Henrique Júdice Magalhães [*]
Com 2,7% da população mundial, o
Brasil concentra mais de 10% dos assassinatos no planeta. Em 2016, foram 61,6
mil, além de 49,5 mil estupros e 12 mil suicídios que também dizem algo sobre
esta sociedade. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 25 ficam aqui.
As duas bases oficiais de dados (ocorrências policiais e registros de óbitos) contêm falhas e divergências, mas a explosão de violência letal é visível a olho nu – e não só nas metrópoles. Aliás, os números reais são maiores, pois, pelo estigma que recai sobre as vítimas, muitos suicídios são registrados como acidentes e inúmeros estupros nem denunciados são.
Quanto aos assassinatos, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), agência oficial, destaca que muitos se ocultam sob o rótulo "morte violenta com causa indeterminada". Em S.Paulo, Minas Gerais e Bahia, que concentram metade da população brasileira, esses registros equivaliam, em 2015, a respectivamente, 42,9%, 30,4% e 30,3% dos homicídios reconhecidos. Por certo, as 71,8 mil desaparições registradas em 2016 também escondem muitas mortes não naturais.
Tanto quanto a disparada do número de mortes violentas, estarrecem a crueldade de muitas delas e a futilidade de seus motivos. Decapitações filmadas e difundidas por redes de dados no contexto de desavenças associadas ao varejo [1] de drogas proibidas; uma mãe morta ao esperar sua criança na porta da escola; dois rapazes executados pelo segurança de um restaurante devido à quantidade de sachês de catchup que queriam levar para casa; uma trabalhadora rendida ao sair de um plantão noturno e trucidada a golpes de chave de fenda após entregar tudo aos assaltantes; e outro envenenado e esquartejado por um colega para roubar-lhe o dinheiro da rescisão são exemplos citados a esmo de crimes ocorridos nos dois últimos anos na região metropolitana de Porto Alegre.
Pseudociência e mistificações
Chega a surpreender que o aparato ideológico composto pela imprensa mercantil monopolista, instituições oficiais de pesquisa e algumas ONGs admita a existência dessa orgia de sangue. Que explique como ela se coaduna com a visão rósea que tanto propagou sobre a evolução da sociedade brasileira durante os oito anos de governo do PSDB e – à parte atritos de outro tipo – os 13 do PT, ou identifique com alguma precisão e honestidade suas causas, seria pedir muito.
O morticínio em curso no Brasil não se compreende por nenhuma das teses com que, a partir de cálculos viciados e da pseudociência social burguesa de matriz estadunidense, intelectuais orgânicos do sistema tentam explicá-lo. Este artigo não desvenda os mecanismos que impelem parte das massas empobrecidas à autofagia, mas desmente mistificações em voga, sopesa elementos importantes e aponta causas profundas.
Juventude – No estudo Efeito da mudança demográfica sobre a taxa de homicídios no Brasil, publicado em 2015, Daniel Cerqueira, diretor do IPEA no governo da senhora Roussef, e Rodrigo Leandro de Moura, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), dizem que um quarto do crescimento dos assassinatos entre 1991 e 2000 e metade entre 2000 a 2010 se devem à existência de jovens do sexo masculino no Brasil (em outros países, ou não há homens, ou eles saltam da infância à maturidade...).
Cerqueira e Moura admitem nada saber sobre os autores dessas mortes – nem poderiam, pois a estimativa mais otimista sobre elucidação de homicídios no Brasil diz que, em 80% dos casos, nem se chega a ter um suspeito. Mas como 92% das vítimas entre 2005 e 2015 eram homens entre 15 e 29 anos, deduzem que os assassinos também são e que a quantidade de homicídios varia em função do peso relativo desse segmento populacional.
Um dado que consta de seu próprio estudo os desmente: no período analisado (1991-2010), enquanto a taxa de homicídios cresceu 30%, o peso relativo do segmento masculino entre 15 e 29 anos sobre a população brasileira diminuiu levemente e o da fração de 15 a 23 (considerada a mais perigosa na literatura estadunidense em que se baseiam) despencou.
