segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Portugal | GERINGONÇA



José Goulão* | AbrilAbril | opinião

O uso do termo «geringonça», insultando a solução de governo mais próxima da vontade expressa dos cidadãos alcançada desde 25 de Novembro de 1975, é um acto político trauliteiro, provocatório, mais uma violência contra os cidadãos por parte daqueles que se saciam no lodo da austeridade.

A generalização do termo «geringonça» aplicado ao governo constitucional português em funções é, em primeiro lugar, um exemplar triunfo da propaganda reles e reaccionária dominante, que assume, reverente, os joguinhos semânticos de um político populista, cruel, perito em esconder a violência trauliteira sob esgares simulando sorrisos.

Para os portugueses familiarizados com o vocabulário tradicional, algum dele caído em desuso, geringonça é um engenho mal-amanhado, atamancado, a trouxe-mouxe, precário, susceptível de se desmoronar a qualquer momento por si ou com a ajuda de um sopro, de um empurrãozinho.

Geringonça é a imagem do efémero, de uma existência condenada, porque precariamente sustentada por partes e peças que nada têm a ver umas com as outras, que não encaixam ou, no limite, se repelem.

Na boca do autor da suposta gracinha contra a fórmula de governo português suportada pelos resultados eleitorais, pela Constituição e pela Assembleia da República, o fascistóide Paulo Portas a quem os portugueses devem uma praga de humilhações e sofrimentos  – imposta em parceria com Passos Coelho, um salazarzinho recalcado – o termo «geringonça» representa a velha confusão entre o desejo e a realidade transformada em golpe político.

Partindo daí, esse chefe da extrema-direita populista, agora encapotado, usou os seus anseios como pilares de uma acção de propaganda e fez do termo «geringonça» uma bandeira para tentar desacreditar e minar a legitimidade do governo desde que começou a delinear-se a fórmula política que o materializou.

Respeitando as recomendações goebbelianas de repetir a mentira quantas vezes for necessário até que se torne verdade, os megafones da «piadinha» de Paulo Portas generalizaram-na com tal ímpeto que a palavra «geringonça» se tornou corrente no vocabulário político, e mesmo quotidiano, substituindo até, quando o descaramento passa a norma, o uso do substantivo «governo».

Na sua génese política, «geringonça» era sinónimo de aberração. Nunca tal coisa se vira no nosso «sistema democrático»; o entendimento de partidos à esquerda do PS com os próprios socialistas era contranatura, antidemocrático, um «suicídio», um desrespeito pela vontade dos portugueses, uma agressão provocatória às normas da União Europeia e da NATO, enfim, um atentado contra o venerável «arco da governação».

Com a particularidade de o jongleur semântico que mais pugnou pela disseminação desta expressão, «arco da governação», e respectiva generalização ser o mesmo Paulo Portas. Não se trata, porém, de um talento nato ou de coincidência: é resultado do aprofundamento da ciência da propaganda, da mentira e da manipulação que se expressou, com uma agressividade doentia, através do semanário Independente, do qual foram vítimas não só a esquerda como até outros sectores políticos mais próximos do então director, isto é, Paulo Portas – que o diga o actual Presidente da República.

Façamos então de conta que «Geringonça» começou por ser uma manchete do extinto semanário, até se transformar numa muleta política indispensável não apenas quando o objectivo é desacreditar o actual executivo; usa-se já como uma extensão colateral quando se trata, simplesmente, de encontrar um sinónimo de governo. «Geringonça» foi um inegável êxito de propaganda, um tiro na mouche.

Contudo, Paulo Portas, tal como aconteceu com Goebbels, não está imune a fracassos sobretudo quando a realidade, talvez inesperada e surpreendente, faz gato-sapato dos seus desejos. Aplicada ao governo português em funções, a palavra «geringonça» acabou por revelar-se uma mentira malévola, à qual de nada valeram as repetições que a generalizaram.

A «geringonça» vem resistindo a todas as profecias dos que tentam fazê-la ruir, a todos os descréditos e provocações, a todas as falsidades e invenções, a todas os ventos inimigos e chantagistas que sopram de Bruxelas, Berlim e Frankfurt, às manobras mais torpes como a utilização necrófila das vítimas da catástrofe de Pedrogão Grande.

