessantemente e concede-se a si próprio o tempo necessário para responder a cada pergunta. Como se fosse a primeira vez que algumas das questões se lhe colocassem.

Pode-se falar em estados de depressão colectiva?

Pode. A depressão é uma coisa individual mas há situações em que aparecem mais casos depressivos. Em momentos de crise. Como agora.

Diria que estamos a passar por uma depressão colectiva?

Há uma maior incidência de depressões. Em certos momentos podemos falar de uma depressão colectiva. Isso foi muito evidente naquele caso muito falado da France Telecom.

Em que houve uma série de suicídios de trabalhadores da empresa.

Sim. Isso foi muito noticiado.

Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal.

Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência.

Na sua definição, segundo li, o que distingue a depressão normal da depressão patológica é justamente a capacidade de revolta.

Sim.

Em Portugal, não somos lá muito bons nisso, na capacidade de revolta colectiva, pois não?

Não, somos um bocado passivos. Os espanhóis são muito mais agressivos, revoltam-se muito mais.

Sim, nas imagens das manifestações em Espanha ou na Grécia vemos um grau de revolta que não identificamos em Portugal.

Isso é verdade. Noto isso na área científica. Aqui em Portugal, vamos a um congresso e se dizemos: “Não estou nada de acordo com isso” dizem-nos logo: “Foste muito agressivo com aquele tipo”. Isso, num congresso internacional, é a coisa mais banal do mundo e ninguém leva a mal, nem diz que está a ser agredido.

Somos mais susceptíveis?

Sim. E mais delicados, mais medrosos. Somos um país de medrosos.

É a velha ideia dos brandos costumes?

Dos brandos costumes mas também da atitude do poder. O poder em Portugal sempre foi menos violento. Isso não facilita a revolta. O Salazar não matava, mandava prender. Franco matava mesmo e isso cria uma revolta maior.

E considera isso mais negativo do que positivo?

Sim, há uma sujeição maior. Umas vezes é mais negativo, outras vezes mais positivo. A nossa colonização foi muito melhor do que a colonização de outros países, nomeadamente de Espanha.Fizemos uma colonização mais respeitadora, mais suave.

É capaz de haver gente nos estudos coloniais de cabelos em pé com essa ideia de que a colonização portuguesa terá sido branda; também houve grandes atrocidades.

Mas não foi tão agressiva como a dos espanhóis, pelo menos na América Latina.

Não tivemos um Cortés.

Os espanhóis liquidavam aqueles indivíduos. Nós escravizávamo-los e tal.

Vê uma continuidade de carácter ao longo dos séculos no povo português?

Repare na nossa luta contra os árabes, no princípio da nacionalidade: conseguimos conquistar território mais facilmente porque o Afonso Henriques e os outros não matavam os árabes. A maior parte dos alcaides foram feitos governadores civis. Já os espanhóis chegavam lá e liquidavam os alcaides: substituíam-nos logo e às vezes até os matavam. Nós fomos mais diplomatas.

Identifica nisso um traço de continuidade?

Sim. Percebi-o muito cedo, ainda na instrução primária. Fiz a instrução primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar.

O facto de nos revoltarmos menos do que outros povos, significa que somos mais atreitos à depressão?

Não sei dizer ao certo mas haverá vários factores para isso. Um dos factores é a nossa história, a expansão, as descobertas, os pais que saíam. Os homens iam para a guerra, iam para as colónias, para os descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais passivo. Há um trabalho interessante da Professora Celeste Malpique, do Porto, precisamente sobre o pai ausente. Fez esse estudo nas zonas de Ovar e de Aveiro, onde os homens iam para a pesca do bacalhau.

Isso lembra-me uma frase sua a explicar a diferença entre os papéis do pai e da mãe: quando a criança tem medo, a mãe dá-lhe a mão...