Não há um só indício de correlação – muito menos causalidade – entre quantidades relativas de homens jovens e de assassinatos. Ao contrário: no Brasil, a matança é simultânea ao envelhecimento da sociedade. De 1960 a 2015, a média de filhos por mulher cai de 6 para 1,7 e a expectativa de vida sobe de 48 para 75,5 anos (dados do IBGE). De 1980 (quando começa a haver estatísticas de homicídios e os nascidos em 1960 tinham 20 anos) a 2015, os assassinatos sobem de 11,4 para quase 30 por 100 mil habitantes.
A única conclusão que isso permite é a que li na Argentina como palavra de ordem e se aplica ao Brasil como constatação científica: os meninos não são perigosos, estão em perigo.
Famílias – Em 2009, a FGV conferiu o grau de doutor em Economia a Gabriel Chequer Hartung por seus Ensaios em Demografia e Criminalidade. Com a chancela de seu orientador, Samuel Pessôa, ele diz que a proporção de famílias monoparentais com crianças de 5 a 15 anos num determinado tempo e local se reflete na taxa de assassinatos 10 anos depois, quando elas têm entre 15 e 25.
Sem demonstrar ou sequer descrever a relação de causa e efeito sem a qual essa coincidência numérica verificada em alguns lugares é só ilusão de ótica, Hartung conclui que filhos de mães sozinhas têm maior propensão a matar e que a criminalidade violenta se reduziria pelo aborto eugênico deles (não prega explicitamente sua eliminação após nascidos, mas para bom entendedor...).
26,8% das famílias brasileiras com filhos tinham apenas um adulto (em regra, a mãe) segundo dados do IBGE para 2015. Cotejados com os do Eurostat para 2016, eles nos colocam entre a Dinamarca (30%) e a Suécia (25%) nesse quesito.
Se essa configuração familiar fosse fator de letalidade, as taxas dinamarquesa e sueca de homicídios seriam similares à nossa. Mas são próximas de zero: 0,58 e 1,07 assassinatos por 100 mil pessoas em 2015, respectivamente. Mesmo no cotejo entre essas nações escandinavas, parecidas em todo o resto, o impacto da monoparentalidade sobre a violência letal é nulo: a campeã mundial de mães solteiras tem menos crimes de morte que sua vizinha.
Armas – Túlio Kahn, alto funcionário das administrações Alckmin e Serra [2] em São Paulo, sustenta que o número de armas de fogo entre a população determina a taxa de homicídios.
O dedo no gatilho é só o último elo da cadeia de eventos que desemboca num assassinato, e nem assim a disponibilidade de pistolas e revólveres ajuda a compreender o que se passa no Brasil: segundo o governo federal, 650 mil foram entregues voluntariamente entre 2004 e o início de 2014.
Não localizei dados de igual amplitude sobre apreensões. Mas só as entregas espontâneas já permitem afirmar que o aumento dos homicídios se deu enquanto o estoque de armas entre a população caía expressivamente.
No documentário Tiros em Columbine, Michael Moore mostra que o Canadá, com uma população tão armada quanto a dos EUA, tem muito menos assassinatos (1,7 contra 4,9 por 100 mil habitantes em 2015, segundo o site Countryeconomy; nos dois casos, muito mais armas e menos mortes que no Brasil). E que se pode e deve condenar a demência do fetiche armamentista sem confundir o instrumento do crime com sua causa.
Algo, mas não tudo
Outras explicações tocam em importantes aspectos da tragédia brasileira, que se vinculam ao banho de sangue em curso mas não o explicam em toda profundidade.
Evasão escolar – O sociólogo e ex-deputado Marcos Rolim é um pesquisador sério, dedicado à preservação e a melhoria da vida da juventude pobre. Ao estudar a violência em que ela está imersa, não busca sua raiz nos cromossomos nem nas mães dos jovens, mas no que o Estado lhes sonega.
