Moysés
Pinto Neto provoca: “Vivemos um momento extraordinário. Tudo está em aberto. A
decomposição do instituído é nossa grande oportunidade”
Moysés Pinto Neto |
Outras Palavras | Imagem: Alice Kohler, Brincando no Xingu
A
década passada foi inegavelmente um grande momento para o Brasil. O bolo
cresceu e foi distribuído também aos pobres, promovendo um deslocamento na
estrutura de classes brasileira e uma reconquista da autoestima nacional. O que
hoje é regra, a depreciação do Brasil, tinha virado cafonice. Nosso país
tornava-se um dos projetos de futuro mundial, invertendo a equação colonizada
de que deveríamos copiar tudo do Norte. Durante a crise de 2008, víamos as
economias de lá despencarem enquanto vivíamos nosso melhor momento, podendo até
tripudiar a crise chamando-a de “marolinha”. Por todo o mundo, o Brasil era
visto como potencial modelo porque combinava uma nova estabilidade
institucional, conquistada pela Constituição de 1988 e transição serena entre
tucanos e petistas, estabilidade econômica, com responsabilidade fiscal,
controle da inflação e crescimento, e um caldeirão sociocultural e ambiental
ainda inexplorado, mas cheio de vitalidade.
No
entanto, os arranjos do poder não eram auspiciosos. Do ponto de vista político,
formava-se um grande bloco no poder — o “condomínio pemedebista” — cuja
gestão era disputada pelos petistas e tucanos. As relações com o setor privado
estavam despidas de toda transparência. Sabíamos que as campanhas ficavam cada
vez mais caras, o “Mensalão” fora o prenúncio da crise do financiamento que
indicava ter o PT perdido qualquer diferencial em relação ao resto do sistema.
A combinação entre esses negócios e a gestão pemedebista — fundada
em supermaioria parlamentar comprada com cargos e, hoje dá para dizer
tranquilamente, grana — formava um regime oligárquico e
plutocrático, onde o poder político tradicional (p.ex., Sarney, Calheiros) e os
“supercampeões” (Odebrecht, Friboi, OAS, Andrade Gutierrez) atuavam em conluio
bem distante da população. O Plano de Aceleração do Crescimento, programa
número 1 do imaginário petista pós-2008, tinha esse “lado B”. Se o “lado A” era
o discurso do crescimento virtuoso, da geração de empregos, do impulsionamento
do mercado interno e aventura no mercado global como player, o “lado B”
era a corrosão democrática, o domínio das construtoras nas cidades, o
governismo apático, a ofensiva sobre os índios e a devastação ambiental.
A
pauta do transporte público, em 2013, foi o catalisador de uma indignação geral
contra esses arranjos. A pax lulista, que se prolongou nos primeiros
anos da gestão de Dilma, é desarranjada pelos movimentos que reivindicam outro
modelo de urbanismo, outra experiência da democracia, mais ousadia na
configuração do nosso futuro. Em seguida, a classe média invade a rua e pede
menos corrupção, mais educação e saúde. Mas o processo não para por aí: das
Câmaras Municipais ocupadas no Brasil, passando pelos rolezinhos até o
#naovaitercopa, é possível ver que o movimento nunca se deixou domesticar
totalmente pelas forças da direita ou da esquerda ou seus interesses
partidários imediatos. Ele vira uma hidra de muitas cabeças — e
todas as tentativas de hermenêutica do fenômeno acabam fracassando diante da
sua multiplicidade, todas as tentativas de redução sociológica acabam revelando
mais as idealizações políticas dos cientistas sociais que o dispêndio
energético do momento cujos efeitos sentimos até hoje. Sem dúvida, a única
aproximação possível é com a ideia de acontecimento, pensada tanto pela
filosofia alemã (Heidegger, Benjamin) quanto pelo pensamento francês
(Althusser, Foucault, Derrida, Deleuze, Badiou), no sentido daquilo
que excede o possível, estoura as capacidades de predição do estado
anterior e aponta para o imponderável.