...e o pai dá-lhe um pontapé no cu. O meu pai fez-me isso uma vez, tinha eu para aí uns dez, onze anos. Tinha montado um cavalo que lá havia e que era um bocado arisco. Estávamos no quintal da casa e o cavalo começa a empinar-se. Fiquei com medo e gritei pelo meu pai. Ele veio ter comigo e julguei que ia segurar-me o cavalo. Mas não. Pegou no chicote e dá duas porradas no animal. O cavalo largou-se, sai pelo portão da casa, pela estrada fora. Sei que perdi os estribos, agarrei-me ao selim, e ia a chamar ao meu pai filho da puta, cá por dentro [risos]. Mas nunca mais tive medo dos cavalos.

Essa distinção de papéis entre o pai e a mãe ainda é assim tão clara?

É. O homem, em relação à criança, tem uma atitude diferente da da mulher. O homem faz mais movimentos extensivos, para fora, periféricos, centrífugos. As mulheres fazem mais movimentos centrípetos. O homem pega no bebé e tem tendência para o pôr assim [demonstra, afastando os braços do corpo].

Há até pais que atiram a criança ao ar.

Sim. As mulheres raramente fazem isso. Isto induz a um tipo de relação diferente. Os homens falam de uma forma mais grave, as mulheres de maneira mais melódica.

Diria que essas características são inatas ou culturais?

São inatas. Isto faz-se em todas as culturas. Em algumas será mais forçado.

Como é que enquadra isso em realidades novas como a dos casais homossexuais com filhos?

É difícil responder. Os casais homossexuais não são patogénicos. Não há perigo nenhum na adopção por casais homossexuais. Agora, é uma situação com um risco um bocadinho maior.

A que nível?

Mais facilmente pode haver dificuldades adaptativas.

Por causa dos diferentes papéis que não estão preenchidos?

Sim. E não só. Os casais heterossexuais são mais harmónicos. Nos casais homossexuais há mais frequência de conflitos, de separações. São menos estáveis, de uma maneira geral.

Diz isso com base na sua experiência empírica ou em estudos publicados?

Há estudos sobre isso. E depois é a experiência que temos de clínica.

Tem detectado alterações a esse nível?

Ocorrem mudanças na medida em que isso existe, é aceite, é cultural. As coisas melhoram. Os casais homossexuais tornam-se mais harmónicos por causa da aceitação. Numa cultura em que a homossexualidade não é aceite os casais envergonham-se, escondem-se, são criticados, há reparos. Portanto reagem a isso. Se são aceites sentem-se integrados.

Voltando à ideia de depressão colectiva: sente-a no seu consultório?

Não sinto muito. A clínica do consultório é de classe alta. Nos hospitais vê-se mais, há mais depressões. Parece-me que será assim, mas não tenho estatística nenhuma que o comprove.

Com tanta coisa em transformação na sociedade, o que é que lhe parece mais comum a nível individual: o que permanece ou o que se altera?

Mais do que a mudança nos quadros clínicos ou nas coisas que aparecem, é a mudança em mim próprio. São as coisas novas que vou descobrindo ou que vou investigando.

De que tipo?

A minha técnica hoje é muito diferente do que era há 20 ou 30 anos.

O que é que mudou?

Muita coisa. Até as concepções teóricas. A inovação, a investigação são a base de todo o movimento. Se a pessoa se fixa naquilo que descobriu ou que aprendeu, às tantas está fossilizada.

É fácil ficar fossilizado nesta actividade?

Em todas as actividades é fácil. Na nossa talvez mais porque é mais complexa, e as pessoas aprendem sempre muita coisa e depois repetem aquilo que já sabiam. As pessoas dizem-me isso: “Não percebo, você agora vem com umas ideias completamente diferentes”. Não sou nenhum maluco, fui vendo umas coisas, algumas ideias que tinha e que não estavam muito certas e entretanto fui trilhando outros percursos.

Dê-me o exemplo de uma dessas alterações.

Por exemplo, aprendi, e durante muito tempo procedi assim, que os sonhos nocturnos eram uma coisa muito importante, que nos davam grandes indicações. Hoje a minha teoria é que os sonhos nocturnos pouco nos dizem porque são um trabalho de memória.

Portanto, a interpretação dos sonhos já não lhe interessa.

