Martinho Júnior | Luanda
A
HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ!
Em
mais de dois anos em que estive fechado e “incomunicável”, com outros
camaradas do MPLA, da Segurança de Estado e das FAPLA, no bloco prisional das
Operações da Segurança do Estado em função do que estava a ser decidido por via
do processo 76/86, em que injustamente foram julgados e condenados alguns dos
quadros mais operativamente decisivos daqueles Serviços e na 1ª metade dos anos
80 do século XX em Angola, (tendo em conta a natureza do seu empenhamento e a
tipologia de missões, entre eles eu próprio), ao fim e ao cabo por que a sua
opção de rigor, honestidade e dignidade parecia ser insuportável para muitos já
há 32 anos, a minha companheira Teresa Cassule, embora me tivesse sido vedado
vê-la, nunca faltou com o farnel diário e um pouco de café (mesmo nas mais
apertadas celas nunca dispensei o cafezinho fiel companheiro de "séculos
de solidão"!)...
Imaginam
assim a quem eu devo tão explícita e directamente, uma parte da minha peregrina
vida, desde o dia 24 de Março de 1986, até cinco anos depois?...
Foi
como nascer de novo e voltar a nascer e não sei quantas vezes voltar a nascer,
em partos surpreendentes, alguns dolorosos, outros indeléveis, todos eles com
suas próprias controvérsias e emoções, de que jamais antes pudera supor...
afinal de contas nem sei qual o dia de meu aniversário que não se pode limitar
ao parto de minha querida mãe que me deu o ser… o copo a erguer será sempre um
copo de memória e de saudade, enquanto houver em mim sopro de vida e apesar de
durante tanto tempo ter sido “um homem da cor do silêncio”, por que me
parece até que todos os dias haveria algo a comemorar, também por que apesar de
tudo avanços consideráveis se haviam conseguido mesmo assim alcançar!...
A
18 de Julho de 1999, oito anos depois de minha soltura e amnistia formalizada a
18 de Março de 1991, fui à Catumbela pois o então Chefe do Estado-Maior General
das FAA, camarada general João de Matos me havia chamado ao Comando das
Operações, em função das tarefas que voluntariamente me havia empenhado em
benefício das FAA e depois de acordo verbal para tal, com a intervenção de
outros mais camaradas.
Havia
decidido antes impor a mim próprio não mais realizar qualquer tipo de operações
e limitar-me à informação e análise onde fosse preciso, pois não poderia
permitir alguma vez mais que qualquer das actividades que desempenhasse com o
brio, a honestidade e o respeito que o estado angolano me merecia, fosse
interpretada fosse por quem fosse como um crime de lesa pátria, conforme já
havia injusta e insensivelmente ocorrido, quando tanto estava ainda em jogo em
a Angola, a que eu havia já dado a minha modesta contribuição para nascer!...
Mesmo
com minha companheira Teresa Cassule a 18 de Julho de 1999 internada na
Meditex, não pude deixar de responder à chamada, na espectativa que não
demorasse assim tanto o encontro e de manhã cedo lá fui para a Catumbela, num
Beechcraft da GIAS que para o efeito me ia levar e trazer…
Os
camaradas José Herculano Pires, “Revolução” e Alberto José Barros
Antunes Baptista, “Kipaka” trabalhavam meio clandestinamente comigo, no
apoio ao Estado-Maior General das FAA num contentor propiciado pela WAPO,
empresa onde eu labutava por razões de sobrevivência e da minha própria
família, numa altura em que, levando a cabo as minhas tarefas de rotina, eu
assumia o trabalho extra de pesquisa de informações e análise da situação para
contribuir enquanto suporte do EMG das FAA.
O
camarada “Revolução” estava quase sempre na pesquisa de informação no
terreno, lidando com uma rede de patriotas camponeses que em clandestinidade
faziam no Bié as necessárias pesquisas operativas em terreno de Savimbi e em
estreita ligação com o camarada general Simeone Mucuni, enquanto ele esteve
vivo…
Enquanto
o camarada general Simeone Mucuni esteve vivo (morreria já no fim da tomada do
Andulo, a 23 de Outubro de 1999), tudo correu a contento e os avanços
sucederam-se até ao culminar da Operação Restauro.
No
dia da morte do camarada general Simeone Mucuni, sob o pseudónimo de Martinho
Júnior no ACTUAL nº 194 (que anunciava que “caiu o pano sobre Andulo”),
detalhava com cópia das cartas de Savimbi, os “êxitos” das
autoridades coloniais portuguesas no âmbito da Operação Madeira… desacreditar
Savimbi na precisa altura da perda do que viria a ser o seu último bastião, era
contribuir para que a paz ficasse mais próxima e nesse caso a verdade histórica
nada tinha para escamotear, mesmo que fosse utilizada em termos de contrapropaganda
em tempo e espaço oportuno!
