Em artigo publicado no jornal Observador de
12 de Maio, o Ministro da Defesa Nacional (MDN) desenvolve uma
reflexão sobre a necessidade de ser produzida nova legislação que actualize e
aglutine tudo o que envolve as múltiplas dimensões da denominada «acção externa
da Defesa Nacional».
Inês Pereira | AbrilAbril | opinião
Refere o MDN que: «(...) De modo
bem diverso, aquilo que logo resulta da observação é uma série de regimes
jurídicos algo desgarrados que regulam aquelas matérias, quase sempre surgidos
num contexto histórico bastante marcado. A legislação relativa ao regime dos
Adidos de Defesa remonta ao tempo do Conselho da Revolução, no início dos anos
oitenta do século passado. E, tanto no que se refere à cooperação
técnico-militar (hoje, melhor se dirá cooperação no domínio da Defesa)
como às regras aplicáveis às forças nacionais destacadas, trata-se, sempre, de
diplomas antigos, nenhum deles com menos de duas décadas, é certo que com
modificações mais recentes, mas sempre de natureza não substantiva.»
Dito assim, nada mais haveria a dizer
a não ser: já peca por atraso. Contudo, no desenvolvimento do seu texto, o MDN,
como se estivesse a subir uma escada em caracol, vai introduzindo concepções
que, não sendo novas, justificam a crescente participação externa e a ideia de
que Portugal defende os seus interesses «lá» onde a NATO e/ou a União
Europeia considerem estar, e toma o Conceito Estratégico de Defesa
Nacional como pilar referencial e não a Constituição da República.
Neste enquadramento, não se trata
só de compilar e actualizar os dispositivos legais existentes. Trata-se de,
aproveitando esse pretexto para ir mais longe, consolidar
conceitos, incluindo no plano dos equipamentos a adquirir (LPM). Quando o
MDN afirma que uma das questões mais fundamentais com que nos deparamos é a da
necessidade de reforço da capacidade de exercício efectivo de jurisdição sobre
os nossos espaços marítimos, é claro que a Marinha e a Força Aérea devem ter os
meios que (...) permitam realizar esse desígnio.
Ora, importa não esquecer que os
navios que percorrem as nossas águas possuem a nacionalidade do Estado cuja
bandeira estejam autorizados a arvorar, devendo existir um vínculo substancial (genuine
link) entre esse Estado e o navio. Este conceito de genuine link,
consubstanciado na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM
art.º 94.º), traduz-se no princípio de que o Estado onde é efectuado o registo
do navio deve exercer efectivamente a sua jurisdição e o seu controlo em
matérias administrativas, técnicas e sociais, ou seja, a lei que lá vigora é a
desse Estado.
Por exemplo, no plano de uma
visita a bordo a CNUDM (art.º 110.º) estabelece as condições para que um navio
de guerra possa exercer esse direito sobre um navio estrangeiro – prática de
pirataria, tráfico de escravos, transmissões não autorizadas, navio sem
nacionalidade, etc. Esta permissão de visita só é válida se os navios de guerra
estiverem autorizados para o fazer, através de legislação nacional que não
existe.
Ou seja, há várias situações onde
é possível a intervenção de navios de guerra, mas isso tem de estar claramente
tipificado em lei. O mesmo se coloca no que à fiscalização da pesca diz
respeito, porque uma coisa é o flagrante delito e outra a fiscalização
entendida como verificação.
Neste contexto, a vigilância dos
espaços é uma tarefa de observação e recolha de informação, mas a
fiscalização/inspecção não é permitida à Marinha enquanto ramo das Forças
Armadas. Daqui decorre que aquilo que para o MDN é irreflectidamente adquirido,
pode não o ser.
Na verdade, o modelo NAFO (Northwest
Atlantic Fisheries Organization) é um bom exemplo a ter em conta: o navio é a
plataforma utilizada para o efeito, sendo a responsabilidade das inspecções dos
inspectores respectivos nele embarcados. Isto não retira ao comandante do navio
nenhuma das suas responsabilidades sobre a condução, controlo e seguança do
navio, nem o direito de vetar qualquer acção de fiscalização por razões de
segurança ou outras, nem ao Comando Naval de exercer o seu papel de Comando e
Controlo.