Em sua tese de doutorado A formação de jovens violentos – Estudo sobre a etiologia da violência extrema,apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rolim busca desvendar não tanto a quantidade de assassinatos, mas sua desmesurada crueldade. Para isso, entrevistou adolescentes que haviam matado futilmente e outros que, vindos de um quadro sociofamiliar semelhante ao dos primeiros, construíram suas vidas fora do crime. A diferença que ele identificou entre os dois grupos é que os membros do primeiro haviam sido violentados na infância, excluídos da escola e recrutados por adultos que os ensinaram a agir brutalmente.
O desprezo pela integridade física e emocional das crianças e a falta de uma escola pública forte, capaz de suprir o que lhes falta em casa e na vizinhança em termos culturais e de socialização sadia, são as maiores dívidas do Brasil para com seu povo e dados basais da tragédia que vivemos. Mas não parece que a evasão escolar seja a causa do fenômeno em tela: as crianças e adolescentes permanecem, hoje, muito mais anos na escola (ruim) do que nas décadas de 70 e 80 – para não falar nas de 50 e 60, quando era comum que o início da vida laboral ou o insucesso no exame de admissão ao ginásio encerrassem o ciclo escolar aos 10/11 anos de idade. Ainda que a evasão escolar seja um dado importante na vida dos autores dos crimes pesquisados por Rolim, ela caiu enquanto tais crimes aumentavam.
Drogas – Uma parte enorme dos assassinatos no Brasil está associada à cocaína e seus subprodutos (não à maconha e outras drogas). De todas as variáveis analisadas, esta é a única cujo crescimento coincide no tempo com a escalada de crimes de morte.
Vários são cometidos sob o efeito delas ou da ânsia causada por sua abstinência, e muitos mais na disputa por pontos de varejo, punição a devedores e outras desavenças vinculadas à sua compra e venda – inclusive extorsões e queimas de arquivo [3] perpetradas por policiais contra pequenos traficantes e usuários.
Todavia, embora sejam um forte catalisador da violência, essas substâncias não explicam, sozinhas, a dimensão que ela assumiu em nosso país. Seu comércio – atividade, em si, não violenta – existe no mundo inteiro, mas só aqui e em alguns países da América Central se faz acompanhar por tal letalidade. Mesmo no México, considerado em colapso por causa do narcotráfico, há em torno de 20 homicídios por 100 mil pessoas – e não 30, como aqui.
Raízes profundas
Como raízes mais profundas do fenômeno, restam dois aspectos da dinâmica social brasileira:
1 – O legado de uma instituição brutal que foi, aqui, particularmente violenta: a escravidão. No Brasil, o Estado, as classes dominantes e a maior parte dos setores médios nunca reconheceram valor algum à vida das massas negras e pardas, vistas ora como mercadoria, ora como ameaça a ser reprimida ou eliminada; nem das massas camponesas, submetidas à servidão ou expulsas da terra para se juntar, na cidade, aos descendentes de escravos.
2 – A intoxicação dessas massas por uma contrapropaganda que levou parte delas a incorporar os antivalores de uma classe dominante em decomposição: consumismo, individualismo possessivo, imediatismo, ostentação, narcisismo. Christopher Lasch ( A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia ) e Richard Sennett ( A Cultura do Novo Capitalismo ) analisaram esse fenômeno no país do qual o Brasil vem se tornando, desde 1964, uma cópia mal feita: os EUA. João Manuel Cardoso de Melo e Fernando Novais ( Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna ) e, especialmente, Jurandir Freire Costa ( O Vestígio e a Aura ) identificaram-no aqui. " A violência emerge como uma conseqüência da avidez na busca dos objetos supérfluos, estimulados pela publicidade. Essa distorção não começou com o miserável que porta a arma, mas sim com a elite que deu a norma da destruição " – dizia Freire Costa numa entrevista em 2004.
Estado assassino
Sobre essa combinação de fatores, o Estado promove o banho de sangue.
Fardadas e em horário de expediente, as polícias matam mais que os ladrões: em 2016, o Brasil teve 2.703 ocorrências de latrocínio (roubo com morte) e 4.224 de "mortes por intervenção policial". Esses números não incluem o "trabalho" das milícias paraestatais que vicejam no Rio, nem dos grupos da PM [4] de SP que matam com o rosto coberto ("bandido pelo menos mostra a cara", ouve-se comumente na periferia paulistana).
