John
Pilger
O
jornalista norte-americano, Edward Bernays, é frequentemente descrito como o
homem que inventou a propaganda moderna.
Sobrinho de Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, foi Bernays que cunhou o termo "relações públicas" como um eufemismo para volteio e seus enganos.
Em 1929, ele persuadiu feministas a promoverem cigarros pondo mulheres a fumar no desfile da Páscoa de Nova York – comportamento então considerado estranho. Uma feminista, Ruth Booth, declarou: "Mulheres! Acendam outra tocha da liberdade! Derrubem mais um tabu sexista!"
A influência de Bernays estendeu-se muito além da publicidade. Seu maior sucesso foi seu papel em convencer o público americano a aderir ao massacre da Primeira Guerra Mundial. O segredo, segundo ele, era a "engenharia do consentimento" popular, a fim de "controlar e dirigir de acordo com a nossa vontade, sem seu conhecimento sobre o assunto".
Ele descreveu isso como "o verdadeiro poder dominante em nossa sociedade" e chamou-lhe "governo invisível".
Atualmente, o governo invisível nunca foi tão poderoso e tão menos compreendido. Na minha carreira como jornalista e cineasta, nunca conheci uma propaganda tão insinuante nas nossas vidas. Ela verifica-se agora e permanece incontestada.
Imagine duas cidades.
Ambas estão sob o cerco das forças do governo desse país. Ambas estão ocupadas por fanáticos que cometem atrocidades terríveis, tais como a decapitação de pessoas.
Mas existe uma diferença fundamental. Num cerco, os soldados do governo são descritos como libertadores por repórteres ocidentais neles incorporados, que entusiasticamente relatam suas batalhas e ataques aéreos. Há primeiras páginas de jornais com fotos destes heroicos soldados a fazerem o V de vitória. Há escassa menção a baixas civis.
Na segunda cidade – em outro país vizinho – quase exatamente o mesmo está a acontecer. As forças do governo sitiam uma cidade controlada pela mesma ninhada de fanáticos.
A diferença é que esses fanáticos são apoiados, financiados e armados por "nós" – Estados Unidos e Grã-Bretanha. Eles ainda dispõem de um centro de mídia que é financiado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Outra diferença é que os soldados do governo que mantêm esta cidade sob cerco são considerados os maus, condenados por agredir e bombardear a cidade – o que é exatamente o que os bons soldados fazem na primeira cidade.
Confuso? Na verdade não. Tal é o duplo padrão básico que é a essência da propaganda. Refiro-me, naturalmente, ao cerco atual da cidade de Mosul pelas forças do governo do Iraque, que são apoiadas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha e ao cerco de Alepo pelas forças do governo da Síria, apoiados pela Rússia. Um é bom; o outro é ruim.
O que raramente se informa é que ambas as cidades não seriam ocupadas por fanáticos e devastada pela guerra se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque em 2003. Esse empreendimento criminoso foi lançado sob mentiras notavelmente semelhantes à propaganda que agora distorce nossa compreensão da guerra civil na Síria.
Sem essa propaganda apresentada como notícia, o monstruoso Daesh, a Al-Qaida, a al-Nusra e o resto da gangue jihadista poderia não existir, e o povo da Síria não precisaria estar hoje a lutar pela sua vida.
Alguns podem lembrar, em 2003, uma sucessão de repórteres da BBC a voltarem-se para a câmara e a dizer-nos que Blair fora "vingado" pelo que acabou por ser o crime do século. As redes de televisão norte-americanas produziram a mesma validação para George W. Bush. A Fox News evocou Henry Kissinger para difundir as falsificações de Colin Powell.
No mesmo ano, logo após a invasão, filmei uma entrevista em Washington com Charles Lewis, o famoso jornalista investigativo americano. Perguntei-lhe: "O que teria acontecido se os meios de comunicação mais livres do mundo tivessem contestado seriamente o que acabou por ser propaganda bruta?"
