Sistema
afastou-se da criatividade e invenção. Avarento, conta tostões. Para
enfrentá-lo, faltam movimentos também capazes de ir além dos velhos programas
Entrevista
a Arthur DeGrave – Outras Palavras - Tradução: Cauê Ameni
David
Graeber é um antropólogo e anarquista renomado. Foi um dos criadores do
Movimento Occupy em 2011. É o autor do livro Dívida: os primeiros 5000 anos,
muito aclamado pela crítica. Encontrei-o em Paris, no lançamento do seu últimos
livro “The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the “Secret Joys of
Bureaucracy” [“A utopia das regras: Sobre tecnologia, estupidez e os brinquedos
secretos da burocracia”].
Em
2011, você esteve entre os impulsionadores do Movimento Occupy. Desde então,
muitos movimentos sociais similares apareceram, mas, aparentemente, nenhum teve
folego suficiente para continuar vivo e atingir seu objetivo. Por que
fracassaram?
Não
acho que estes movimentos sociais tenham falhado. Tenho uma teoria sobre isso:
“3,5 anos de atraso histórico”. Após o choque da crise financeira, em 2008, as
forças de segurança começaram, no mundo inteiro, se armar para os inevitáveis
protestos. No entanto, depois de dois ou três anos, parecia que nada iria
acontecer. De repente, em 2011, começou – embora nenhum grande fato novo tenha
se dado. Como em 1848 ou 1968, estes movimentos não buscam tomar o poder:
almejam mudar a forma como pensamos política. E neste quesito, creio que
tivemos uma mudança profunda. Muitos anseiam que o Occupy tome o caminho da política
formal. Verdade, não aconteceu, mas veja onde estamos 3.5 anos depois: na
maioria dos países onde ressurgiram movimentos sociais e populares, partidos de
esquerda estão mudando para abraçar as sensibilidade desses movimentos (Grécia,
Espanha, Estados Unidos e etc.). Talvez demore mais 3,5 anos para que eles
tenham um impacto real sobre os projetos políticos, mas parece-me que é o
caminho natural das coisas.
Vejam
bem, vivemos numa sociedade de gratificação instantânea: esperamos que ao
clicar em algo, alguma coisa vai acontecer. Essa não é a forma como os
movimentos sociais trabalham. A mudança não aconteceu do dia para noite. Levou
uma geração para os abolicionistas ou os movimentos feministas alcançarem seus
objetivos, e ambos enfrentaram instituições que existiam há séculos!
Mas
os movimentos de base poderiam se tornar organizações estruturais da política?
O exemplo recente na Grécia não parece muito encorajador.
Em
primeiro lugar, não vejo como o Syriza poderia ter ganho: eles estavam numa
posição estratégica muito complicada. Se alguma coalizão política do mesmo tipo
se formasse na Inglaterra, num instante, a história poderia ser completamente
diferente. Neste exato momento, o mais importante para os movimentos
horizontais e anti-autoritários é aprender como fazer alianças com aqueles
dispostos a trabalhar com o atual sistema político sem comprometer sua própria
integridade. Isso é algo que subestimamos com o Ocuppy. Acreditamos que nossos
aliados do Partido Democratas e na esquerda institucional tivessem uma
compreensão mais clara sobre seu interesse estratégico. Veja, precisamos ter
nossos próprios radicais, para aparecermos como uma alternativa razoável. Isso
é algo que a direita e o Partido Republicano compreendem bem. Se os democratas
estivessem unidos na defesa da 1ª emenda [que assegura liberdade de expressão,
manifestação e crença] assim como a direita está em relação a 2ª emenda
[protege o direito do povo de portar armas], o Ocuppy estaria provavelmente,
vivo, e não estaríamos discutindo sobre equilíbrios fiscais, mas sobre os
problemas reais que afligem das pessoas.
Ainda
assim, acredito que é necessária uma sinergia positiva entre a esquerda radical
e a institucional. Não precisamos, necessariamente, gostar um do outro, mas
devemos encontrar um caminho para nos reforçar reciprocamente. A esquerda
radical deveria estar mais preocupada em ganhar, ao invés de brincar de
superioridade moral.