Não. É muito mais importante aquilo a que chamo o sonho-projecto, os devaneios diurnos que temos. Esses é que estão virados para o futuro. Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador, está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o futuro
.

No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas?

Isso também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente.

Imagino que isso lhe valeu algumas antipatias ou mesmo inimizades dentro do meio da psicanálise.

Sim, sim. E críticas.

Porque é que há uma tão grande animosidade entre escolas terapêuticas?

Como é uma ciência mais difusa, com menos certezas, é mais fácil formar essas escolas e crenças. Religiões, quase; seitas. Mas a propósito disso, há uns anos recebi um prémio nos Estados Unidos, e um dos analistas de lá, com quem depois me correspondi bastante, mandou-me um mail: “Mas isso que você disse é uma mudança total de paradigma, não é?” “Pois é”, disse-lhe eu.

A que é que ele se referia?

Precisamente a isto de que estávamos a falar, porque na psicanálise clássica o paciente repete muito as coisas que aprendeu na infância. A minha teoria é que ele, ao longo da vida, vai aprendendo coisas novas e vai mudando. E isso é que é o importante.

Também reconstruímos e reinventamos o passado.

Sim, mas vivemos do futuro, não do passado. Infelizmente nem sempre é assim, mas é assim que deve ser. Veja na política portuguesa: foi o problema do Sócrates, e antes do Sócrates do Guterres... Noutro dia dizia a um amigo meu: naturalmente, a culpa foi do Afonso Henriques, que conquistou isto aos mouros em vez de ir para a Galiza.

Andamos a olhar demasiado para o espelho retrovisor?

Andamos. De uma maneira geral, nos países europeus. Há um estudo que já tem uns 30 anos, de psicólogos e psicanalistas americanos, que se limitaram a investigar a década de 70. Foram buscar 400 artigos que vêm de duas revistas de psicanálise bastante conhecidas, seleccionaram 200 artigos escritos por psicanalistas europeus, e 200 artigos escritos por psicanalistas americanos. E só foram investigar uma coisa: o número de vezes que citavam Freud. A diferença era de dez vezes mais para os europeus. [risos] É o peso da história. E também a coisa cultural: os europeus são mais conservadores. É frequente ir-se a uma conferência sobre filosofia e ter de se ouvir falar no Aristóteles e no Platão.

Sente-se mais americano, nisso?

Muito mais. Aliás, tenho muito mais contacto com analistas americanos do que com analistas europeus. Esse prémio que me deram nos Estados Unidos, na Europa não mo davam. Deram-mo voluntariamente, foram eles que me seleccionaram, pelos meus escritos. Na Europa achavam que aquilo não tinha muito interesse.

Revê-se mais no pragmatismo americano.

No caso da análise, sim. Noutras coisas não. Noutros aspectos têm muitos defeitos. Mas os filósofos são muito mais pragmáticos. Os filósofos europeus estão presos às abstracções todas.

Com a sua idade seria natural que o peso da experiência já tivesse uma prevalência maior do que o da tentativa de descobrir.

As coisas evoluem investigando, não é acumulando conhecimentos.

Como é que se dá, por exemplo, com a revolução tecnológica? Não vejo aqui nenhum computador.

Não, porque os computadores já chegaram tarde demais e eu já não tinha muita paciência para aprender a lidar com aquilo. A minha secretária é que trata disso. Mas acho que é importante, aquilo é bom.

Nunca usa computador?

Não. Mesmo o telemóvel, uso-o mal.

Sabe o que é o Instagram?

Sei [risos].

Sabe o que é o Facebook?

Também sei, mais ou menos.

As redes sociais são apenas novas formas de comunicação ou parece-lhe que há o risco de mexerem com características fundamentais das pessoas?

Penso que se não forem em excesso, não. Como tudo.

A instantaneidade da comunicação terá alterado algumas das características relacionais que existiam na sua juventude?