Ele respondeu que se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, "há uma muito, muito boa probabilidade de que não teriamos ido para a guerra no Iraque".
Foi uma declaração chocante, e apoiada por outros jornalistas famosos a quem coloquei a mesma pergunta – Dan Rather da CBS, David Rose do Observer e jornalistas e produtores da BBC, que preferiram o anonimato.
Por outras palavras, se os jornalistas tivessem feito o seu trabalho, se tivessem contestado e investigado a propaganda ao invés de amplificá-la, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças estariam vivas hoje, e não haveria ISIS e nem o cerco de Alepo ou Mosul.
Não teria havido nenhuma atrocidade no metro de Londres em 7 de julho de 2005. Não teria havido nenhuma fuga de milhões de refugiados; não haveria acampamentos miseráveis.
Quando a atrocidade terrorista de Novembro último aconteceu em Paris, o presidente François Hollande enviou imediatamente aviões para bombardear a Síria – e mais terrorismo seguiu-se, como era de prever, o resultado da linguagem bombástica de Hollande acerca de a França estar "em guerra" e não "mostrar nenhuma clemência". Que a violência estatal e violência jihadista alimentam-se mutuamente é a verdade que nenhum líder nacional tem a coragem de falar.
"Quando a verdade é substituída pelo silêncio", disse o dissidente soviético Yevtushenko, "o silêncio é uma mentira."
O ataque ao Iraque, o ataque à Líbia e o ataque à Síria aconteceram porque o governo de cada um desses países não era um fantoche do Ocidente. O registo de direitos humanos de um Saddam ou de um Kadafi era irrelevante. Eles não obedeceram ordens nem renunciaram ao controle dos seus países.
O mesmo destino aguardava Slobodan Milosevic uma vez que ele se recusou a assinar um "acordo" que exigia a ocupação da Sérvia e sua conversão numa economia de mercado. Seu povo foi bombardeado, e ele foi processado em Haia. Independência deste tipo é intolerável.
Como revelou a WikLeaks, foi apenas quando o líder sírio, Bashar al-Assad, em 2009, rejeitou um oleoduto, que atravessaria o seu país do Qatar para a Europa, é que foi atacado.
A partir desse momento, a CIA planejou destruir o governo da Síria com fanáticos jihadistas – os mesmos fanáticos que atualmente dominam o povo de Mosul e do leste de Aleppo
Por que isso não é notícia? O ex-funcionário da chancelaria britânica Carne Ross, que foi responsável pela manutenção de sanções contra o Iraque, disse-me: "Nós alimentávamos os jornalistas com factoides de inteligência higienizada, ou os deixávamos congelados do lado de fora. Era assim que funcionava."
O cliente medieval do Ocidente, a Arábia Saudita – à qual os EUA e a Grã-Bretanha vendem milhares de milhões de dólares em armas – está atualmente destruindo o Iémen, um país tão pobre que, no melhor dos casos, metade das crianças estão desnutridas.
Procure no YouTube e verá o tipo de bombas maciças – "nossas" bombas – que os sauditas usam contra aldeias miseráveis e contra casamentos e funerais.
As explosões parecem pequenas bombas atômicas. Os bombardeadores na Arábia Saudita trabalham lado a lado com os oficiais britânicos. Este fato não está no noticiário da noite.
A propaganda é mais eficaz quando o nosso consentimento é engendrado por gente com uma boa educação – Oxford, Cambridge, Harvard, Columbia – e com carreiras na BBC, The Guardian, The New York Times, The Washington Post.
Estas organizações são conhecidos como a mídia liberal. Eles se apresentam como iluminados, tribunas progressistas do espírito moral (zeitgeist) da época. Eles são anti-racistas, pró-feministas e pró-LGBT.
E eles amam a guerra.
Enquanto falam em defesa do feminismo, apoiam guerras de rapina que negam os direitos de inúmeras mulheres, incluindo o direito à vida.