No
entanto, em 2014 somos confrontados com a mesquinharia daqueles que colocam o
processo eleitoral acima de tudo e de todos. A radicalidade daqueles que não
disputavam uma cadeira no Palácio do Planalto, mas um projeto de futuro, é
substituída pelo apoio “apesar de tudo”, pela esperança hoje surreal da
“guinada à esquerda”. O hibridismo de 2013 e início de 2014 torna-se uma
polarização identitária focada no poder institucional, colocado no plano de
emergência e fim do mundo, como se tudo que ocorresse naquela eleição fosse
questão de vida ou morte. E a vitória melancólica de Dilma não alivia o quadro:
a direita não aceita o resultado, povoa as ruas, e a esquerda é capturada na
defesa de um projeto
muito aquém do que foi destinado o voto. O compromisso com a
manutenção do governo paralisa a radicalidade do pensamento, tornando a crítica
refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que as perspectivas radicais
fossem engolidas pela defesa do indefensável. A perspectiva de futuro
encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se bem quando a
questão procedimental começa a tomar a frente dos debates políticos, numa
redução do político ao jurídico. Chega-se às raias de sustentar o “direito
subjetivo” da governante permanecer no cargo, como se o poder destituinte não
fosse uma ferramenta muito mais interessante que esse conservadorismo jurídico ad
hoc, inventado para proteger um partido específico da pressão política.
Caímos
no imediatismo. E é o mesmo imediatismo que, mesmo numa crise abissal desde
2015, torna as eleições de 2018 a única pauta. Novamente, caíamos na lógica
eleitoral sequestrando a política. Não que eleições não sejam importantes. Mas
sem repensar os fundamentos do nosso apoio político, todo apoio cairá na mesma
lógica atual. Repetiremos o mesmo círculo vicioso.
Do
ponto de vista de longo prazo, o momento é extraordinário. Nunca as oligarquias
políticas estiveram tão emparedadas. É verdade que o Poder Judiciário e o
Ministério Público não são forças revolucionárias e não raro — como
vimos no caso Joesley — protegem o empresariado de sanções tão duras
quanto as que impõem à plebe sem pudores. Trata-se também de uma casta
político-burocrática, não raro herdeira de grandes arranjos
aristocráticos-familiares (“nobreza togada”), política e socialmente
conservadora e formada também não raro por manuais de direito puramente
dogmáticos, que repetem o conteúdo da lei e as decisões dos tribunais de forma
decorada, não-crítica, sem preocupação com os fundamentos filosóficos e as
consequências sociais dos atos (explorei a relação dessa casta com os
“concurseiros” em outro
texto). Além disso, carecem de legitimidade popular, por mais que tenham o
apoio midiático, uma vez que não foram eleitos pelo voto.
E,
mesmo assim, não dá para ser tão maniqueísta na análise. Bem ou mal, a
blindagem absoluta que protegia a classe dominante no Brasil está abatida. As
previsões que destacavam a seletividade das investigações, supostamente apenas
dirigidas ao PT, falharam miseravelmente. Aécio Neves, principal nome da
oposição, está afastado e os grandes articuladores do PMDB — Eduardo
Cunha, Eliseu Padilha, Renan Calheiros e Moreira Franco — estão
na mira da operação. O próprio presidente, Michel Temer, está sob fogo cerrado.
Empresários da Odebrecht, OAS e outras construtoras foram presos e tiveram que
entregar seus esquemas. Essa força em direção à transparência não está ligada a
uma grande manipulação arquitetada por forças em conluio secreto: ela é um
processo incontrolável, ligado fundamentalmente à nova matriz tecnológica, que
provoca um tremor no conceito de esfera pública. Vários filósofos — como
Derrida, Guattari, Latour e Stiegler — pensaram esse fenômeno em toda sua
radicalidade, mas infelizmente parece que os intelectuais brasileiros
fracassaram rotundamente em fazer a mediação entre conhecimento e militância
política. Reféns da agenda eleitoral e dos compromissos partidários ou
parapartidários, submetem as análises a categorias pobres, como as de
manipulação da mídia, grande conspiração e alienação do povo.