Quer tudo isto dizer que o governo não é uma «geringonça»: afinal, é sustentado por peças que são compatíveis embora diferentes, tem coerência interna apesar da diversidade, forma um edifício equilibrado ainda que conjugando vectores contraditórios.

E assim se desmontou a «aberração», isto é, ficou demonstrado que existem alternativas ao «arco da governação»: o PS, o PCP e o Bloco de Esquerda podem entender-se ao serviço do país, mesmo que muitos tenham sido os esforços – e os golpes – para impôr uma solução única, habitual e falsamente regimental, versão de contornos ditatoriais ainda que levemente mitigados.

O governo não é perfeito, como não existem soluções políticas que funcionem como relógios. Cada um de nós pode enumerar muitas circunstâncias e decisões em que o actual Executivo não agiu de forma que se considere satisfatória, consequente, firme.

Não é isso, porém, que está em causa nestas linhas, mas sim a miserável campanha que, desde o início, foi lançada para minar o seu desempenho, o fito catastrofista de desencadear uma crise política a todo o custo, o desrespeito inerente pelos interesses, os direitos e a vida dos cidadãos portugueses.

Apesar dessa ofensiva marginal, que nada tem a ver com debate político, o governo continua em funções e governa; alguns profetas que lhe vaticinaram três meses de vida, ou menos, deram um giro de 180 graus na sua veia divinatória e garantem agora que cumprirá o mandato constitucional. Como se também eles tivessem sido enganados pelo baptismo, talvez sugerido a partir dos recantos esconsos de um decrépito submarino alemão, por desejarem ardentemente que o desejo e a realidade se casassem.

Sabendo que o caminho deste governo também se faz caminhando, as profecias quando ao seu destino não cabem, igualmente, nestas linhas.

Da sua resistência contra ventos, marés, agouros e trapaças é possível, porém, tirar algumas conclusões que merecem reflexão numa era em que Portugal é uma excepção ao descalabro político que infecta a Europa.

O governo de Portugal, contrariando os ciclos dominantes nos países ditos «aliados», demonstra que é possível fazer política e praticar a democracia, apesar de manobradores e provocadores como o inventor da «geringonça» e outros como ele – rotundamente maioritários no ambiente dominante – achincalharem a política e asfixiarem a democracia.

O governo de Portugal demonstra que é possível fazer vingar a coragem política mesmo quando se trata de enfrentar e vencer um sistema enquistado, construído por interesses e organizações de poder que dão como adquirida a vigência de regras e normas falsas para liquidar a democracia e retirar a capacidade de decisão aos cidadãos. Esta lição é válida olhando o passado recente, o presente e também o futuro.

Enquanto os profetas da «geringonça» vaticinavam a hecatombe no país, o descalabro para os cidadãos, o descrédito e o isolamento nacionais, eis que Portugal emergiu das trevas passistas, portistas e troikianas com uma capacidade de afirmação interna e externa reveladora de uma vitalidade e uma capacidade ainda longe de esgotarem as suas imensas potencialidades. De tal forma se distingue, em contradição com as correntes de confusão e instabilidade reinantes na Europa, que alguns lhe chamam «o país da moda».

Repudiar o termo «geringonça» aplicado à experiência de governo em curso em Portugal não é, como alegam alguns, um sinal de falta de sentido de humor ou uma manifestação de «cinzentismo». Pelo contrário, é um acto de higiene política, de esclarecimento, de culto democrático.

Porque o recurso à palavra «geringonça» neste contexto não foi uma graçola de tertúlia, um dichote de cenáculo, um chiste inócuo de um editorialista sem coluna em registo de realidade virtual.

O uso do termo «geringonça», insultando a solução de governo mais próxima da vontade expressa dos cidadãos alcançada desde 25 de Novembro de 1975, é um acto político trauliteiro, provocatório, mais uma violência contra os cidadãos por parte daqueles que se saciam no lodo da austeridade.

«Geringonça» não é uma brincadeira inocente, é um acto de violência irreprimida sob um pérfido manto jocoso.

Por isso, é mais do que hora de denunciar o uso de tal termo aplicado ao actual governo. Será um acto de reforço da estabilidade, de protecção da democracia, de lucidez política.

*Jornalista

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