Em 2011, a Líbia, então um estado moderno, foi destruída com o pretexto de que Muammar Kadafi estava prestes a cometer genocídio contra seu próprio povo. Essa foi uma notícia incessante; e não houve evidência. Era uma mentira.
Na verdade, a Grã-Bretanha, Europa e os Estados Unidos queriam aquilo a que gostam de chamar de "mudança de regime" na Líbia, o maior produtor de petróleo da África. A influência de Kadafi no continente e, acima de tudo, a sua independência eram intoleráveis.
Assim, ele foi assassinado com uma faca nas nádegas por fanáticos apoiados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Hillary Clinton aplaudiu sua morte horrível diante câmara, declarando: "Nós viemos, nós vimos, ele morreu!"
A destruição da Líbia foi um triunfo da mídia. À medida que os tambores de guerra eram rufados, Jonathan Freedland escrevia no Guardian: "Embora os riscos sejam muito reais, a necessidade de intervenção continua a ser forte."
Intervenção – é uma palavra educada, benevolente, utilizada pelo Guardian, cujo significado real, para a Líbia, foi a morte e destruição.
De acordo com os seus próprios registos, a OTAN lançou 9.700 "missões de ataque" contra a Líbia, das quais mais de um terço foram destinadas a alvos civis. Elas incluíam mísseis com ogivas de urânio. Olhe para as fotografias dos escombros de Misurata e Sirte, e as valas comuns identificadas pela Cruz Vermelha. O relatório da UNICEF sobre as crianças mortas diz, "a maioria [delas] com idade inferior a dez anos".
Como consequência direta, Sirte tornou-se a capital do Daesh.
A Ucrânia é outro triunfo da mídia. Jornais liberais respeitáveis, como o New York Times, o Washington Post e The Guardian, e emissoras tradicionais, como a BBC, NBC, CBS, CNN têm desempenhado um papel fundamental no condicionamento seus telespectadores para aceitar uma nova e perigosa guerra fria.
Todos têm deturpado os acontecimentos na Ucrânia como sendo um ato maligno da Rússia quando, na verdade, o golpe na Ucrânia em 2014 foi o trabalho dos Estados Unidos, ajudado pela Alemanha e pela OTAN.
Esta inversão da realidade é tão difusa que a intimidação militar da Rússia por Washington não é notícia. Ela é ocultada por trás de uma campanha de difamação e terror da mesma espécie daquela em que cresci durante a primeira guerra fria. Mais uma vez, os Ruskies estão a vir apanhar-nos, liderado por outro Staline, a quem The Economist descreve como o diabo.
A supressão da verdade sobre a Ucrânia é um dos mais completos blackouts noticiosos que posso lembrar. Os fascistas que engendraram o golpe em Kiev são da mesma cepa que apoiou a invasão nazista da União Soviética em 1941. De todos os alarmismos acerca da ascensão do fascismo anti-semita na Europa, nunca algum líder sequer menciona os fascistas na Ucrânia – exceto Vladimir Putin, mas ele não conta.
Muitos na mídia ocidental têm trabalhado arduamente para apresentar a população étnica de língua russa da Ucrânia como estranha a seu próprio país, como agentes de Moscou, quase nunca como ucranianos que pretendem uma federação dentro Ucrânia e como cidadãos ucranianos resistindo a um golpe estrangeiro orquestrada contra seu governo eleito.
Há quase a alegria de uma reunião de colegas entre os belicistas.
Os que rufam o tambor do Washington Post a incitar à guerra com a Rússia são os mesmos editorialistas que publicaram a mentira de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa.
Para a maior parte de nós, a campanha presidencial norte-americana é um espetáculo de anormalidade da mídia, em que Donald Trump é o vilão.
Mas Trump é odiado por aqueles com poder nos Estados Unidos por razões que pouco têm a ver com o seu comportamento obnóxio e suas opiniões. Para o governo invisível em Washington, o imprevisível Trump é um obstáculo para o projeto da América para o século 21.
Este é manter o domínio dos Estados Unidos, subjugar a Rússia e, se possível, a China.