Sem
subscrever totalmente a descrição de Marcos Nobre, é no entanto possível usar
sua imagem do sistema da Nova República como um mapa para se entender o impacto
da Lava-Jato. Para Nobre, haveria um bloco progressista, o
“social-desenvolvimentismo”, composto de petistas e tucanos — com
o intuito reformista e voltado para a modernização do país. Esse bloco teria
que negociar com o “centrão”, bloco pemedebista (no sentido amplo), movido pelo
arcaico e pela fisiologia e cujo apoio é condição da governabilidade. Foi esse
grande arranjo que desabou. A capacidade dos progressistas mediarem o
“imobilismo em movimento” da Nova República desabou em 2013, quando as ruas
atacaram a própria condição antidemocrática da “governabilidade”. A composição
desaba e hoje não temos forma; estamos, rigorosamente, em desconstrução.
Ninguém pode antever o futuro: como diz Derrida, “ele só se anuncia na forma de
monstruosidade”.
Há,
basicamente, três argumentos do campo progressista contra a Lava-Jato: o
econômico, o jurídico e o conservador. Pelo argumento econômico, o dinheiro
recuperado e o combate à corrupção não compensariam os danos econômicos
provocados nas grandes empresas nacionais, causando desemprego e recessão. O
argumento jurídico consiste em criticar, a partir da matriz garantista (defesa
dos direitos individuais dos acusados), os abusos judiciais da Operação,
chegando a afirmar que estaríamos em estado de exceção. Finalmente, o argumento
conservador é baseado simplesmente no medo: o que virá depois de quebrarmos
nossas estátuas, de destruir nossos ídolos?
O
argumento econômico mostra bem que o “capitalismo de laços” brasileiro é um
patrimonialismo. Não importa que as empresas estivessem colonizando o espaço
público e enfraquecendo a democracia, não importa que recebessem vantagens
competitivas em relação a pequenas empresas na disputa do mercado, tudo se
resume a “dar empregos” ou “promover o PIB”. É o mesmo argumento medíocre do
progressismo que tolera o neoextrativismo: o agronegócio sustenta nosso
crescimento, então às raias para índios e ecologia. Como se não fosse possível
pensar em outros modelos não inspirados em megalomanias macropolíticas e
macroeconômicas, impulsionando um menor no campo e na indústria, talvez sem o
mesmo impacto nos números, mas mais disseminado, distribuído, conectado com a
vida das pessoas e menos refém do capitalismo predatório que hoje corrói o
tecido urbano com condomínios, blocos gigantescos, estacionamentos e shopping
centers, ou o campo com barragens, monoculturas, exploração de trabalho escravo
e etnocídio indígena.
O
argumento jurídico é pequeno perto do que está em jogo: quando mesmo o Brasil
viveu uma “normalidade institucional” desse ponto de vista? Quando as garantias
individuais foram respeitadas até o limite em que esses juristas invocam, por
exemplo, com a população pobre? O direito é invocado como blindagem de classe,
ele se apresenta como uma fantasia que encobre as relações de poder e finge que
a decisão é principiológica, quando a rigor o que está em jogo é interesse de
classe. Alertar para erros e abusos jurídicos pontuais é mais que necessário.
Mas, quando se traduz o cenário em ruptura com um direito que estaria assentado
na normalidade e na lei, o que se faz é revestir privilégio em direito,
confundir blindagem e garantia. As críticas que se faz em torno dos limites dos
poderes judiciais ou dos abusos acusatórios do Ministério Público em geral
estão corretas e são justas, mas daí a considerar que isso significaria, em
termos políticos, uma ruptura institucional é um passo que ignora a forma
normal que funciona o sistema penal. É bom lembrar que boa
parte dos juristas que hoje anunciam o estado de exceção devido ao
golpe parlamentar ou, pior ainda, diante das violações de direitos individuais
de Lula protestavam quando se criticava a violência policial diante das
manifestações, as operações militares nas favelas cariocas ou a repressão ao
#naovaitercopa como medidas de exceção. É preciso então decidir: se vivemos em
estado de exceção, é preciso reconsiderar as posições anteriores, perceber que
ele começou bem cedo (na verdade, nunca saímos) e extrair as conclusões
devidas disso (que certamente não convergem para um garantismo); se, por
outro lado, trata-se de afirmar a normalidade institucional, então as recentes
violações não são suficientes para nos jogar em outro momento, pois lá atrás
tampouco eram.
