sábado, 2 de dezembro de 2017

Angola | INCONTORNÁVEL MEMÓRIA DO DIA 11 DE NOVEMBRO DE CADA ANO!



 Martinho Júnior | Luanda  

A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ!

Em mais de dois anos em que estive fechado e “incomunicável”, com outros camaradas do MPLA, da Segurança de Estado e das FAPLA, no bloco prisional das Operações da Segurança do Estado em função do que estava a ser decidido por via do processo 76/86, em que injustamente foram julgados e condenados alguns dos quadros mais operativamente decisivos daqueles Serviços e na 1ª metade dos anos 80 do século XX em Angola, (tendo em conta a natureza do seu empenhamento e a tipologia de missões, entre eles eu próprio), ao fim e ao cabo por que a sua opção de rigor, honestidade e dignidade parecia ser insuportável para muitos já há 32 anos, a minha companheira Teresa Cassule, embora me tivesse sido vedado vê-la, nunca faltou com o farnel diário e um pouco de café (mesmo nas mais apertadas celas nunca dispensei o cafezinho fiel companheiro de "séculos de solidão"!)...

Imaginam assim a quem eu devo tão explícita e directamente, uma parte da minha peregrina vida, desde o dia 24 de Março de 1986, até cinco anos depois?...

Foi como nascer de novo e voltar a nascer e não sei quantas vezes voltar a nascer, em partos surpreendentes, alguns dolorosos, outros indeléveis, todos eles com suas próprias controvérsias e emoções, de que jamais antes pudera supor... afinal de contas nem sei qual o dia de meu aniversário que não se pode limitar ao parto de minha querida mãe que me deu o ser… o copo a erguer será sempre um copo de memória e de saudade, enquanto houver em mim sopro de vida e apesar de durante tanto tempo ter sido “um homem da cor do silêncio”, por que me parece até que todos os dias haveria algo a comemorar, também por que apesar de tudo avanços consideráveis se haviam conseguido mesmo assim alcançar!...

A 18 de Julho de 1999, oito anos depois de minha soltura e amnistia formalizada a 18 de Março de 1991, fui à Catumbela pois o então Chefe do Estado-Maior General das FAA, camarada general João de Matos me havia chamado ao Comando das Operações, em função das tarefas que voluntariamente me havia empenhado em benefício das FAA e depois de acordo verbal para tal, com a intervenção de outros mais camaradas.

Havia decidido antes impor a mim próprio não mais realizar qualquer tipo de operações e limitar-me à informação e análise onde fosse preciso, pois não poderia permitir alguma vez mais que qualquer das actividades que desempenhasse com o brio, a honestidade e o respeito que o estado angolano me merecia, fosse interpretada fosse por quem fosse como um crime de lesa pátria, conforme já havia injusta e insensivelmente ocorrido, quando tanto estava ainda em jogo em a Angola, a que eu havia já dado a minha modesta contribuição para nascer!...

Mesmo com minha companheira Teresa Cassule a 18 de Julho de 1999 internada na Meditex, não pude deixar de responder à chamada, na espectativa que não demorasse assim tanto o encontro e de manhã cedo lá fui para a Catumbela, num Beechcraft da GIAS que para o efeito me ia levar e trazer…

Os camaradas José Herculano Pires, “Revolução” e Alberto José Barros Antunes Baptista, “Kipaka” trabalhavam meio clandestinamente comigo, no apoio ao Estado-Maior General das FAA num contentor propiciado pela WAPO, empresa onde eu labutava por razões de sobrevivência e da minha própria família, numa altura em que, levando a cabo as minhas tarefas de rotina, eu assumia o trabalho extra de pesquisa de informações e análise da situação para contribuir enquanto suporte do EMG das FAA.

O camarada “Revolução” estava quase sempre na pesquisa de informação no terreno, lidando com uma rede de patriotas camponeses que em clandestinidade faziam no Bié as necessárias pesquisas operativas em terreno de Savimbi e em estreita ligação com o camarada general Simeone Mucuni, enquanto ele esteve vivo…

Enquanto o camarada general Simeone Mucuni esteve vivo (morreria já no fim da tomada do Andulo, a 23 de Outubro de 1999), tudo correu a contento e os avanços sucederam-se até ao culminar da Operação Restauro.