Para os militaristas em Washington, o problema real com Trump é que, em seus momentos de lucidez, ele parece não querer uma guerra com a Rússia; ele quer dialogar com o presidente russo, não combatê-lo; ele diz que quer dialogar com o presidente da China.
No primeiro debate com Hillary Clinton, Trump prometeu não ser o primeiro a introduzir armas nucleares num conflito. Ele afirmou: "Eu certamente não faria o primeiro ataque. Uma vez que a alternativa nuclear se verifica, está tudo acabado". Não era novidade.
Será que ele realmente quiz dizer isso? Quem sabe? Muitas vezes ele se contradiz. Mas o que está claro é que Trump é considerado uma séria ameaça ao status quo mantido pela vasta máquina de segurança nacional que dirige os Estados Unidos, pouco importando quem está na Casa Branca.
A CIA quer vê-lo derrotado. O Pentágono quer vê-lo derrotado. A mídia quer vê-loderrotado. Mesmo seu próprio partido quer vê-lo derrotado. Ele é uma ameaça para os governantes do mundo – ao contrário de Clinton, que não deixou nenhuma dúvida de que ela está preparada para ir para a guerra com armas nucleares contra a Russia e a China.
Clinton tem cabedal para isso, como muitas vezes se vangloria. Na verdade, seu registro é comprovado. Como senadora, apoiou o banho de sangue no Iraque. Quando concorreu contra Obama em 2008, ameaçou "obliterar totalmente" o Irã0. Como secretária de Estado, foi conivente com a destruição de governos na Líbia e em Honduras e pôs em marcha o assédio da China.
Ela já se comprometeu a apoiar um No Fly Zone na Síria – uma provocação direta para a guerra com a Rússia. Clinton pode muito bem se tornar a presidente mais perigosa dos Estados Unidos de toda a minha vida – uma distinção para a qual a concorrência é feroz.
Sem um fiapo de prova, Clinton pôs-se a acusar a Rússia de apoiar Trump e de ter hackeado seus emails. Divulgados pela WikiLeaks, esses emails revelam que tudo que Clinton diz no privado, em discursos e "palestras" compradas por ricos e poderosos, é exatamente o oposto do que ela diz publicamente.
Por isso é tão importante silenciar e ameaçar furiosamente Julian Assange. Como editor da WikiLeaks, Assange conhece a verdade. E deixem-me esclarecer desde já e tranquilizar os muitos que se preocupam: Assange está bem; e a WikiLeaks está operando a pleno vapor.
Hoje está em curso a maior acumulação de forças americanas lideradas desde a Segunda Guerra Mundial – no Cáucaso e na Europa Oriental, na fronteira com a Rússia, na Ásia e no Pacífico, onde o alvo é a China.
Tenha isso em mente quando o circo da eleição presidencial chegar ao seu final em 8 de novembro. Se o vencedor for a Clinton, um coro grego de comentadores tolos vão comemorar sua coroação como um grande passo em frente para as mulheres. Nenhum vai mencionar as vítimas de Clinton: as mulheres da Síria, as mulheres do Iraque, as mulheres da Líbia. Ninguém vai mencionar os exercícios de defesa civil que estão sendo realizados na Rússia. Ninguém vai lembrar as " tochas da liberdade" de Edward Bernay.
O porta-voz de George Bush certa vez chamou a mídia de "facilitadores cúmplices".
Vindo de um alto funcionário em uma administração cujas mentiras, potenciadas pela mídia, causaram aquele sofrimento, essa descrição é um aviso da história.
Em 1946 o promotor do Tribunal de Nuremberg disse acerca da mídia alemã: "Antes de cada grande agressão, eles iniciaram uma campanha de imprensa calculada para enfraquecer suas vítimas e para preparar o povo alemão psicologicamente para o ataque. No sistema de propaganda, foram a imprensa diária e a rádio as armas mais importantes".