Finalmente,
o argumento conservador, por ser baseado no medo, é muito frágil. A pergunta é
sempre a mesma: o que fazer, então? Silenciar diante do desvio de dinheiro
público, fazendo vista grossa à colonização da esfera pública pelos poderosos?
Não enfrentar os interesses dominantes porque, ao fim e ao cabo, eles dão
empregos e fazem crescer a economia? Construir uma aura santa sobre os
políticos de esquerda que os tornam imunes a investigações? Evidentemente,
nenhuma dessas posições se sustenta minimamente.
O
momento é extraordinário porque, ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se
abre uma janela histórica para formular novos projetos. É verdade que o processo
atual é um diagrama complexo de interesses em que mídia, burocracia judiciária,
mercado financeiro e oligarquias políticas tentam impor suas cartas. A questão,
no entanto, é deixar de lado as teorias conspiratórias, passando uma navalha de
Ockham, e se focar no entrechoque aleatório que gera o imponderável. Mais que
nunca, a imagem de Lucrécio, revivida por Althusser, hoje parece dar frutos.
Não o grande esqueleto ideal platônico, a República organizada e ordenada, mas
o choque de átomos que provoca encontros e desvios, sendo irredutível a
qualquer configuração prévia que se possa imprimir. A energia destituinte pode
ser revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto e lhe
dar plasticidade. As pessoas não estão interessadas em defesas de figurões ou
partidos, ou de identidades políticas, mas de ideias. Os liberais já
apresentaram — a ganharam alguma força popular — seu
projeto de futuro. Eles querem um Estado menor e mais eficiente, um mercado
mais competitivo, uma educação mais individualista e meritocrática e uma ética
do trabalho forte.
E
o outro lado? Não está claro ainda o projeto. É a janela que se abre para
pensarmos um modelo descentralizado de política, que possa aproximar mais o
cidadão do representante, com inovações como mandatos coletivos, municípios
fortes e muitas outras. Um modelo de economia pautado na inovação tecnológica,
que aproveita a energia criativa do brasileiro e pensa a indústria fora do
modelo decrépito da fábrica, estimulando pequenos empreendimentos, mais próximo
do local, em detrimento dos grandes players. Um modelo ambiental que
estabeleça um balanço justo entre os seres vivos que compõe a ecologia
brasileira, dos biomas à atmosfera, das profundezas à floresta, do mineral ao
humano, do campo à cidade. Um modelo que permita restabelecer aquilo que nos
torna adversários dos liberais — uma noção forte do “social” — que
se inspire na solidariedade social como um pilar fundante para qualquer
coletivo e que relativize o papel do dinheiro, da riqueza, como uma única fonte
de reconhecimento social. Que valorize mais, por exemplo, o tempo como o bem
mais precioso que alguém pode ter, no contrafluxo da aceleração niilista que
percorre o mundo, ou a qualidade de vida como contraponto à hegemonia do poder
e do dinheiro. E com isso um novo modelo trabalhista e previdenciário ainda
inspirado na solidariedade social, e não na poupança individual, entendido o
coletivo como estrategicamente decisivo para uma boa vida em sociedade. Um
modelo que possa integrar educação, esportes e cultura, aproximando toda
vitalidade da cultura brasileira de dimensões que, até agora, só copiamos do
Norte. Um modelo que precisa ser inventado — mas cuja
gestação já está em andamento na sociedade brasileira, nas diversas
experiências bem-sucedidas, no conhecimento que já é produzido nas
universidades, nos movimentos sociais, nas experiências empreendedoras, nos
coletivos da Internet, nas bricolagens populares, nas tradições desperdiçadas.
Tudo
isso está em aberto. A decomposição do instituído é nossa oportunidade.
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