Além de matar com as próprias mãos, o Estado organiza grupos para extermínio (inclusive recíproco) de pobres – seja pela lucrativa associação de políticos e funcionários a máfias emaranhadas à estrutura policial, como denuncia, há tempos, o professor José Cláudio Alves de Sousa; seja enviando traficantes e ladrões de pouca monta a presídios cuja administração terceiriza (não de graça) a facções que os recrutam à força e transformam vários deles em delinquentes violentos, como assinala Rolim. A concentração do foco prisional nessas pessoas é também uma maneira de deixar livres os matadores, cuja posição nas facções é mais alta.
Se houver dúvida sobre a quem servem essas ações, ou sobre a interpenetração entre as altas esferas do mercado ilegal de drogas e as do Estado, basta lembrar que vivemos, hoje, sob um governo que tem dois ministros (Blairo Maggi e Aloysio Nunes) e um secretário (Gustavo Perrella) envolvidos com transporte e armazenamento atacadista de cocaína.
"De ir à guerra se trata"
A mais sombria concepção sobre o Estado (a de Hobbes) pregava a submissão a ele como preço da garantia da vida e integridade física de seus súditos. Quando ele não é capaz de prover isso, há uma crise que não será resolvida dentro de seus marcos.
O drama brasileiro é que a corrosão terminal das estruturas estatais antecedeu em anos (décadas?) o amadurecimento da única possibilidade histórica de supera-la: uma revolução. Construí-la nesta sociedade degradada é trabalho hercúleo e arriscadíssimo, mas premente.
As dúvidas que podem existir sobre sua conveniência e custo-benefício quando ela envolve romper a paz dos cemitérios não têm lugar quando ela é o único meio para estancar a perversidade e a violência fomentadas pelo Estado. Se a mortandade intrínseca ao andamento "normal" desta sociedade já é a de uma guerra, "de ir à guerra se trata", como dizia, num verso composto com límpida consciência em outro contexto, Idea Vilariño.
As duas bases oficiais de dados (ocorrências policiais e registros de óbitos) contêm falhas e divergências, mas a explosão de violência letal é visível a olho nu – e não só nas metrópoles. Aliás, os números reais são maiores, pois, pelo estigma que recai sobre as vítimas, muitos suicídios são registrados como acidentes e inúmeros estupros nem denunciados são.
Quanto aos assassinatos, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), agência oficial, destaca que muitos se ocultam sob o rótulo "morte violenta com causa indeterminada". Em S.Paulo, Minas Gerais e Bahia, que concentram metade da população brasileira, esses registros equivaliam, em 2015, a respectivamente, 42,9%, 30,4% e 30,3% dos homicídios reconhecidos. Por certo, as 71,8 mil desaparições registradas em 2016 também escondem muitas mortes não naturais.
Tanto quanto a disparada do número de mortes violentas, estarrecem a crueldade de muitas delas e a futilidade de seus motivos. Decapitações filmadas e difundidas por redes de dados no contexto de desavenças associadas ao varejo [1] de drogas proibidas; uma mãe morta ao esperar sua criança na porta da escola; dois rapazes executados pelo segurança de um restaurante devido à quantidade de sachês de catchup que queriam levar para casa; uma trabalhadora rendida ao sair de um plantão noturno e trucidada a golpes de chave de fenda após entregar tudo aos assaltantes; e outro envenenado e esquartejado por um colega para roubar-lhe o dinheiro da rescisão são exemplos citados a esmo de crimes ocorridos nos dois últimos anos na região metropolitana de Porto Alegre.
Pseudociência e mistificações
Chega a surpreender que o aparato ideológico composto pela imprensa mercantil monopolista, instituições oficiais de pesquisa e algumas ONGs admita a existência dessa orgia de sangue. Que explique como ela se coaduna com a visão rósea que tanto propagou sobre a evolução da sociedade brasileira durante os oito anos de governo do PSDB e – à parte atritos de outro tipo – os 13 do PT, ou identifique com alguma precisão e honestidade suas causas, seria pedir muito.