Sobrinho de Sigmund Freud, o pioneiro da psicanálise, foi Bernays que cunhou o termo "relações públicas" como um eufemismo para volteio e seus enganos.
Em 1929, ele persuadiu feministas a promoverem cigarros pondo mulheres a fumar no desfile da Páscoa de Nova York – comportamento então considerado estranho. Uma feminista, Ruth Booth, declarou: "Mulheres! Acendam outra tocha da liberdade! Derrubem mais um tabu sexista!"
A influência de Bernays estendeu-se muito além da publicidade. Seu maior sucesso foi seu papel em convencer o público americano a aderir ao massacre da Primeira Guerra Mundial. O segredo, segundo ele, era a "engenharia do consentimento" popular, a fim de "controlar e dirigir de acordo com a nossa vontade, sem seu conhecimento sobre o assunto".
Ele descreveu isso como "o verdadeiro poder dominante em nossa sociedade" e chamou-lhe "governo invisível".
Atualmente, o governo invisível nunca foi tão poderoso e tão menos compreendido. Na minha carreira como jornalista e cineasta, nunca conheci uma propaganda tão insinuante nas nossas vidas. Ela verifica-se agora e permanece incontestada.
Imagine duas cidades.
Ambas estão sob o cerco das forças do governo desse país. Ambas estão ocupadas por fanáticos que cometem atrocidades terríveis, tais como a decapitação de pessoas.
Mas existe uma diferença fundamental. Num cerco, os soldados do governo são descritos como libertadores por repórteres ocidentais neles incorporados, que entusiasticamente relatam suas batalhas e ataques aéreos. Há primeiras páginas de jornais com fotos destes heroicos soldados a fazerem o V de vitória. Há escassa menção a baixas civis.
Na segunda cidade – em outro país vizinho – quase exatamente o mesmo está a acontecer. As forças do governo sitiam uma cidade controlada pela mesma ninhada de fanáticos.
A diferença é que esses fanáticos são apoiados, financiados e armados por "nós" – Estados Unidos e Grã-Bretanha. Eles ainda dispõem de um centro de mídia que é financiado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Outra diferença é que os soldados do governo que mantêm esta cidade sob cerco são considerados os maus, condenados por agredir e bombardear a cidade – o que é exatamente o que os bons soldados fazem na primeira cidade.
Confuso? Na verdade não. Tal é o duplo padrão básico que é a essência da propaganda. Refiro-me, naturalmente, ao cerco atual da cidade de Mosul pelas forças do governo do Iraque, que são apoiadas pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha e ao cerco de Alepo pelas forças do governo da Síria, apoiados pela Rússia. Um é bom; o outro é ruim.
O que raramente se informa é que ambas as cidades não seriam ocupadas por fanáticos e devastada pela guerra se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos não tivessem invadido o Iraque em 2003. Esse empreendimento criminoso foi lançado sob mentiras notavelmente semelhantes à propaganda que agora distorce nossa compreensão da guerra civil na Síria.
Sem essa propaganda apresentada como notícia, o monstruoso Daesh, a Al-Qaida, a al-Nusra e o resto da gangue jihadista poderia não existir, e o povo da Síria não precisaria estar hoje a lutar pela sua vida.
Alguns podem lembrar, em 2003, uma sucessão de repórteres da BBC a voltarem-se para a câmara e a dizer-nos que Blair fora "vingado" pelo que acabou por ser o crime do século. As redes de televisão norte-americanas produziram a mesma validação para George W. Bush. A Fox News evocou Henry Kissinger para difundir as falsificações de Colin Powell.
No mesmo ano, logo após a invasão, filmei uma entrevista em Washington com Charles Lewis, o famoso jornalista investigativo americano. Perguntei-lhe: "O que teria acontecido se os meios de comunicação mais livres do mundo tivessem contestado seriamente o que acabou por ser propaganda bruta?"
Ele respondeu que se os jornalistas tivessem feito seu trabalho, "há uma muito, muito boa probabilidade de que não teriamos ido para a guerra no Iraque".
