Vinte e sete chefes
de governo de países da União Europeia deram a David Cameron o que ele queria.
Tanto os que se dizem federalistas, como os que não sabem o que são, como os
que só pensam em austeridade aceitaram levantar entraves à famosa “livre circulação”
de pessoas, outorgaram o direito de veto ao santuário neoliberal da City,
permitiram a institucionalização de um apartheid social para os imigrantes e
aceitaram que o Reino Unido esteja isento dessa gloriosa máxima da farsa
continental que obriga os Estados membros a “trabalhar por uma Europa cada vez
mais estreita”.
“Vivam e deixem-me
viver”, terá mendigado o primeiro-ministro britânico aos seus confrades,
naquela que para o fervoroso diário federalista El País foi a cimeira “mais
ignominiosa” da história da União Europeia. Do “efervescente” italiano Matteo
Renzi, a Hollande, Merkel e cada um dos 27, ninguém escapa à furibunda pena do
articulista, a imagem do estado de desespero em que caíram os fundamentalistas
da União Europeia tal como ela é, pressentindo a degradação acelerada que tem
exame decisivo no próximo 23 de Junho, a data do referendo no Reino Unido.
Falar em acordo
alcançado em Bruxelas é uma falácia para esconder um desfecho anunciado, mais
pormenor menos pormenor, no qual tudo é concedido a Cameron para que este, na
qualidade de “europeu novo” convertido por conveniência, faça campanha convicta
pelo “sim” e consiga que a União escape a uma deserção que lhe será fatal. Ao
pé de um “ brexit”, a hipotética saída da Grécia, que esteve em agenda há uns
tempos, é um meigo sopro comparado com um furacão.
Como se previa,
Cameron conseguiu dar xeque-mate à livre circulação de pessoas – uma espécie de
mandamento sagrado fundador da União – permitindo-lhe levantar entraves à
entrada de imigrantes, ainda que cheguem de países comunitários. Como? O
governo britânico pode suspender os direitos sociais dos novos imigrantes
durante quatro anos após o estabelecimento de contratos para desempenho de
trabalhos menos qualificados, política esta que pode ser estendida durante sete
anos.
Os dirigentes
europeus permitiram também que a City, a praça de negócios mundial e um
santuário da extorsão neoliberal, tenha direito de veto sobre decisões da
União. Na prática, se a City discordar de uma medida de instâncias europeias,
incluindo o Parlamento Europeu, o assunto regressa a Bruxelas para ser
corrigido pela Comissão.
A norma fundadora
essencial, que obriga os governos dos Estados membros a empenharem-se numa
“Europa cada vez mais estreita”, não se aplicará doravante ao Reino Unido,
concederam os 27. Isto é, Cameron conseguiu, ainda que a resposta no referendo
seja “sim”, que o Reino Unido esteja na União Europeia sem estar. Ou, como
dizem os “europeístas” sem mácula, o primeiro-ministro britânico arrancou o
privilégio de usufruir do melhor de dois mundos.
Também o Parlamento
Britânico foi contemplado com direito de veto, tornando-se assim mais
Parlamento que os restantes 27. A cimeira aceitou que qualquer projecto
legislativo europeu barrado por 55% dos deputados britânicos terá que regressar
a Bruxelas para ser emendado. Quanto aos outros parlamentos, que se submetam à
ortodoxia dos tratados, que aliás não foram referendados pela maioria dos povos.
Com tudo isto, o
Conselho Europeu pagou um preço muito alto apenas para ver. Porque existe a
noção de que, apesar das cedências e da conveniente conversão de Cameron de
eurocéptico em europeísta, será difícil que estas cedências se repercutam no
comportamento do eleitorado britânico.
Ao contrário do que
apregoam os instrumentos de propaganda europeístas, a oposição dos britânicos à
continuação na União Europeia não é um exclusivo das correntes populistas,
neofascistas e das eurocépticas no interior do Partido Conservador. O
descontentamento é transversal à sociedade, abrange sectores de todas as
correntes políticas, o que se reflecte na existência de três frentes sociais e
políticas plurais que irão fazer campanha pelo “não”. Não é apenas a questão da
soberania que está em causa, da qual podem queixar-se todos os povos da União
Europeia, com maioria de razão os dos países do euro - o que nem sequer é o
caso do Reino Unido. O que vem ao de cima nos temas em debate entre os
britânicos são as consequências gravosas das políticas de austeridade, das
privatizações destruindo os serviços públicos, da eliminação de direitos e
sociais e laborais decorrentes da política de integração europeia cumprindo a
agenda neoliberal, da ampliação brutal do fosso das desigualdades.
Os factores de caos
social enumerados são comuns e toda a União e não atingem apenas os britânicos.
Por razões próprias, são os britânicos que agora os levantam e diagnosticam
pondo o dedo na ferida: eles resultam da política europeia errática e
antissocial. Daí que os dirigentes europeus estejam com os nervos em franja perante
o referendo britânico e tenham cedido de maneira a abrir uma excepção, um
precedente de que irão arrepender-se amargamente. Se o Reino Unido continuar,
outros poderão reclamar tratamento de excepção quando entenderem; se o Reino
Unido sair, outros poderão seguir-lhe o rasto.
Os chefes de governo
da União Europeia estão em vias de perceber que o ridículo da farsa a que se
prestaram mata. A vítima será a própria União.
*José Goulão - Mundo
Cão
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