O morticínio em curso no Brasil não se compreende por nenhuma das teses com que, a partir de cálculos viciados e da pseudociência social burguesa de matriz estadunidense, intelectuais orgânicos do sistema tentam explicá-lo. Este artigo não desvenda os mecanismos que impelem parte das massas empobrecidas à autofagia, mas desmente mistificações em voga, sopesa elementos importantes e aponta causas profundas.
Juventude – No estudo Efeito da mudança demográfica sobre a taxa de homicídios no Brasil, publicado em 2015, Daniel Cerqueira, diretor do IPEA no governo da senhora Roussef, e Rodrigo Leandro de Moura, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), dizem que um quarto do crescimento dos assassinatos entre 1991 e 2000 e metade entre 2000 a 2010 se devem à existência de jovens do sexo masculino no Brasil (em outros países, ou não há homens, ou eles saltam da infância à maturidade...).
Cerqueira e Moura admitem nada saber sobre os autores dessas mortes – nem poderiam, pois a estimativa mais otimista sobre elucidação de homicídios no Brasil diz que, em 80% dos casos, nem se chega a ter um suspeito. Mas como 92% das vítimas entre 2005 e 2015 eram homens entre 15 e 29 anos, deduzem que os assassinos também são e que a quantidade de homicídios varia em função do peso relativo desse segmento populacional.
Um dado que consta de seu próprio estudo os desmente: no período analisado (1991-2010), enquanto a taxa de homicídios cresceu 30%, o peso relativo do segmento masculino entre 15 e 29 anos sobre a população brasileira diminuiu levemente e o da fração de 15 a 23 (considerada a mais perigosa na literatura estadunidense em que se baseiam) despencou.
Não há um só indício de correlação – muito menos causalidade – entre quantidades relativas de homens jovens e de assassinatos. Ao contrário: no Brasil, a matança é simultânea ao envelhecimento da sociedade. De 1960 a 2015, a média de filhos por mulher cai de 6 para 1,7 e a expectativa de vida sobe de 48 para 75,5 anos (dados do IBGE). De 1980 (quando começa a haver estatísticas de homicídios e os nascidos em 1960 tinham 20 anos) a 2015, os assassinatos sobem de 11,4 para quase 30 por 100 mil habitantes.
A única conclusão que isso permite é a que li na Argentina como palavra de ordem e se aplica ao Brasil como constatação científica: os meninos não são perigosos, estão em perigo.
Famílias – Em 2009, a FGV conferiu o grau de doutor em Economia a Gabriel Chequer Hartung por seus Ensaios em Demografia e Criminalidade. Com a chancela de seu orientador, Samuel Pessôa, ele diz que a proporção de famílias monoparentais com crianças de 5 a 15 anos num determinado tempo e local se reflete na taxa de assassinatos 10 anos depois, quando elas têm entre 15 e 25.
Sem demonstrar ou sequer descrever a relação de causa e efeito sem a qual essa coincidência numérica verificada em alguns lugares é só ilusão de ótica, Hartung conclui que filhos de mães sozinhas têm maior propensão a matar e que a criminalidade violenta se reduziria pelo aborto eugênico deles (não prega explicitamente sua eliminação após nascidos, mas para bom entendedor...).
26,8% das famílias brasileiras com filhos tinham apenas um adulto (em regra, a mãe) segundo dados do IBGE para 2015. Cotejados com os do Eurostat para 2016, eles nos colocam entre a Dinamarca (30%) e a Suécia (25%) nesse quesito.
Se essa configuração familiar fosse fator de letalidade, as taxas dinamarquesa e sueca de homicídios seriam similares à nossa. Mas são próximas de zero: 0,58 e 1,07 assassinatos por 100 mil pessoas em 2015, respectivamente. Mesmo no cotejo entre essas nações escandinavas, parecidas em todo o resto, o impacto da monoparentalidade sobre a violência letal é nulo: a campeã mundial de mães solteiras tem menos crimes de morte que sua vizinha.
Armas – Túlio Kahn, alto funcionário das administrações Alckmin e Serra [2] em São Paulo, sustenta que o número de armas de fogo entre a população determina a taxa de homicídios.