Foi uma declaração chocante, e apoiada por outros jornalistas famosos a quem coloquei a mesma pergunta – Dan Rather da CBS, David Rose do Observer e jornalistas e produtores da BBC, que preferiram o anonimato.
Por outras palavras, se os jornalistas tivessem feito o seu trabalho, se tivessem contestado e investigado a propaganda ao invés de amplificá-la, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças estariam vivas hoje, e não haveria ISIS e nem o cerco de Alepo ou Mosul.
Não teria havido nenhuma atrocidade no metro de Londres em 7 de julho de 2005. Não teria havido nenhuma fuga de milhões de refugiados; não haveria acampamentos miseráveis.
Quando a atrocidade terrorista de Novembro último aconteceu em Paris, o presidente François Hollande enviou imediatamente aviões para bombardear a Síria – e mais terrorismo seguiu-se, como era de prever, o resultado da linguagem bombástica de Hollande acerca de a França estar "em guerra" e não "mostrar nenhuma clemência". Que a violência estatal e violência jihadista alimentam-se mutuamente é a verdade que nenhum líder nacional tem a coragem de falar.
"Quando a verdade é substituída pelo silêncio", disse o dissidente soviético Yevtushenko, "o silêncio é uma mentira."
O ataque ao Iraque, o ataque à Líbia e o ataque à Síria aconteceram porque o governo de cada um desses países não era um fantoche do Ocidente. O registo de direitos humanos de um Saddam ou de um Kadafi era irrelevante. Eles não obedeceram ordens nem renunciaram ao controle dos seus países.
O mesmo destino aguardava Slobodan Milosevic uma vez que ele se recusou a assinar um "acordo" que exigia a ocupação da Sérvia e sua conversão numa economia de mercado. Seu povo foi bombardeado, e ele foi processado em Haia. Independência deste tipo é intolerável.
Como revelou a WikLeaks, foi apenas quando o líder sírio, Bashar al-Assad, em 2009, rejeitou um oleoduto, que atravessaria o seu país do Qatar para a Europa, é que foi atacado.
A partir desse momento, a CIA planejou destruir o governo da Síria com fanáticos jihadistas – os mesmos fanáticos que atualmente dominam o povo de Mosul e do leste de Aleppo
Por que isso não é notícia? O ex-funcionário da chancelaria britânica Carne Ross, que foi responsável pela manutenção de sanções contra o Iraque, disse-me: "Nós alimentávamos os jornalistas com factoides de inteligência higienizada, ou os deixávamos congelados do lado de fora. Era assim que funcionava."
O cliente medieval do Ocidente, a Arábia Saudita – à qual os EUA e a Grã-Bretanha vendem milhares de milhões de dólares em armas – está atualmente destruindo o Iémen, um país tão pobre que, no melhor dos casos, metade das crianças estão desnutridas.
Procure no YouTube e verá o tipo de bombas maciças – "nossas" bombas – que os sauditas usam contra aldeias miseráveis e contra casamentos e funerais.
As explosões parecem pequenas bombas atômicas. Os bombardeadores na Arábia Saudita trabalham lado a lado com os oficiais britânicos. Este fato não está no noticiário da noite.
A propaganda é mais eficaz quando o nosso consentimento é engendrado por gente com uma boa educação – Oxford, Cambridge, Harvard, Columbia – e com carreiras na BBC, The Guardian, The New York Times, The Washington Post.
Estas organizações são conhecidos como a mídia liberal. Eles se apresentam como iluminados, tribunas progressistas do espírito moral (zeitgeist) da época. Eles são anti-racistas, pró-feministas e pró-LGBT.
E eles amam a guerra.
Enquanto falam em defesa do feminismo, apoiam guerras de rapina que negam os direitos de inúmeras mulheres, incluindo o direito à vida.
Em 2011, a Líbia, então um estado moderno, foi destruída com o pretexto de que Muammar Kadafi estava prestes a cometer genocídio contra seu próprio povo. Essa foi uma notícia incessante; e não houve evidência. Era uma mentira.