Qual
sua análise em relação aos últimos desenvolvimentos da crise na Grécia? A
ideologia da dívida parece estar em alta na Europa
É
sempre possível pegar o fenômeno mais repressivo e transformá-lo em sinais de
esperança. Neste caso em particular, a crise europeia revela que a
justificativa tradicional para a existência do capitalismo não funciona mais.
Claro que o capitalismo sempre gerou desigualdades de forma maciça, mas havia
três argumentos políticos cruciais que contrabalanceiam esse fato. Em primeiro
lugar o suposto efeito econômico trickle-down [“escorrer para baixo”], a ideia
de que se os ricos se tornarem mais ricos, a camada mais pobre da sociedade
melhorá naturalmente. O que não acontece mais. Em segundo lugar: o capitalismo
traz estabilidade. Novamente, não é mais o caso. Em terceiro lugar: o
capitalismo aceleraria o caminho para a inovação tecnológica. Também não é mais
o caso.
Então,
o que sobrou para sustentar o capitalismo, agora que todos os argumentos
práticos se foram? Eles não têm mais escolha exceto recorrer a argumentos
puramente morais, à ideologia da dívida (“as pessoas que não pagam sua dívida
são más”), e à ideia de que se você não trabalhar ainda mais intensamente,
mesmo naquilo de que não gosta,, você é uma pessoa má.
Em
seu último livro, você sustenta que o capitalismo não é capaz de gerar novos
desenvolvimentos tecnológicos. No entanto, o que o dogma contemporâneo tenta
fazer crer é que vivemos numa época de grande inovação. Quem está certo?
Me
parece óbvio: entre 1750 e 1950, tivemos grandes descobertas científicas, novas
formas de energia foram descobertas, num caminho rápido para inovação. Não me
parece que aconteça novamente. O capitalismo tornou-se uma espécie de força
reacionária, freando o desenvolvimento tecnológico. O que aconteceu com os
carros voadores? A viagem ao espaço? Hoje, as universidades, abarrotadas
burocraticamente, são incapazes de reunir gente comprometida com a verdadeira
inovação. Os artigos do Einstein não passariam, provavelmente, nas bancadas
acadêmicas de hoje!
Pergunte
às pessoas e você verá que, no final das contas, a maioria não compra a
retórica dessa suposta inovação contemporânea. Não se trata mais de saber como
a ideologia atua — porque o importante já não é convencer as pessoas de que
algo seja verdade, mas de que todo mundo acredita que é verdade. Num certo
sentido, o cinismo substitui a ideologia. Pense em outro mito: a meritocracia.
Todos nos sabemos que as pessoas não sobem na escala hierárquica graças à
meritocracia — mas devido à relação com o chefe, à influência de um primo etc.
Há um senso de cumplicidade: se você quer ser promovido, não conte com seus
méritos, mas com seu poder teatral de encenar esses méritos. Seguir com as
linhas oficiais. Isso é um subproduto da mentalidade burocrática que descrevo
no livro.
Você
acha que é possível conciliar inovação tecnológica e progresso social?
Já
está acontecendo: Anonymous, Wikileaks ou, num certo sentido, a impressão em
três dimensões estão começando algo. O desenvolvimento tecnológico sempre segue
as tendências sociais. Alguém pensa que as pessoas em Florença, durante o
Renascimento, diziam “vamos criar o capitalismo: irá envolver fábricas, trocas
de mercadoria, e etc”? Claro que não. Não é algo planejado. O mesmo é verdade
para nós: uma vez que enxergarmos o queremos alcançar, como sociedade, a
inovação tecnológica virá em seguida.
Imagine
se todas as pessoas sentadas na frente de suas mesas, produzindo derivativos
securitizados ou negociando algoritmos, estivessem tentando criar um sistema de
alocação de recursos que fizesse o mesmo planejamento que os soviéticos
tentaram, mas não tiveram capacidade. Eles poderiam criar, provavelmente, algo
interessante.