Não sei. Ouço os meus colegas, na faculdade de psicologia, dizerem: “Esta malta hoje não presta, no nosso tempo é que era bestial”. Pois, eu acho que os alunos agora são muito melhores do que eram no meu tempo. Muitíssimo melhores. Mais ávidos, mais interessados. A evolução é positiva. No meu tempo de estudante a maior parte dos colegas só pensava em futebol e em beber copos. Hoje vêem-se vários alunos e alunas interessados em filosofia, política, história.

Não se reconhece, portanto, no discurso da crise de valores.

Não, de maneira nenhuma. Os valores é que são outros. Em relação aos valores da religião, do pecado, são outros.

Quais diria que são hoje os valores estruturantes?

O primeiro de todos é a liberdade. E por outro lado o de haver menos proibições. A minha liberdade só acaba quando perturba a liberdade do outro. É a única proibição. Depois a moral: há um tipo de moral, a que chamo exógena, ou heterónoma, que vem ditada pelo outro. Pela religião, pelo partido político, pela cultura. E há uma moral endógena e autónoma, que depende simplesmente de o indivíduo ter empatia e compaixão pelo sofrimento do outro. Se me ponho no lugar do outro e fico preocupado se ele não está bem, construo a minha moral. Aquela que me é ensinada não tem interesse nenhum. Por exemplo, há uma coisa que é muito discutida e em que várias pessoas não estão de acordo comigo: continua-se a dizer que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade tem limites; a realidade física e a realidade social. Se a criança bate com a cabeça na parede magoa mais a cabeça do que a parede [risos]. Se chama filho da puta ao pai, se calhar o pai fica chateado e deixa de brincar com ele, já não lhe apetece jogar à bola. É só isto.


Ah, isso é aquele idiota do Urra. Um cretino.

O espanhol Javier Urra.

Sim. Só diz idiotices [risos]. Mas tem cargos importantes: é professor catedrático na Universidade Complutense de Madrid e é, ou foi, o provedor dos menores em Espanha. Os livros dele têm várias edições mas é um homem execrável. Numa entrevista que li dele, acaba dizendo que castigava os filhos porque gostava muito deles. Bestial! [risos]

Está mais próximo, nesse aspecto, do Dr. Spock.

O Spock era muito melhor.

Ou de Berry Brazelton.

Esse é bom. Mas tem uma teoria com a qual não estou totalmente de acordo: diz que o bebé precisa de amor e disciplina. O bebé não precisa de disciplina, precisa de um ambiente ordenado, de um ambiente disciplinado. É diferente. Se um dia lhe derem a refeição às três horas, no dia seguinte às seis da tarde, noutro dia deitam-no às oito, e depois às onze...

Isso é desestruturante.

É. Se o ambiente for ordenado a criança integra-se nisso. Se eu, como professor, protesto por os alunos chegarem tarde à aula, não dá em nada. Agora, se eu chego a horas, ele habituam-se a chegar a horas.

E o que é que faz quando há prevaricadores?

No Centro de Saúde Mental e Infantil tínhamos dez ou onze equipas e fazia uma reunião por semana com cada uma delas, e uma vez por mês uma reunião geral com toda a gente. Essas reuniões eram às nove da manhã; das nove às onze. E as pessoas chegavam sempre atrasadas. Fiz várias coisas até que simplesmente escrevi num quadro, “quem chegar depois das nove e dez é favor não interromper”. Começaram a ir a horas. As pessoas protestam quando é imposto, mas se for dito com jeito acabam por colaborar. E há outra coisa: a ideia do nosso governo anterior era a de que as sociedades progridem por competição. Não, as sociedades progridem por colaboração. Não é nos períodos de guerra que se fazem as grandes descobertas, é nos períodos de paz.

Há uma ideia muito difundida de que é o investimento militar que tem providenciado grandes avanços...

Não.

...até na área da psicologia.

O Hitler é que dizia mais ou menos isso: que a guerra trazia desenvolvimento.

Como é que encara a questão com que todos temos de nos confrontar: a ideia da morte?