Na verdade, a Grã-Bretanha, Europa e os Estados Unidos queriam aquilo a que gostam de chamar de "mudança de regime" na Líbia, o maior produtor de petróleo da África. A influência de Kadafi no continente e, acima de tudo, a sua independência eram intoleráveis.
Assim, ele foi assassinado com uma faca nas nádegas por fanáticos apoiados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França. Hillary Clinton aplaudiu sua morte horrível diante câmara, declarando: "Nós viemos, nós vimos, ele morreu!"
A destruição da Líbia foi um triunfo da mídia. À medida que os tambores de guerra eram rufados, Jonathan Freedland escrevia no Guardian: "Embora os riscos sejam muito reais, a necessidade de intervenção continua a ser forte."
Intervenção – é uma palavra educada, benevolente, utilizada pelo Guardian, cujo significado real, para a Líbia, foi a morte e destruição.
De acordo com os seus próprios registos, a OTAN lançou 9.700 "missões de ataque" contra a Líbia, das quais mais de um terço foram destinadas a alvos civis. Elas incluíam mísseis com ogivas de urânio. Olhe para as fotografias dos escombros de Misurata e Sirte, e as valas comuns identificadas pela Cruz Vermelha. O relatório da UNICEF sobre as crianças mortas diz, "a maioria [delas] com idade inferior a dez anos".
Como consequência direta, Sirte tornou-se a capital do Daesh.
A Ucrânia é outro triunfo da mídia. Jornais liberais respeitáveis, como o New York Times, o Washington Post e The Guardian, e emissoras tradicionais, como a BBC, NBC, CBS, CNN têm desempenhado um papel fundamental no condicionamento seus telespectadores para aceitar uma nova e perigosa guerra fria.
Todos têm deturpado os acontecimentos na Ucrânia como sendo um ato maligno da Rússia quando, na verdade, o golpe na Ucrânia em 2014 foi o trabalho dos Estados Unidos, ajudado pela Alemanha e pela OTAN.
Esta inversão da realidade é tão difusa que a intimidação militar da Rússia por Washington não é notícia. Ela é ocultada por trás de uma campanha de difamação e terror da mesma espécie daquela em que cresci durante a primeira guerra fria. Mais uma vez, os Ruskies estão a vir apanhar-nos, liderado por outro Staline, a quem The Economist descreve como o diabo.
A supressão da verdade sobre a Ucrânia é um dos mais completos blackouts noticiosos que posso lembrar. Os fascistas que engendraram o golpe em Kiev são da mesma cepa que apoiou a invasão nazista da União Soviética em 1941. De todos os alarmismos acerca da ascensão do fascismo anti-semita na Europa, nunca algum líder sequer menciona os fascistas na Ucrânia – exceto Vladimir Putin, mas ele não conta.
Muitos na mídia ocidental têm trabalhado arduamente para apresentar a população étnica de língua russa da Ucrânia como estranha a seu próprio país, como agentes de Moscou, quase nunca como ucranianos que pretendem uma federação dentro Ucrânia e como cidadãos ucranianos resistindo a um golpe estrangeiro orquestrada contra seu governo eleito.
Há quase a alegria de uma reunião de colegas entre os belicistas.
Os que rufam o tambor do Washington Post a incitar à guerra com a Rússia são os mesmos editorialistas que publicaram a mentira de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa.
Para a maior parte de nós, a campanha presidencial norte-americana é um espetáculo de anormalidade da mídia, em que Donald Trump é o vilão.
Mas Trump é odiado por aqueles com poder nos Estados Unidos por razões que pouco têm a ver com o seu comportamento obnóxio e suas opiniões. Para o governo invisível em Washington, o imprevisível Trump é um obstáculo para o projeto da América para o século 21.
Este é manter o domínio dos Estados Unidos, subjugar a Rússia e, se possível, a China.