No dia da morte do camarada general Simeone Mucuni, sob o pseudónimo de Martinho Júnior no ACTUAL nº 194 (que anunciava que “caiu o pano sobre Andulo”), detalhava com cópia das cartas de Savimbi, os “êxitos” das autoridades coloniais portuguesas no âmbito da Operação Madeira… desacreditar Savimbi na precisa altura da perda do que viria a ser o seu último bastião, era contribuir para que a paz ficasse mais próxima e nesse caso a verdade histórica nada tinha para escamotear, mesmo que fosse utilizada em termos de contrapropaganda em tempo e espaço oportuno!

Grande parte da informação operativa colectada no terreno pelo camarada “Revolução” serviu para a implementação da Operação Restauro, cujo desfecho foi uma vitória retumbante, sublinhada com uma ida do camarada João de Matos em visita ao Andulo, depois dessa localidade ter sido recuperada definitivamente pelas unidades das FAA.

Tínhamos acordado que antes da informação vir para Luanda, o comandante das operações no centro do país, o camarada general Simeone Mucuni, seria sempre municiado com as informações e essa forma expedita resultou no grau de eficácia que foi conseguido!

Um dos nossos meios filmou essa visita do camarada general João de Matos, quando ele, num blindado atravessou as imediações e toda a vila e “in loco” constatou os primeiros dias da vitória sobre esse último bastião de Savimbi, (a partir do qual Savimbi não se haveria mais de recompor)…

O camarada “Kipaka” além de acompanhar e participar nas pesquisas que eram necessário fazer tendo em conta a interligação da situação em toda a região, do Atlântico aos Grandes Lagos, era importante para nós nas ligações com o exterior do país, onde haviam capacidades meio adormecidas para recuperar, no quadro da indispensável busca de informação que de outro modo nos seria muito difícil ter acesso…

Foi cordial e frutuoso o encontro entre mim e o camarada general João de Matos e lembro-me que, entre muitas outras coisas que se passaram em revista, eu apresentei a proposta de se considerar a “Organização Terrorista Armada de Savimbi” (deliberadamente“OTAS”) como forma de se providenciar o distanciamento da “somalização” de Savimbi (que eu tenho retratado como choque neoliberal) da própria UNITA e numa altura em que muitos dos seus até então subordinados, já se haviam corajosa e decididamente distanciado e outros lutavam já, de forma aberta ou clandestina, do lado da República de Angola.

O camarada general João de Matos sempre levou em consideração esses aspectos que davam substância crescente à própria República de Angola nas responsabilidades de Chefe de Estado-Maior General das FAA e essa foi uma política que, mesmo que não tenha explicitamente utilizado a nível público o rótulo de “OTAS”, acabou por ser seguida à risca... um caminho aberto a pulso num mar de dificuldades, mas irrevogável na direcção da paz!

Regressei a Luanda no início da tarde e, quando chego à WAPO para guardar a documentação, encontro a notícia do falecimento da minha companheira Teresa Cassule… um ataque cardíaco tinha acontecido e suas já depauperadas forças não garantiram mais a sua vida, enquanto estava na sala de reanimação para onde a haviam antes transportado em desespero de causa…

Os embates que tivemos, em especial desde 1985, causaram nela mossas irrecuperáveis, inclusive sob o ponto de vista anímico e na parte que me toca, devo também dizer que foi muito difícil sobreviver… essas serão outras histórias para ir completando pouco a pouco, por que as memórias comportam emoções e desencontros que são por si autênticas provas de vida e pelo meio há dívidas que sei que será muito difícil ou impossível pagar… histórias de resistência em tempo de sobrevivência!

Do Estado-Maior General recebi uma dotação alimentar para o óbito, que ocorreu onde residia, o único sinal de gratidão que tive do estado angolano enquanto estive a dar daquele modo a minha contribuição ocorrida entre Julho de 1998 e Março de 2000…

Naqueles dias de meu pungente luto, recebi de Pango Aluquém muita gente, família e amigos da falecida, mas demorava pouco no óbito, dormia pouco e desvairadamente comia a horas mais desconexas… trabalhava no contentor da WAPO até à exaustão, pois por experiência própria era assim que sempre fazia perante os obstáculos e os infortúnios: o trabalho era um refúgio, como a exaustão um bálsamo e esse ciclo de penitência humana impunha-se-me face ao que Angola tinha em jogo (estava-se afincadamente a preparar a Operação Restauro)…

Acho que cada um de nós envolvidos nas responsabilidades foi exigente, por vezes muito exigente de si próprio, cada um à sua maneira e nas mais diversas situações!

Das mulheres angolanas, particularmente das mais humildes camponesas, por isso guardo o meu maior respeito, carinho e emoção: sabendo tão pouco, elas não eram obrigadas a tanto, muito menos desaparecer assim como a minha companheira Teresa Cassule, do convívio com os vivos, face aos inesperados golpes e infortúnios que em relação a mim ocorreram, quando a esperança para ela parecia ter morrido antes do colapso de sua própria vida!