Fiz uma conferência aqui há tempos num congresso de filosofia em que me convidaram para falar sobre isso. Primeiro recusei, depois insistiram muito comigo. Pus uma condição: “Só se for falar ao mesmo tempo da sexualidade e da morte” [risos]. Todos temos uma angústia, que não é propriamente a angústia de morte, essa é comum nos animais; a angústia perante a morte imediata, o risco. Os homens e os macacos superiores - o orangotango, o gorila, o chimpanzé - já têm alguma consciência disso, têm aquilo a que chamo a angústia essencial. Uma angústia perante a finitude da vida. Têm consciência de que a vida tem um limite. Essa angústia não é totalmente resolvida, mas é resolvida em parte pelo que se chama a imortalidade simbólica. Sei que vou morrer daqui a uns anos, mas também sei que fiz algumas coisas que ficaram, que foram úteis. Ensinei algumas coisas porreiras a umas pessoas. Sei que vou morrer mas diverti-me mais ou menos. Fiz umas asneiras, mas também fiz algumas coisas bem feitas. Há uma certa satisfação, não vou vazio e insatisfeito.

Essa consciência aumenta com o passar do tempo, ou nem tanto?

Nem tanto. Temos é de ter sucesso em algumas coisas que fazemos. Se só se tem insucesso isso deprime, causa mau estar. Os americanos falam muito dos três “g”, a propósito do amor. Good, giving and game. Bom, generoso e divertido. O mundo deve ser bom, generoso e divertido.

Isso é aplicado ao amor?

Sim, ao amor e às relações em geral. Mas eles falam disto a propósito do amor. O bom amor é aquele que é good, giving and game (jogo, mas que eu traduzo para divertido).

Também temos de aprender a viver com os momentos menos divertidos para não desistirmos à primeira contrariedade.

Isso é outra teoria. A teoria da psicanálise clássica é a de que as dores são boas, que é preciso sofrer para ficar mais forte, para enrijecer o carácter. Não é nada a minha teoria. A dor é inevitável, não é boa. Há sempre insucessos, há sempre dores.

Eu estava a referir-me à chamada gratificação imediata, cuja necessidade, segundo se diz frequentemente, tem vindo a crescer.

Pois, a teoria clássica é a de que a gratificação imediata é má e que se deve educar para a frustração. Reduzir a frustração lenta e progressivamente, é o que ensinam os clássicos. Não é de facto a minha teoria. A frustração é sempre má e deve evitar-se. O que se deve fazer é outra coisa: é desenvolver a capacidade de espera, o que é diferente. Estou suado, vim a correr, apetece-me beber uma cerveja gelada. Mas percebo que se descansar um bocado a cerveja me vai saber muito melhor. Não é a mesma coisa que manter a frustração, ou que considerar a frustração útil.

Há hoje patologias mentais novas?

É difícil dizer mas há algumas.

O DSM [o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] agora é maior.

O DSM é uma porcaria. Aquilo é um catálogo condicionado pela indústria farmacêutica para venderem mais medicamentos.

Todos temos lá um lugarzinho.

Sim, sim. E um medicamento apropriado.

Quais são então as novas patologias?

Há uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline. Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira que não há familiaridade. Deixou de haver a confiança, a colaboração mútua.

Isso é um efeito da vida urbana por contraponto à vida rural?

Claro, das grandes cidades. E do estilo de vida que as pessoas levam, também. Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo era íntimo de todas as pessoas da minha aldeia. Mesmo nas cidades havia aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva dos laços.

Não haverá, por outro lado, uma maior liberdade? Porque essa situação de antigamente era também de um grande controlo sobre os indivíduos.

Sim. Nesse aspecto, sim.

O que é que é preferível?

Bom, os extremos serão sempre maus. Mas não sei se a situação de antigamente era assim de tanto controlo. As pessoas respeitavam mais os segredos, por exemplo. Hoje respeitam menos. Se pedir a um amigo seu para respeitar um segredo, ele di-lo logo na primeira esquina.

Não tem grande confiança na natureza humana, pelos vistos.

A vida actual é mais insegura.

Existe isso da natureza humana?

Existe, é um bocado diferente da natureza dos macacos, por exemplo [risos].

