Jorge Seabra* | AbrilAbril |
opinião
“É
que estava a ver cada vez pior, os vermelhos mais desbotados, o rosa mais
amarelo e o negro a avançar!…» – dizia-me há dias um velho amigo e grande
cirurgião, falando da recuperação da visão após a catarata operada, com a sua
ironia política e o eterno sorriso de menino maroto.
E
talvez tenha sido este Verão de tragédias e as leituras que se procuram para
férias que me levaram a comprar o belo e bem documentado livro Quando
Portugal ardeu, do jornalista da Visão Miguel Carvalho, uma
revisitação às memórias do «Verão Quente» de 1975 e à onda de crimes da rede
bombista que atacou sindicatos e partidos de esquerda, alegando querer
restaurar a democracia «ameaçada pelos comunistas».
Estão
lá bem documentadas as cumplicidades de insuspeitos «democratas» com a CIA de
Carlucci, (condecorado por Mário Soares) e as ligações com a direita
salazarenta e revanchista, onde afloram conhecidos bombistas, como Ramiro
Moreira (premiado com um emprego na Petrogal e amnistiado por Mário Soares),
Manuel Marques da Costa, o «Águia», Teixeira Gomes e o Ângelo «de Trancoso»,
industriais nortenhos como Rui Castro Lopo, Abílio de Oliveira e Joaquim
Ferreira Torres, este último, silenciado a tiro por cúmplices, numa emboscada.
Estavam
também envolvidos altos comandos militares, como o comandante da Região Norte,
Brigadeiro Pires Veloso, chefes da PSP (Major Mota Freitas) e da PJ (Inspector
Júlio Regadas), e figuras gradas da Igreja, onde se destacam o arcebispo de
Braga e o Cónego Melo, este último com direito a estátua na cidade, talvez por
dizer «Deus abençoe as vossas mãos» aos bombistas do MDLP (Movimento
Democrático de Libertação de Portugal, de extrema-direita).
Entre
muitos outros, a rede incluía membros do Conselho da Revolução, como Sanches
Osório e Canto e Castro, e da Junta de Salvação Nacional, como o general Galvão
de Melo e o ex-presidente da República, general Spínola, que comandou, a partir
de Espanha e da Suíça, o terrorismo bombista do MDLP, e que afirmou querer
«eliminar fisicamente» os comunistas a Günter Wallraff, jornalista alemão que
se fez passar por traficante de armas, sendo depois premiado pelo 25 de
Novembro, que o elevou a Marechal.
Agentes
estrangeiros, essenciais «à festa», também não faltaram.
Para
além do chefe da orquestra, o embaixador dos USA, Frank Carlucci (mais tarde
chefe máximo da CIA), de Guérin-Sérac, «Morgan» (ex-OAS e director da Aginter
Press fascista) e Jay Salby, o «Castor», outro importante agente da CIA, até o
ex-oficial nazi Otto Skorzeny, mítico «herói» da libertação de Mussolini,
entrou no conluio vendendo armas à direita fascista do ELP (Exército de
Libertação de Portugal).
A
esta amálgama unida no «anticomunismo» (ou no «anti-PCP»), também se juntou a
esquerda dita «radical», infiltrada, como o PRP/BR, onde militava Artur
Albarran (mais tarde locutor da TV e sócio de Carlucci num negócio
imobiliário), ou o MRPP, de Arnaldo Matos.
Este
último, para além de «viver à larga» – «…são como um saco para onde o dinheiro
é atirado, não se sabe por quem…», no dizer de Saldanha Sanches, então seu
dirigente dissidente –, trabalhava contra «os revisas do PC», colaborando na
preparação do golpe de 25 de Novembro, mantendo contactos «discretos» com
Soares, Eanes e Sá Carneiro, que publicamente atacavam com a senha habitual.
Essa
duplicidade e ajuda à contra-revolução, foram também alegremente confirmadas
pelos seus militantes de então, Ana Gomes (agora PS) e Fernando Rosas (BE), em
entrevista ao programa «Baseado numa história verídica» do canal Q, de 7
de Julho de 2017.
Nesta
cena de enganos, com centenas de ataques a centros de trabalho e sedes de
partidos da esquerda, com mortos em carros, casas mandadas pelos ares e bombas
na embaixada de Cuba que causaram duas vítimas, todos – da CIA de Carlucci às
«fundações» da social-democracia europeia, dos Espírito Santo, Mello e
Champalimaud aos fascistas do ELP, do MDLP, da CODECO e da Aginter Press, dos
mercenários da FLNA de Holden Roberto e Chipenda aos «moderados» do PS, PSD e
CDS, incluindo os «revolucionários» do MRPP e do PRP/BR – apoiaram implícita ou
explicitamente a onda de terror contra sindicatos e partidos de esquerda, tendo
como alvo a CGTP, MDP, UDP e PCP.
Vale
a pena rever os acontecimentos desse Verão de 75, agora com mais informação e
com os olhos que o tempo nos dá, para percebermos que, quando pensamos saber
tudo o que o diabo amassou, descobrimos que foi ainda pior, que a violência foi
mais extensa e brutal, que a mentira foi mais descarada e perversa, que a «vaga
de fundo do povo português» (como dirigentes do PPD, CDS e do PS lhe chamavam)
foi mais encenada e planeada, misturando política e marginalidade,
anticomunismo e puro roubo, fanatismo e trafico de divisas, tudo na maior
impunidade, com homens de charuto em hotéis de luxo e jantares em tascas com
«mulheres e vinho», a que nem sequer faltou a exploração dos operacionais que
recebiam migalhas dos muitos milhões «doados» para a «libertação de Portugal».
