Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Noticias | opinião
Aprendi, nas aulas de economia e,
em particular, com economistas qualificados com quem tenho trabalhado, que os
filósofos iluministas que no século XVIII pensaram o capitalismo antes de ele
existir imaginaram uma sociedade em que o trabalho se dividiria entre
indivíduos tornados especialistas em determinadas atividades produtivas e ao
mesmo tempo mercadores. Imaginavam essa sociedade não só próspera, como
pacífica. Para eles, o comércio, ao contrário da guerra e da pilhagem,
representava uma forma "doce" de relacionamento que possibilitava, a
todos e a cada um, acesso aos bens de que necessitavam e não produziam, em
troca do que produziam e não necessitavam para consumo próprio.
Dessa visão da sociedade de
mercadores confinada a cada nação, os tais filósofos iluministas passaram
rapidamente à imaginação do "funcionamento" do Mundo. Se cada nação
se especializasse no que produz melhor e mais barato, trocando os seus
excedentes pelo que outras nações produzem com igual vantagem, todos sairiam a
ganhar. Assim teríamos prosperidade e paz.
Ora, vivemos hoje perante perigos
de uma guerra comercial em gestação. O diretor-geral da Organização Mundial do
Comércio (OMC) ainda esta semana deixou vários alertas. Precisávamos de uma OMC
atualizada, capaz de gerar e fazer funcionar compromissos internacionais
globais e de incentivar relações bilaterais sérias e profícuas.
Trump pode impor as tarifas que
entender, mas as réplicas são inevitáveis e colocam-nos em "cenário
ruim". A imposição da sua ordem e verdade terá cada vez menos
possibilidade de vingar e só teremos solução para as atuais tensões se houver
respeito pelos direitos e interesses de todos, e se houver coragem para
desmontar a crença no absolutismo das vantagens do livre comércio, interno e
internacional. É preciso considerar o outro lado da moeda pois, como em tudo na
vida, há limites para essas vantagens. Há custos não tidos em conta.
Consideremos apenas três.
O primeiro é óbvio. O indivíduo
especializado numa única atividade passa a depender de todos os outros para
satisfazer as suas necessidades. Enquanto a sua produção for procurada, pode
obter aquilo de que necessita vendendo o fruto do seu trabalho no mercado. Mas
se o seu produto se tornar obsoleto, ou passar a ser oferecido por outros com
vantagem, então tem um problema. O mesmo aconteceria com um país. Especializado
- seja em matérias-primas, como já aconteceu a algumas ex-colónias, seja em
produtos industriais tornados obsoletos, seja em serviços com procura volátil,
como nos pode suceder com o turismo -, um país torna-se vulnerável. Além disso,
há imponderáveis, conflitos que interrompem fluxos comerciais. Seria sensato um
país que abdicasse da capacidade de abastecimento alimentar?
O segundo é menos óbvio. Assim
como acontece com uma pessoa que se aperfeiçoa numa profissão, tornando-se ao
mesmo tempo muito incapaz em tudo o resto, também um país pode perder saberes e
capacidades com a especialização. Tal como nos ecossistemas, também numa
economia a diversidade é condição de sobrevivência e de evolução.
O terceiro mais subtil ainda, mas
não menos importante. Num mundo especializado, as matérias-primas e as
mercadorias têm de ser transportadas, por vezes a grandes distâncias. Os custos
diretos dos transportes são incorporados no preço dos bens, mas os custos
ambientais são, em larga medida, ignorados, pelo que se coloca a questão de
saber se não seria preferível produzir localmente, mesmo quando os custos de o
fazer são superiores aos de importar de outro continente.
A tudo isto acresce que no
comércio dito livre, a liberdade é pouco livre. Além de julgamentos
questionáveis sobre vários pressupostos dessa liberdade, existem sempre
mecanismos de proteção impostos pela parte mais forte na negociação,
nomeadamente patentes e direitos de propriedade intelectual, que têm como
função proteger os países tecnologicamente mais avançados da concorrência de
terceiros.
Embalados nas crenças liberais,
ultrapassamos os limites da sensatez na especialização e no comércio
internacional. Para lá desses limites, o "doce" comércio azeda,
podendo transformar-se numa guerra capitaneada pelas mais indesejáveis
personagens.
* Investigador e professor
universitário
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