Para
você, já não está claro se o atual sistema econômico pode ser chamado de capitalismo.
Por que?
A
natureza da acumulação capitalista mudou dramaticamente. Quando eu era
estudante, meu professor de história econômica dizia que quando a extração da
mais-valia é feita diretamente através da política, não é sinal de capitalismo,
mas de feudalismo. É o que vivemos hoje: uma fusão de burocracia pública e
privada que propõem criar mais formas de dívida, que será objeto de variadas
formas de especulação. A única forma de criar mais dívida é por meio da
política: não existe isso que alguns chamam de “desregulação financeira” — é
apenas uma mudança no modo de regulação. Na teoria marxista clássica, o papel
do Estado é garantir as relações de propriedade que permitem a extração de
mais-valia ocorrer por meio do trabalho assalariado. mas agora, o aparato de
Estado desempenha um papel muito mais ativo no processo.
Vivemos
na era da burocracia predatória. Que porcentagem da receita familiar é extraída
diretamente pelo setor financeiro? Estranhamente, estas são as estatísticas
econômicas mais dificeis de conseguir, mas quando os economistas fazem as
estimativas, encontram algo em torno de 20% a 40%. A maio parte do lucro já não
vem do setor produtivo. No entanto, quando pensamos na história do capitalismo,
pensamos nas indústrias, no trabalho pesado. Isso, claramente, não é o que
temos hoje. Não há mais razão para acreditar que o capitalismo estará vivo para
sempre. Por séculos, o Império Romano foi capaz de absorver as tribos bárbaras,
de atraí-los para o sistema romano, dando-lhes títulos de chefe e comandantes.
Mas um dia, eles se esqueceram de promover Alarico, que ficou muito irritado.
Nós todos sabemos o que aconteceu em seguida. O sistema é permanente até que
não é; toda contradição é absorvida até um ponto em que não é mais possível
fazê-lo.
Qual
é a sua opinião sobre a ideia de renda básica da cidadania, paga de forma
incondicional a todos os seres humanos?
Eu
sou muito entusiasta dessa ideia. É uma medida perfeitamente de esquerda e
anti-burocrática. Hoje, ao contrário, cada vez mais, as autoridades fazem os
pobres sentirem-se piores, com aumento crescente de monitoramento.
Na
Inglaterra, é fascinante analisar as estratégias dos diferentes partidos
políticos. Os britânicos conseguiram abolir o aparato industrial e agora estão
tentando matar o sistema universitário. O que nos sobrará para exportar? No
momento, tudo é baseado no mercado financeiro e imobiliário. Por que? Porque
todos os ricos do mundo querem ter uma casa em Londres? Há tantas belezas em
outras cidades da Europa. Qual é o apelo? Eu percebi duas coisas. Primeiro,
você pode ter e acumular tudo que desejar na Inglaterra, graças a uma classe
trabalhadora dócil e subserviente. Tenho um amigo cujo trabalho é entregar
lagostas, em qualquer momento da noite. Segundo, e mais importante: no Bahrein,
Rússia ou Hong Kong, se algo der errado pode haver um levante social. Não na
Inglaterra, é perceptível: a derrota histórica da classe trabalhadora inglesa
tornou-se o maior produto de exportação da Grã Bretanha.
E
realmente, esta é a estratégia do Partido Conservador: vender o sistema de
classe para estrangeiros ricos. Contra isso, qual foi a estratégia do Novo
Trabalhismo? Focar na exportação da cultura industrial. Mas nisso há um
problema: a criatividade não vem só da classe média, mas da classe trabalhadora
também. O Partido Trabalhista destruiu o que estava tentando criar ao impor
limites ao bem-estar social. No século XX, a Inglaterra criava, a cada
década, movimentos musicais incríveis, que repercutiam no mundo todo. Por que
não acontece mais isso? Essas bandas viviam no Estado de bem estar social! Tome
um grupo de jovens da classe trabalhadora, dê a eles dinheiro suficiente para
curtir e brincar juntos, e você teŕa os Beatles. Onde está o próximo John
Lennon? Provavelmente, embalando caixas num supermercado qualquer.