José
Goulão* | AbrilAbril | opinião
O
uso do termo «geringonça», insultando a solução de governo mais próxima da
vontade expressa dos cidadãos alcançada desde 25 de Novembro de 1975, é um acto
político trauliteiro, provocatório, mais uma violência contra os cidadãos por
parte daqueles que se saciam no lodo da austeridade.
A generalização
do termo «geringonça» aplicado ao governo constitucional português em
funções é, em primeiro lugar, um exemplar triunfo da propaganda reles e
reaccionária dominante, que assume, reverente, os joguinhos semânticos de
um político populista, cruel, perito em esconder a violência trauliteira sob
esgares simulando sorrisos.
Para
os portugueses familiarizados com o vocabulário tradicional, algum dele caído
em desuso, geringonça é um engenho mal-amanhado, atamancado, a trouxe-mouxe,
precário, susceptível de se desmoronar a qualquer momento por si ou com a ajuda
de um sopro, de um empurrãozinho.
Geringonça
é a imagem do efémero, de uma existência condenada, porque precariamente
sustentada por partes e peças que nada têm a ver umas com as outras, que não
encaixam ou, no limite, se repelem.
Na
boca do autor da suposta gracinha contra a fórmula de governo português
suportada pelos resultados eleitorais, pela Constituição e pela Assembleia da
República, o fascistóide Paulo Portas a quem os portugueses devem uma praga de
humilhações e sofrimentos – imposta em parceria com Passos Coelho, um
salazarzinho recalcado – o termo «geringonça» representa a velha
confusão entre o desejo e a realidade transformada em golpe político.
Partindo
daí, esse chefe da extrema-direita populista, agora encapotado, usou os seus
anseios como pilares de uma acção de propaganda e fez do
termo «geringonça» uma bandeira para tentar desacreditar e minar a
legitimidade do governo desde que começou a delinear-se a fórmula política que
o materializou.
Respeitando
as recomendações goebbelianas de repetir a mentira quantas vezes for necessário
até que se torne verdade, os megafones da «piadinha» de Paulo Portas
generalizaram-na com tal ímpeto que a palavra «geringonça» se tornou
corrente no vocabulário político, e mesmo quotidiano, substituindo até, quando
o descaramento passa a norma, o uso do substantivo «governo».
Na
sua génese política, «geringonça» era sinónimo de aberração. Nunca tal
coisa se vira no nosso «sistema democrático»; o entendimento de partidos à
esquerda do PS com os próprios socialistas era contranatura, antidemocrático,
um «suicídio», um desrespeito pela vontade dos portugueses, uma agressão
provocatória às normas da União Europeia e da NATO, enfim, um atentado contra o
venerável «arco da governação».
Com
a particularidade de o jongleur semântico que mais pugnou pela
disseminação desta expressão, «arco da governação», e respectiva generalização
ser o mesmo Paulo Portas. Não se trata, porém, de um talento nato ou de
coincidência: é resultado do aprofundamento da ciência da propaganda, da
mentira e da manipulação que se expressou, com uma agressividade doentia,
através do semanário Independente, do qual foram vítimas não só a esquerda como
até outros sectores políticos mais próximos do então director, isto é,
Paulo Portas – que o diga o actual Presidente da República.
Façamos
então de conta que «Geringonça» começou por ser uma manchete do extinto
semanário, até se transformar numa muleta política indispensável não apenas
quando o objectivo é desacreditar o actual executivo; usa-se já como uma
extensão colateral quando se trata, simplesmente, de encontrar um sinónimo de
governo. «Geringonça» foi um inegável êxito de propaganda, um tiro na mouche.
Contudo,
Paulo Portas, tal como aconteceu com Goebbels, não está imune a fracassos
sobretudo quando a realidade, talvez inesperada e surpreendente, faz
gato-sapato dos seus desejos. Aplicada ao governo português em funções, a
palavra «geringonça» acabou por revelar-se uma mentira malévola, à
qual de nada valeram as repetições que a generalizaram.
A
«geringonça» vem resistindo a todas as profecias dos que tentam fazê-la
ruir, a todos os descréditos e provocações, a todas as falsidades e invenções,
a todas os ventos inimigos e chantagistas que sopram de Bruxelas, Berlim e
Frankfurt, às manobras mais torpes como a utilização necrófila das vítimas da
catástrofe de Pedrogão Grande.
