Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Realizou-se
no dia 17 de fevereiro, no ISCTE, um seminário sobre "As Narrativas da
Crise e a Crise das Narrativas?", organizado pelo DINÂMIA"CET do
ISCTE, pelo Observatório sobre Crises e Alternativas do CES-UC (a que pertenço)
e pelo Sindicato dos Jornalistas. O seminário resultou de um projeto de
investigação, que analisou as narrativas de uma das instituições da troika (o
FMI) e de jornalistas económicos na imprensa portuguesa (crónicas e
editoriais)1, e nele participou um amplo e diversificado conjunto de oradores.
Portugal
atravessa um período político muito sensível e são notórios condicionalismos e
dependências resultantes da nossa condição periférica e do peso diminuto do
país na União Europeia (UE). Esta surge-nos carregada de problemas graves que
não estão a ser tratados com o empenho político, o rigor e os valores que se
exigiam. Proliferam as fraturas e o cheiro a podre no ambiente político da
Europa.
Os
vírus multiplicaram-se. A "austeridade" é, com todas as crenças que a
suportam, o vírus mais perigoso. Nos últimos tempos, a partir de
pronunciamentos de caráter económico, social ou político, tem-se reforçado a
denúncia da narrativa hegemónica da crise assente na legitimação da abordagem
"focada na dívida pública e nos custos unitários do trabalho". Até o
senhor Blanchard, ex-economista principal do FMI, veio a público com um grupo
de economistas apelar a "uma narrativa consensual da crise" que
substitua aquela. Independentemente do crédito que mereça esse hipotético
consenso, estamos, pois, muito longe da concretização prática daquele
descrédito. As pressões feitas sobre o Governo português, algumas absolutamente
inqualificáveis, continuam.
O
holandês Dijsselbloem é ministro das Finanças no seu país e, na UE, preside ao
Eurogrupo. Enquanto presidente desta "instituição", comanda posições
de achincalhamento a Portugal e incomoda-se por os portugueses quererem um
Orçamento do Estado que atenue o duro sacrifício que nos foi imposto em
direitos fundamentais. Os argumentos são sempre os da escassez dos recursos
financeiros de que dispomos. Ora, é exatamente na Holanda que grande parte dos
maiores grupos económicos portugueses situam a sua sede fiscal, para não
pagarem em Portugal os impostos que deviam pagar. Sobre isso, aquele senhor
nada diz.
Por
detrás das políticas de austeridade castradora, estão objetivos políticos
externos e internos, esteve a atuação de políticos, a intervenção acutilante de
banqueiros (que bem sabiam dos desfalques que tinham andado a fazer), esteve o
trabalho de municiação de quadros de leitura sobre a "realidade" do
país feito por académicos neoliberais, esteve toda uma intervenção
comunicacional que ajudou à criação das "verdades" do contexto com
que se culpabilizaram e submeteram os portugueses. A persistência nas mensagens
foi e é de tal forma intensa, que leva as pessoas a confundirem o conteúdo
noticioso da crise com as origens, expressões e efeitos da própria crise.
Os
grandes meios de comunicação social pertencem a grupos económicos e servem
estrategicamente interesses que jamais permitem que algum deles se transformem
em espaço de favorecimento de leituras alternativas. Por outro lado, os
jornalistas vão reduzindo em número, estando sujeitos a condições de trabalho
mais dependentes e limitadas. As agendas são, muitas vezes, abocanhadas pela
obrigação de seguir os comentários dominantes.
A
crise das narrativas alternativas não será definitiva. É possível construir uma
nova hegemonia. Com trabalho persistente e articulado entre centros de
investigação e academias diversas, com a participação de grupos profissionais
estratégicos nestes processos, com a mobilização de meios e capacidades de
múltiplas instituições e organizações, deitando mão de instrumentos como os
princípios básicos dos processos de Reestruturação da Dívida Soberana aprovados
na Assembleia Geral da ONU a 29 de julho de 2015, e, fazendo em simultâneo
mobilização social e política, é possível chegar lá.
1.ª
PARTE DESTE ESTUDO SERÁ PUBLICADO, NA PRÓXIMA, SEMANA, NOS CADERNOS DO
OBSERVATÓRIO SOB O TÍTULO "NARRATIVAS DA CRISE NO JORNALISMO
ECONÓMICO", ASSINADO POR JOSÉ CASTRO CALDAS E JOÃO RAMOS DE ALMEIDA.
*Investigador
e professor universitário
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