Ler
o livro Quando Portugal ardeu, que completa outras importantes obras sobre
o tema, como O 25 de Novembro a Norte – O processo Revolucionário no ano
de 75, de Jorge Sarabando Moreira, levanta também a ingénua pergunta se tudo
não teria sido diferente caso os intervenientes dessa conspiração contra os
avanços de Abril não tivessem então escondido e negado o que hoje é, pelos
próprios, afirmado sem pruridos e até com orgulho, confirmando factos e
cumplicidades que, na época, pareceriam inacreditáveis ou fruto de uma doentia
teoria da conspiração.
E,
no entanto, houve gente com coragem que investigou tudo, descobriu tudo, que
desmascarou tudo, homens honestos, como a PJ de Álvaro Guimarães Dias, Matos
Fernandes, Mouro Pinto, Vaz Tomé, Lopes Duarte, o coronel Ernesto Ramos e
colaboradores da PJ militar, e da SDCI, a informação militar, do Capitão de Mar
e Guerra Rodrigues Soares e camaradas, estes últimos presos logo a 26 de
Novembro.
Gente
impoluta que correu enormes riscos, enfrentando ameaças vindas de fora e das
próprias instituições a que pertenciam, a que o País nunca agradeceu
devidamente.
Apesar
do significado intrinsecamente antidemocrático da onda terrorista, para alguns
dos testemunhos do «centro» e da «esquerda moderada», tudo se passou como se
essa conjura constituísse apenas uma fase sombria mas incontornável da nossa
democracia e, por isso, ética e politicamente aceitável.
Nesta
encenação, entra também o «cerco» ao 1.º Congresso do CDS no Porto, invocado símbolo
da vocação ditatorial dos «comunas», acontecimento organizado e convocado por
militantes de todas as origens (Juventude Socialista, LCI, LUAR, PRP-BR,
OCMLP…), menos pelo PCP (!), que, em comunicados e nas palavras de Álvaro
Cunhal, «não organizou, não participou e não apoiou as manifestações» contra o
congresso do CDS.
Apesar
disso, para os media nacionais e internacionais, o badalado «cerco»
passou a ser a prova incontestável da falta de sentido democrático do PCP, (o Daily
Telegraph dizia que «reflectia uma técnica comunista clássica»), assumindo
ainda hoje, a direita, o papel de virginal vítima, enquanto, por trás do pano,
organizava a onda de incêndios, atentados à bomba e fuga de capitais que
preparou o 25 de Novembro.
Chegou-se
até a querer «dividir» o país com uma zona «livre», a norte de Rio Maior, terra
das célebres mocas (símbolo da sua «democracia»…), com o governo de Mário
Soares a ameaçar «fugir» para o Porto, onde ficaria protegido «dos vermelhos»
pelo ELP e pelo MDLP de Alpoim Galvão e Spínola, com a bênção do Cónego Melo.
António
Taborda, prestigiado advogado e um dos defensores das vítimas da rede bombista,
mais de 40 anos depois, ouvido por Miguel Carvalho, concluiu:
«Para
mim, estava tudo harmonizado entre o embaixador norte-americano Frank Carlucci,
o Mário Soares, o MDLP, o ELP e a arquidiocese de Braga».
Como
dizia Ramiro Moreira, o bombista-mor: «Era tudo anticomunismo! Era uma festa!».
Talvez
essa experiência nos permita perceber melhor como se organizam e desenvolvem
«revoltas» como a da Praça Maidan, na Ucrânia, ou os boicotes e as violentas
manifestações anti-governamentais na Venezuela.
Em
Portugal, a «guetização» do PCP e da esquerda à esquerda do PS, mantida desde o
25 de Novembro de 75, só nas últimas eleições foi em parte quebrada com a
inflexão do PS, forçado a abrir a negociação das condições mínimas para a
viabilização parlamentar de um governo socialista, na sequência do repúdio
eleitoral da política dos governos da troika.
O
fim do sequestro da democracia pelo chamado «arco do poder» do PS, PSD e CDS
representou, por isso, uma derrota maior dos que acobertam a defesa dos
interesses do grande capital com a instrumentalização de mentiras e
preconceitos anticomunistas.
A
recente onda de histeria da direita (ver artigo de João Miguel Tavares «Somos
todos demasiado tolerantes com o PC» – Público, 8/7/17) e a desesperada
invenção do «diabo» que faltava, chegado numa manhã de fumo ou de nevoeiro com
a exploração ad nauseam da tragédia de Pedrógão (cavalgando as
dificuldades criadas pela sua própria política de privatização e
desinvestimento nos serviços públicos), mostram, para além de enorme
hipocrisia, quão sensível ela é à quebra das alianças do Verão Quente de 75,
continuadas na comunicação social que persiste em falsear a realidade,
apresentando como uma ameaça à democracia os que por ela mais lutam e lutaram,
antes e depois do 25 de Abril, em Portugal, na Ucrânia, na Síria ou na
Venezuela.
Também
por isso, é difícil compreender os que, afirmando-se críticos da política agressiva
e de pilhagem neocolonial da União Europeia e dos USA no Médio Oriente ou na
América Latina, cedem à pressão da contra-informação da direita dando crédito à
velha receita dos «Verões quentes» da CIA, pondo-se ao lado dos Spínolas e
Cónegos Melo locais e das orquestradas campanhas contra governos eleitos que procuram
defender as populações dos seus desígnios de rapina.
Na
foto: Frank Carlucci, embaixador norte-americano em Portugal entre 1975 e 1978,
«acompanhou de perto» o Verão Quente de 1975 Créditos/ noticiasmagazine.pt
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