O dedo no gatilho é só o último elo da cadeia de eventos que desemboca num assassinato, e nem assim a disponibilidade de pistolas e revólveres ajuda a compreender o que se passa no Brasil: segundo o governo federal, 650 mil foram entregues voluntariamente entre 2004 e o início de 2014.
Não localizei dados de igual amplitude sobre apreensões. Mas só as entregas espontâneas já permitem afirmar que o aumento dos homicídios se deu enquanto o estoque de armas entre a população caía expressivamente.
No documentário Tiros em Columbine, Michael Moore mostra que o Canadá, com uma população tão armada quanto a dos EUA, tem muito menos assassinatos (1,7 contra 4,9 por 100 mil habitantes em 2015, segundo o site Countryeconomy; nos dois casos, muito mais armas e menos mortes que no Brasil). E que se pode e deve condenar a demência do fetiche armamentista sem confundir o instrumento do crime com sua causa.
Algo, mas não tudo
Outras explicações tocam em importantes aspectos da tragédia brasileira, que se vinculam ao banho de sangue em curso mas não o explicam em toda profundidade.
Evasão escolar – O sociólogo e ex-deputado Marcos Rolim é um pesquisador sério, dedicado à preservação e a melhoria da vida da juventude pobre. Ao estudar a violência em que ela está imersa, não busca sua raiz nos cromossomos nem nas mães dos jovens, mas no que o Estado lhes sonega.
Em sua tese de doutorado A formação de jovens violentos – Estudo sobre a etiologia da violência extrema,apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rolim busca desvendar não tanto a quantidade de assassinatos, mas sua desmesurada crueldade. Para isso, entrevistou adolescentes que haviam matado futilmente e outros que, vindos de um quadro sociofamiliar semelhante ao dos primeiros, construíram suas vidas fora do crime. A diferença que ele identificou entre os dois grupos é que os membros do primeiro haviam sido violentados na infância, excluídos da escola e recrutados por adultos que os ensinaram a agir brutalmente.
O desprezo pela integridade física e emocional das crianças e a falta de uma escola pública forte, capaz de suprir o que lhes falta em casa e na vizinhança em termos culturais e de socialização sadia, são as maiores dívidas do Brasil para com seu povo e dados basais da tragédia que vivemos. Mas não parece que a evasão escolar seja a causa do fenômeno em tela: as crianças e adolescentes permanecem, hoje, muito mais anos na escola (ruim) do que nas décadas de 70 e 80 – para não falar nas de 50 e 60, quando era comum que o início da vida laboral ou o insucesso no exame de admissão ao ginásio encerrassem o ciclo escolar aos 10/11 anos de idade. Ainda que a evasão escolar seja um dado importante na vida dos autores dos crimes pesquisados por Rolim, ela caiu enquanto tais crimes aumentavam.
Drogas – Uma parte enorme dos assassinatos no Brasil está associada à cocaína e seus subprodutos (não à maconha e outras drogas). De todas as variáveis analisadas, esta é a única cujo crescimento coincide no tempo com a escalada de crimes de morte.
Vários são cometidos sob o efeito delas ou da ânsia causada por sua abstinência, e muitos mais na disputa por pontos de varejo, punição a devedores e outras desavenças vinculadas à sua compra e venda – inclusive extorsões e queimas de arquivo [3] perpetradas por policiais contra pequenos traficantes e usuários.
Todavia, embora sejam um forte catalisador da violência, essas substâncias não explicam, sozinhas, a dimensão que ela assumiu em nosso país. Seu comércio – atividade, em si, não violenta – existe no mundo inteiro, mas só aqui e em alguns países da América Central se faz acompanhar por tal letalidade. Mesmo no México, considerado em colapso por causa do narcotráfico, há em torno de 20 homicídios por 100 mil pessoas – e não 30, como aqui.
