Tinha
na cabeça que tudo no mundo se conseguia por um exercício doloroso de vontade e
que as frases tinham de ter um encantamento que convocasse o primeiro sentido
da ação das palavras. Eram também estas que mudavam o mundo. Evocar os nossos
mortos e a nossa memória era a forma de fazer esse exorcismo
Nuno
Ramos de Almeida | jornal i | opinião
Para
mim, o Natal sempre foi uma merda. A única utilidade que lhe vejo é convocar o
passado e lembrar-me das pessoas que já não caminham a nosso lado. Estranho que
um nascimento inscrito na nossa cultura apenas me inspire a névoa da memória.
Não consigo encontrar alegria na música irritante nem nas iluminações garridas.
A embirração é tão forte que o único filme em que puxo pelos nazis é na “Música
no Coração”. Os jantares de família enfadam-me. Só vejo fantasmas a pairar
sobre as rabanadas. Muitas vezes vêm--me à memória estas recordações sobre as
quais já escrevi há anos.
Aproximava-se
o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho.
Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não
me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha.
Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as
casas clandestinas onde viviam crianças. Era membro de uma comunidade, embora
não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma
quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como
chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas, na altura, isso fazia-me sentir
que não estávamos sozinhos.