Quer
tudo isto dizer que o governo não é uma «geringonça»: afinal, é sustentado por
peças que são compatíveis embora diferentes, tem coerência interna apesar da
diversidade, forma um edifício equilibrado ainda que conjugando vectores
contraditórios.
E
assim se desmontou a «aberração», isto é, ficou demonstrado que existem
alternativas ao «arco da governação»: o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda podem
entender-se ao serviço do país, mesmo que muitos tenham sido os esforços – e os
golpes – para impôr uma solução única, habitual e falsamente regimental, versão
de contornos ditatoriais ainda que levemente mitigados.
O
governo não é perfeito, como não existem soluções políticas que funcionem como
relógios. Cada um de nós pode enumerar muitas circunstâncias e decisões em que
o actual Executivo não agiu de forma que se considere satisfatória,
consequente, firme.
Não
é isso, porém, que está em causa nestas linhas, mas sim a miserável campanha
que, desde o início, foi lançada para minar o seu desempenho, o fito
catastrofista de desencadear uma crise política a todo o custo, o desrespeito
inerente pelos interesses, os direitos e a vida dos cidadãos portugueses.
Apesar
dessa ofensiva marginal, que nada tem a ver com debate político, o governo
continua em funções e governa; alguns profetas que lhe vaticinaram três meses
de vida, ou menos, deram um giro de 180 graus na sua veia divinatória e
garantem agora que cumprirá o mandato constitucional. Como se também eles tivessem
sido enganados pelo baptismo, talvez sugerido a partir dos recantos esconsos de
um decrépito submarino alemão, por desejarem ardentemente que o desejo e a
realidade se casassem.
Sabendo
que o caminho deste governo também se faz caminhando, as profecias quando ao
seu destino não cabem, igualmente, nestas linhas.
Da
sua resistência contra ventos, marés, agouros e trapaças é possível, porém,
tirar algumas conclusões que merecem reflexão numa era em que Portugal é uma
excepção ao descalabro político que infecta a Europa.
O
governo de Portugal, contrariando os ciclos dominantes nos países ditos
«aliados», demonstra que é possível fazer política e praticar a democracia,
apesar de manobradores e provocadores como o inventor da «geringonça» e
outros como ele – rotundamente maioritários no ambiente dominante –
achincalharem a política e asfixiarem a democracia.
O
governo de Portugal demonstra que é possível fazer vingar a coragem política
mesmo quando se trata de enfrentar e vencer um sistema enquistado, construído
por interesses e organizações de poder que dão como adquirida a vigência de
regras e normas falsas para liquidar a democracia e retirar a capacidade de
decisão aos cidadãos. Esta lição é válida olhando o passado recente, o presente
e também o futuro.
Enquanto
os profetas da «geringonça» vaticinavam a hecatombe no país, o descalabro
para os cidadãos, o descrédito e o isolamento nacionais, eis que Portugal
emergiu das trevas passistas, portistas e troikianas com uma capacidade de
afirmação interna e externa reveladora de uma vitalidade e uma capacidade ainda
longe de esgotarem as suas imensas potencialidades. De tal forma se distingue,
em contradição com as correntes de confusão e instabilidade reinantes na
Europa, que alguns lhe chamam «o país da moda».
Repudiar
o termo «geringonça» aplicado à experiência de governo em curso em
Portugal não é, como alegam alguns, um sinal de falta de sentido de humor ou
uma manifestação de «cinzentismo». Pelo contrário, é um acto de higiene
política, de esclarecimento, de culto democrático.
Porque
o recurso à palavra «geringonça» neste contexto não foi uma graçola de
tertúlia, um dichote de cenáculo, um chiste inócuo de um editorialista sem
coluna em registo de realidade virtual.
O
uso do termo «geringonça», insultando a solução de governo mais próxima da
vontade expressa dos cidadãos alcançada desde 25 de Novembro de 1975, é um acto
político trauliteiro, provocatório, mais uma violência contra os cidadãos por
parte daqueles que se saciam no lodo da austeridade.
«Geringonça» não
é uma brincadeira inocente, é um acto de violência irreprimida sob um pérfido
manto jocoso.
Por
isso, é mais do que hora de denunciar o uso de tal termo aplicado ao actual
governo. Será um acto de reforço da estabilidade, de protecção da democracia,
de lucidez política.
*Jornalista
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