O que é certo e claro é que
aquilo que se passar dentro da embarcação de pesca, em termos de inspecção, não
é da responsabilidade destes dois comandantes.
Aliás, os Governos nacionais são
sempre tão lestos em aplicar as regras e normas da UE, mas parece que aqui a
regra faz excepção e, no entanto, não parece oferecer grande complexidade.
Como a competência da
fiscalização no mar reside na AMN e a Marinha disponibiliza recursos humanos e
materiais à AMN, a questão das unidades navais como plataforma está resolvido,
sobra os agentes de fiscalização: embarque de inspectores da DGRM? Embarque de
Policias Marítimos?
O mesmo princípio deve ser
seguido nas restantes situações que se prendem com fiscalização em ambiente
contra-ordenacional. E isto seguindo um racional que julgamos correcto, para se
fiscalizar uma actividade, de conjugação de dois princípios: competência em
função da matéria e do território; os Agentes da Fiscalização têm que estar,
formalmente, em lei habilitante, investidos do poder de autoridade que os
habilite a dar ordens aos cidadãos.
Reequipamento Militar
A lógica adiantada pelo MDN no
que respeita ao reequipamento é linear: Portugal pode nesse âmbito desempenhar
missões com as características X e Z logo, para essas missões, é necessário os
equipamentos e armas H e K. Uma lógica que assumidamente secundarizará os meios
e a sua sustentação para aquilo que são as missões fundamentais plasmadas na
Constituição da República.
É o senhor ministro que no
referido artigo afirma que: «Não serve de argumento, neste caso, alegar-se a
recusa de um qualquer princípio de especialização, ou a defesa de capacidades
tão transversais e omnívoras que permitam, num futuro eventual, acorrer
indistintamente a todo o tipo de ameaças ou potenciais agressões. Realmente, do
que se trata é de estabelecer prioridades, temporalizadas e hierarquizadas
segundo um princípio de adequação a um fim.»
Ora, segundo esta abordagem, as
prioridades não são congeminações teóricas e (sem por em causa uma regra de
razoabilidade) também não deverão ter por objetivo satisfazer hipotéticas
regras não escritas de equilíbrio aquisitivo entre os diferentes Ramos das
Forças Armadas.
Trata-se de uma lógica que
encaixa igualmente nas repetidas pressões por parte do Secretário de Defesa dos
EUA, James Mattis para que os países europeus, desde logo os da UE, aumentem a
sua capacidade em meios humanos e materiais e, sobretudo, a sua prontidão
operacional.
Não temos dúvidas, repete-se, de
que há matérias a rever e a clarificar de modo a que deixem de estar no domínio
da leitura arbitrária do Chefe A ou B, com angustiantes mecanismos burocráticos
também geradores de injustiças. O caso recente do militar falecido no
Mali cuja família quase um ano depois aguardava por saber e receber a pensão de
sangue a que tem direito, é um exemplo.
Ou a situação de militares em
navios (marinha) que partem para missões no âmbito de organizações
internacionais, de vários meses, mas cujo entendimento é que só têm direito a
receber o subsídio específico os dias em que se encontram a navegar; ou a
escolha de militares com um alto padrão de qualificações para missões no âmbito
da UE e cujo valor pago por pessoa é em função do respectivo nível de
qualificação, sendo que o remanescente fica como receita para o ramo; ou
missões com guarnições mistas, por exemplo militares e SEF, mas cujo valor do
subsídio de uns e outros é diferenciado, enfim, há um sem número de situações
que necessitam clareza.
Em muitos países um militar
quando sai para uma missão externa, está na posse do conhecimento completo da
sua situação quanto a vencimento, subsídios, apoio na saúde, situação da
família (cônjuge e filhos), etc. Por cá reina ainda a geometria variável e
nalguns casos o «chico-espertismo».
Agora o que nos parece
absolutamente inquestionável é que esse processo tenha sempre presente não a
Constituição da República que cada um acha que devia ser, mas a Constituição da
República que existe.
Na foto: Elementos da 2.ª Força
Nacional Destacada na Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para
a Estabilização da República Centro-Africana, à chegada ao Aeroporto de Figo
Maduro, em Lisboa. 5 de Março de 2018CréditosJosé Sena Goulão / Agência LUSA
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