Mas reconhece a existência de padrões de comportamento, independentemente da cultura, da origem, do meio em que se cresceu?

O problema dos valores é um problema posto do ponto de vista moral, quase religioso. Do ponto de vista ético, estético, também. Mas o importante é aquilo que tem valor para a vida, aquilo que é vital. O que acontece é que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não é só o cheiro a cio.

Ou seja, não é só o aspecto pragmático.

Também é pragmático: isto permite escolher melhor, saber quem é a pessoa. A selecção é muito mais complexa porque o número de dados que recolhemos é muito maior.

Há muito mais variáveis em jogo.

Muitíssimo mais. Para um macaco interessa que a fêmea esteja receptiva. Para o homem interessa que a mulher seja simpática, que goste dele; uma série de coisas. Agora, o que acho que tem pouco interesse são esses valores com sentido ético e moral. Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita ajuda”.

Pode dizer-se que é um optimista?

Sou.

Acha que estamos a aperfeiçoar-nos?

Sim, não tenho dúvidas. Apesar de todos os defeitos, cada vez se vive melhor. A curva da civilização é isto [desenha no papel uma curva], é ascendente. Mas a ascensão na subida não é contínua, há ciclos. E depois há a visibilidade social. Aqui há uns anos numa conferência com o Dr. Jorge Macedo – o historiador que foi director da Torre do Tombo –, houve uma coisa que não me agradou: ele falou muito da violência, referindo que a violência era muito grande nas cidades. E eu disse-lhe: “Parece impossível um professor de História estar a dizer-me isso; sabe melhor do que eu que no tempo do Marquês de Pombal a média de assassinatos era de um ou dois por dia em Lisboa, e Lisboa tinha cento e tal mil habitantes. Hoje tem 600 mil e se calhar são dois ou três por mês”. Há aqui um problema interessante: no tempo do Marquês de Pombal matava-se uma pessoa no Rossio e em Alfama ninguém sabia; hoje matam uma pessoa em Nova Iorque e logo à noite já sabemos. É uma ilusão, é um problema de visibilidade social.

A visibilidade social tem a ver com um papel progressivamente maior dos media; osmedia são indutores de ansiedade?

Não. Isso é outra história. Fiz parte de um grupo de trabalho organizado pela Maria Barroso, da Fundação Pro Dignitate. Fui um dos fundadores daquilo. E ela tinha essa ideia: porque se mostram as mortes, as revoluções? Isso não tem mal nenhum, a informação elucida as pessoas. Mas ainda há tempos ouvi o professor Daniel Sampaio, que é um tipo inteligente, dizer que não se podia falar do suicídio dos jovens porque isso contaminava, induzia outros. Pelo contrário; sabendo as pessoas os perigos que existem, não vejo perigo nenhum nisso. O perigo é não informar.

Não vê sequer a possibilidade de isso contribuir para um acréscimo da ansiedade?

Aí, o que acho é que o grande modelo é a própria natureza. O que não podemos é dar um acidente de automóvel e mostrar só o carro todo esborrachado, um tipo a deitar sangue. É mostrar a cena toda, mostrar a vida. Salientar só aquilo é que pode ser prejudicial e provocar grande ansiedade.

Hoje temos a ameaça terrorista, a ameaça dos vírus, agora a ameaça do mosquito. Estamos a receber permanentemente estas doses de alarme…

Já pensou que em vez de estarmos aflitos com o mosquito que transmite o Zika, devíamos pensar que isso pode ser um processo de resolver as dificuldades de proteínas, e começar a comer esses mosquitos num prato especial? [risos]. Com manteiga, um bocadinho de mel...

Por qualquer razão não é nas proteínas do mosquito que as pessoas pensam em primeiro lugar.

Mas podem começar a pensar nessa vantagem.

Se por absurdo tivesse à disposição uma máquina do tempo, para onde escolheria viajar?

Para o futuro. O passado passou, que é que ia fazer com o passado? Não gostava nada de voltar atrás, gostava de ter mais 100 anos à frente. O bife que me interessa é o que vou comer logo à noite, não é o que comi ontem [risos]. 

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