Grande
parte da informação operativa colectada no terreno pelo camarada “Revolução” serviu
para a implementação da Operação Restauro, cujo desfecho foi uma vitória
retumbante, sublinhada com uma ida do camarada João de Matos em visita ao
Andulo, depois dessa localidade ter sido recuperada definitivamente pelas
unidades das FAA.
Tínhamos
acordado que antes da informação vir para Luanda, o comandante das operações no
centro do país, o camarada general Simeone Mucuni, seria sempre municiado com
as informações e essa forma expedita resultou no grau de eficácia que foi
conseguido!
Um
dos nossos meios filmou essa visita do camarada general João de Matos, quando
ele, num blindado atravessou as imediações e toda a vila e “in loco” constatou
os primeiros dias da vitória sobre esse último bastião de Savimbi, (a partir do
qual Savimbi não se haveria mais de recompor)…
O
camarada “Kipaka” além de acompanhar e participar nas pesquisas que
eram necessário fazer tendo em conta a interligação da situação em toda a
região, do Atlântico aos Grandes Lagos, era importante para nós nas ligações
com o exterior do país, onde haviam capacidades meio adormecidas para
recuperar, no quadro da indispensável busca de informação que de outro modo nos
seria muito difícil ter acesso…
Foi
cordial e frutuoso o encontro entre mim e o camarada general João de Matos e
lembro-me que, entre muitas outras coisas que se passaram em revista, eu
apresentei a proposta de se considerar a “Organização Terrorista Armada de
Savimbi” (deliberadamente“OTAS”) como forma de se providenciar o
distanciamento da “somalização” de Savimbi (que eu tenho retratado
como choque neoliberal) da própria UNITA e numa altura em que muitos dos seus
até então subordinados, já se haviam corajosa e decididamente distanciado e
outros lutavam já, de forma aberta ou clandestina, do lado da República de
Angola.
O
camarada general João de Matos sempre levou em consideração esses aspectos que
davam substância crescente à própria República de Angola nas responsabilidades
de Chefe de Estado-Maior General das FAA e essa foi uma política que, mesmo que
não tenha explicitamente utilizado a nível público o rótulo de “OTAS”,
acabou por ser seguida à risca... um caminho aberto a pulso num mar de
dificuldades, mas irrevogável na direcção da paz!
Regressei
a Luanda no início da tarde e, quando chego à WAPO para guardar a documentação,
encontro a notícia do falecimento da minha companheira Teresa Cassule… um
ataque cardíaco tinha acontecido e suas já depauperadas forças não garantiram
mais a sua vida, enquanto estava na sala de reanimação para onde a haviam antes
transportado em desespero de causa…
Os
embates que tivemos, em especial desde 1985, causaram nela mossas
irrecuperáveis, inclusive sob o ponto de vista anímico e na parte que me toca,
devo também dizer que foi muito difícil sobreviver… essas serão outras
histórias para ir completando pouco a pouco, por que as memórias comportam
emoções e desencontros que são por si autênticas provas de vida e pelo meio há
dívidas que sei que será muito difícil ou impossível pagar… histórias de
resistência em tempo de sobrevivência!
Do
Estado-Maior General recebi uma dotação alimentar para o óbito, que ocorreu
onde residia, o único sinal de gratidão que tive do estado angolano enquanto
estive a dar daquele modo a minha contribuição ocorrida entre Julho de 1998 e
Março de 2000…
Naqueles
dias de meu pungente luto, recebi de Pango Aluquém muita gente, família e
amigos da falecida, mas demorava pouco no óbito, dormia pouco e desvairadamente
comia a horas mais desconexas… trabalhava no contentor da WAPO até à exaustão,
pois por experiência própria era assim que sempre fazia perante os obstáculos e
os infortúnios: o trabalho era um refúgio, como a exaustão um bálsamo e esse
ciclo de penitência humana impunha-se-me face ao que Angola tinha em jogo
(estava-se afincadamente a preparar a Operação Restauro)…
Acho
que cada um de nós envolvidos nas responsabilidades foi exigente, por vezes
muito exigente de si próprio, cada um à sua maneira e nas mais diversas
situações!
Das
mulheres angolanas, particularmente das mais humildes camponesas, por isso
guardo o meu maior respeito, carinho e emoção: sabendo tão pouco, elas não eram
obrigadas a tanto, muito menos desaparecer assim como a minha companheira
Teresa Cassule, do convívio com os vivos, face aos inesperados golpes e
infortúnios que em relação a mim ocorreram, quando a esperança para ela parecia
ter morrido antes do colapso de sua própria vida!