Para os militaristas em Washington, o problema real com Trump é que, em seus momentos de lucidez, ele parece não querer uma guerra com a Rússia; ele quer dialogar com o presidente russo, não combatê-lo; ele diz que quer dialogar com o presidente da China.
No primeiro debate com Hillary Clinton, Trump prometeu não ser o primeiro a introduzir armas nucleares num conflito. Ele afirmou: "Eu certamente não faria o primeiro ataque. Uma vez que a alternativa nuclear se verifica, está tudo acabado". Não era novidade.
Será que ele realmente quiz dizer isso? Quem sabe? Muitas vezes ele se contradiz. Mas o que está claro é que Trump é considerado uma séria ameaça ao status quo mantido pela vasta máquina de segurança nacional que dirige os Estados Unidos, pouco importando quem está na Casa Branca.
A CIA quer vê-lo derrotado. O Pentágono quer vê-lo derrotado. A mídia quer vê-loderrotado. Mesmo seu próprio partido quer vê-lo derrotado. Ele é uma ameaça para os governantes do mundo – ao contrário de Clinton, que não deixou nenhuma dúvida de que ela está preparada para ir para a guerra com armas nucleares contra a Russia e a China.
Clinton tem cabedal para isso, como muitas vezes se vangloria. Na verdade, seu registro é comprovado. Como senadora, apoiou o banho de sangue no Iraque. Quando concorreu contra Obama em 2008, ameaçou "obliterar totalmente" o Irã0. Como secretária de Estado, foi conivente com a destruição de governos na Líbia e em Honduras e pôs em marcha o assédio da China.
Ela já se comprometeu a apoiar um No Fly Zone na Síria – uma provocação direta para a guerra com a Rússia. Clinton pode muito bem se tornar a presidente mais perigosa dos Estados Unidos de toda a minha vida – uma distinção para a qual a concorrência é feroz.
Sem um fiapo de prova, Clinton pôs-se a acusar a Rússia de apoiar Trump e de ter hackeado seus emails. Divulgados pela WikiLeaks, esses emails revelam que tudo que Clinton diz no privado, em discursos e "palestras" compradas por ricos e poderosos, é exatamente o oposto do que ela diz publicamente.
Por isso é tão importante silenciar e ameaçar furiosamente Julian Assange. Como editor da WikiLeaks, Assange conhece a verdade. E deixem-me esclarecer desde já e tranquilizar os muitos que se preocupam: Assange está bem; e a WikiLeaks está operando a pleno vapor.
Hoje está em curso a maior acumulação de forças americanas lideradas desde a Segunda Guerra Mundial – no Cáucaso e na Europa Oriental, na fronteira com a Rússia, na Ásia e no Pacífico, onde o alvo é a China.
Tenha isso em mente quando o circo da eleição presidencial chegar ao seu final em 8 de novembro. Se o vencedor for a Clinton, um coro grego de comentadores tolos vão comemorar sua coroação como um grande passo em frente para as mulheres. Nenhum vai mencionar as vítimas de Clinton: as mulheres da Síria, as mulheres do Iraque, as mulheres da Líbia. Ninguém vai mencionar os exercícios de defesa civil que estão sendo realizados na Rússia. Ninguém vai lembrar as " tochas da liberdade" de Edward Bernay.
O porta-voz de George Bush certa vez chamou a mídia de "facilitadores cúmplices".
Vindo de um alto funcionário em uma administração cujas mentiras, potenciadas pela mídia, causaram aquele sofrimento, essa descrição é um aviso da história.
Em 1946 o promotor do Tribunal de Nuremberg disse acerca da mídia alemã: "Antes de cada grande agressão, eles iniciaram uma campanha de imprensa calculada para enfraquecer suas vítimas e para preparar o povo alemão psicologicamente para o ataque. No sistema de propaganda, foram a imprensa diária e a rádio as armas mais importantes".
O
original encontra-se em www.counterpunch.org/... e a tradução em choldraboldra.blogspot.pt/... (foram efetuadas pequenas
alterações).
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/