Essa é uma das razões inabaláveis que por inteiro e não só por via do intelecto, me vocacionam a assumir a cultura do movimento de libertação em África, a cultura original do MPLA e a guardá-la como uma reserva transparente de vida e a expô-la abandonando “o homem de cor do silêncio” que houvera que ser, em proveito do percurso colectivo de todo o povo angolano!

Se antes intelectualmente o já havia assumido, as provas de vida face às adversidades obrigaram-me e obrigam-me sempre a continuar e é por isso que há nexos de vida e de morte entre os angolanos, impossíveis de contornar, ou esquecer…

A luta continua e por isso, mesmo que tenha demorado mais de 30 anos para que em paz e tirando partido dessa indispensável conquista, o rigor, a honestidade e a dignidade possa regressar em pleno ao respeito que o estado angolano nos merece, merece a todos, os mortos e os vivos que tanto fizeram para ele surgir das trevas (também considero que dei a minha modesta contribuição para a sua fundação), que tudo decorra em benefício de todo o povo angolano!...

Os desaparecidos não podem deixar um vazio na memória, porque as nossas vidas estiveram como pequenas gotas de água, envolvidas nas mesmas torrentes deste rio que constitui um rumo, definindo a essência da pátria angolana e há que preparar sempre o testemunho para o poder entregar às gerações vindouras!

Creio que desde a minha ignota companheira Teresa Cassule, até aos camaradas “Revolução” e “Kipaka”, aos camaradas general Simeone Mucuni e general João de Matos, todos eles desaparecidos já na voragem do tempo mas jamais da minha memória de gota de água, mesmo com as insuficiências que as houve (por vezes dolorosas nas suas contradições), há uma lógica com sentido de vida que da minha parte há que levar e honrar até ao fim!

Jamais me foi explicado por que cargas de água o contentor onde trabalhei na WAPO em apoio e ajuda ao Chefe do EMG das FAA foi fechado, o que me obrigou a dar por finda a minha contribuição, quando nossos meios operavam no norte do Cuemba, já com o Savimbi ao alcance… em Março de 2000 já se haviam localizado as viaturas de que as tropas de Savimbi se haviam servido, que ficaram abandonadas numa área grande entre a margem direita do Cuanza e a esquerda do curso inicial do Luando, entre elas um dos Ouragan…

As unidades das FAA que estavam a norte de Camacupa, só conseguiriam atravessar o Cuanza três meses depois dos nossos meios o terem feito na imediata sequência da travessia de Savimbi!...

Por essa ocasião as deserções do lado da “OTAS” aumentaram abruptamente e de modo a que Savimbi já não poderia mais recompor suas forças militares!

Por isso, ao ver-me ao rigoroso espelho capaz de reflectir com clareza minha própria imagem, não posso deixar de considerar sempre que, mesmo que as interpretações de justiceiros de ocasião tergiversem o sentido das responsabilidades, a história me absolverá!

Martinho Júnior - Luanda, 11 de Novembro de 2017

Imagens:
Reproduções do ACTUAL nº 194 de 23 de Outubro de 1999;
Fotos dos camaradas generais Simeone Mucuni e João de Matos, a quem Angola tanto deve em nome da paz!

Da minha autoria:
HONRAR A MEMÓRIA DOS HERÓIS ANÓNIMOS MILITANTES DE TARIMBA DO MPLA! – http://paginaglobal.blogspot.com/2016/06/angola-honrar-memoria-dos-herois.html
A LIBERDADE QUE SE ALCANÇOU ESTÁ SEDENTA DE AMOR E DE VIDA! – http://paginaglobal.blogspot.pt/2015/11/angola-liberdade-que-se-alcancou-esta.html

Outros depoimentos e consultas:
Feitos de Simione Mucune serão retratados em obra literária – http://tpa.sapo.ao/noticias/cultura/feitos-de-simione-mucune-serao-retratados-em-obra-literaria
Memória do 1º aniversário da morte do camarada general Simeone Mucuni – http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/politica/2000/9/43/,78dd1707-ee4a-4fa7-80bf-d9a77af6dd0a.html
Testemunho de Paulo Lara sobre o General João de Matos: “a história deu-lhe toda a razão” – http://www.novojornal.co.ao/politica/interior/testemunho-de-paulo-lara-sobre-o-general-joao-de-matos-a-historia-deu-lhe-toda-a-razao-44341.html

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