Essa
é uma das razões inabaláveis que por inteiro e não só por via do intelecto, me
vocacionam a assumir a cultura do movimento de libertação em África, a cultura
original do MPLA e a guardá-la como uma reserva transparente de vida e a
expô-la abandonando “o homem de cor do silêncio” que houvera que ser,
em proveito do percurso colectivo de todo o povo angolano!
Se
antes intelectualmente o já havia assumido, as provas de vida face às
adversidades obrigaram-me e obrigam-me sempre a continuar e é por isso que há
nexos de vida e de morte entre os angolanos, impossíveis de contornar, ou
esquecer…
A
luta continua e por isso, mesmo que tenha demorado mais de 30 anos para que em
paz e tirando partido dessa indispensável conquista, o rigor, a honestidade e a
dignidade possa regressar em pleno ao respeito que o estado angolano nos
merece, merece a todos, os mortos e os vivos que tanto fizeram para ele surgir
das trevas (também considero que dei a minha modesta contribuição para a sua
fundação), que tudo decorra em benefício de todo o povo angolano!...
Os
desaparecidos não podem deixar um vazio na memória, porque as nossas vidas
estiveram como pequenas gotas de água, envolvidas nas mesmas torrentes deste
rio que constitui um rumo, definindo a essência da pátria angolana e há que
preparar sempre o testemunho para o poder entregar às gerações vindouras!
Creio
que desde a minha ignota companheira Teresa Cassule, até aos camaradas “Revolução” e “Kipaka”, aos
camaradas general Simeone Mucuni e general João de Matos, todos eles
desaparecidos já na voragem do tempo mas jamais da minha memória de gota de
água, mesmo com as insuficiências que as houve (por vezes dolorosas nas suas
contradições), há uma lógica com sentido de vida que da minha parte há que
levar e honrar até ao fim!
Jamais
me foi explicado por que cargas de água o contentor onde trabalhei na WAPO em
apoio e ajuda ao Chefe do EMG das FAA foi fechado, o que me obrigou a dar por
finda a minha contribuição, quando nossos meios operavam no norte do Cuemba, já
com o Savimbi ao alcance… em Março de 2000 já se haviam localizado as viaturas
de que as tropas de Savimbi se haviam servido, que ficaram abandonadas numa
área grande entre a margem direita do Cuanza e a esquerda do curso inicial do
Luando, entre elas um dos Ouragan…
As
unidades das FAA que estavam a norte de Camacupa, só conseguiriam atravessar o
Cuanza três meses depois dos nossos meios o terem feito na imediata sequência
da travessia de Savimbi!...
Por
essa ocasião as deserções do lado da “OTAS” aumentaram abruptamente e
de modo a que Savimbi já não poderia mais recompor suas forças militares!
Por
isso, ao ver-me ao rigoroso espelho capaz de reflectir com clareza minha
própria imagem, não posso deixar de considerar sempre que, mesmo que as
interpretações de justiceiros de ocasião tergiversem o sentido das
responsabilidades, a história me absolverá!
Martinho
Júnior - Luanda,
11 de Novembro de 2017
Imagens:
Reproduções do ACTUAL nº 194 de 23 de Outubro de 1999;
Fotos
dos camaradas generais Simeone Mucuni e João de Matos, a quem Angola tanto deve
em nome da paz!
Da
minha autoria:
HONRAR
A MEMÓRIA DOS HERÓIS ANÓNIMOS MILITANTES DE TARIMBA DO MPLA! – http://paginaglobal.blogspot.com/2016/06/angola-honrar-memoria-dos-herois.html
A
LIBERDADE QUE SE ALCANÇOU ESTÁ SEDENTA DE AMOR E DE VIDA! – http://paginaglobal.blogspot.pt/2015/11/angola-liberdade-que-se-alcancou-esta.html
Outros
depoimentos e consultas:
Feitos
de Simione Mucune serão retratados em obra literária – http://tpa.sapo.ao/noticias/cultura/feitos-de-simione-mucune-serao-retratados-em-obra-literaria
Memória
do 1º aniversário da morte do camarada general Simeone Mucuni – http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/politica/2000/9/43/,78dd1707-ee4a-4fa7-80bf-d9a77af6dd0a.html
Morreu
o General João de Matos – comunicado do BP do MPLA – http://www.novojornal.co.ao/politica/interior/morreu-general-joao-baptista-de-matos---comunicado-do-bp-do-mpla-44328.html
João
de Matos: Até sempre nosso General – http://www.novojornal.co.ao/politica/interior/joao-de-matos-ate-sempre-nosso-general-44426.html
Testemunho
de Paulo Lara sobre o General João de Matos: “a história deu-lhe toda a
razão” – http://www.novojornal.co.ao/politica/interior/testemunho-de-paulo-lara-sobre-o-general-joao-de-matos-a-historia-deu-lhe-toda-a-razao-44341.html
Sem comentários:
Enviar um comentário