Raízes profundas
Como raízes mais profundas do fenômeno, restam dois aspectos da dinâmica social brasileira:
1 – O legado de uma instituição brutal que foi, aqui, particularmente violenta: a escravidão. No Brasil, o Estado, as classes dominantes e a maior parte dos setores médios nunca reconheceram valor algum à vida das massas negras e pardas, vistas ora como mercadoria, ora como ameaça a ser reprimida ou eliminada; nem das massas camponesas, submetidas à servidão ou expulsas da terra para se juntar, na cidade, aos descendentes de escravos.
2 – A intoxicação dessas massas por uma contrapropaganda que levou parte delas a incorporar os antivalores de uma classe dominante em decomposição: consumismo, individualismo possessivo, imediatismo, ostentação, narcisismo. Christopher Lasch ( A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia ) e Richard Sennett ( A Cultura do Novo Capitalismo ) analisaram esse fenômeno no país do qual o Brasil vem se tornando, desde 1964, uma cópia mal feita: os EUA. João Manuel Cardoso de Melo e Fernando Novais ( Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna ) e, especialmente, Jurandir Freire Costa ( O Vestígio e a Aura ) identificaram-no aqui. " A violência emerge como uma conseqüência da avidez na busca dos objetos supérfluos, estimulados pela publicidade. Essa distorção não começou com o miserável que porta a arma, mas sim com a elite que deu a norma da destruição " – dizia Freire Costa numa entrevista em 2004.
Estado assassino
Sobre essa combinação de fatores, o Estado promove o banho de sangue.
Fardadas e em horário de expediente, as polícias matam mais que os ladrões: em 2016, o Brasil teve 2.703 ocorrências de latrocínio (roubo com morte) e 4.224 de "mortes por intervenção policial". Esses números não incluem o "trabalho" das milícias paraestatais que vicejam no Rio, nem dos grupos da PM [4] de SP que matam com o rosto coberto ("bandido pelo menos mostra a cara", ouve-se comumente na periferia paulistana).
Além de matar com as próprias mãos, o Estado organiza grupos para extermínio (inclusive recíproco) de pobres – seja pela lucrativa associação de políticos e funcionários a máfias emaranhadas à estrutura policial, como denuncia, há tempos, o professor José Cláudio Alves de Sousa; seja enviando traficantes e ladrões de pouca monta a presídios cuja administração terceiriza (não de graça) a facções que os recrutam à força e transformam vários deles em delinquentes violentos, como assinala Rolim. A concentração do foco prisional nessas pessoas é também uma maneira de deixar livres os matadores, cuja posição nas facções é mais alta.
Se houver dúvida sobre a quem servem essas ações, ou sobre a interpenetração entre as altas esferas do mercado ilegal de drogas e as do Estado, basta lembrar que vivemos, hoje, sob um governo que tem dois ministros (Blairo Maggi e Aloysio Nunes) e um secretário (Gustavo Perrella) envolvidos com transporte e armazenamento atacadista de cocaína.
"De ir à guerra se trata"
A mais sombria concepção sobre o Estado (a de Hobbes) pregava a submissão a ele como preço da garantia da vida e integridade física de seus súditos. Quando ele não é capaz de prover isso, há uma crise que não será resolvida dentro de seus marcos.
O drama brasileiro é que a corrosão terminal das estruturas estatais antecedeu em anos (décadas?) o amadurecimento da única possibilidade histórica de supera-la: uma revolução. Construí-la nesta sociedade degradada é trabalho hercúleo e arriscadíssimo, mas premente.
As dúvidas que podem existir sobre sua conveniência e custo-benefício quando ela envolve romper a paz dos cemitérios não têm lugar quando ela é o único meio para estancar a perversidade e a violência fomentadas pelo Estado. Se a mortandade intrínseca ao andamento "normal" desta sociedade já é a de uma guerra, "de ir à guerra se trata", como dizia, num verso composto com límpida consciência em outro contexto, Idea Vilariño.
Notas:
[1] Varejo:
retalho
[2] Alckmin e Serra: ex-governadores do estado de S. Paulo, ambos do PSDB
[3] Queima de arquivos: execução de possíveis testemunhas
[4] PM: Polícia Militar
Do mesmo autor em resistir.info:
[2] Alckmin e Serra: ex-governadores do estado de S. Paulo, ambos do PSDB
[3] Queima de arquivos: execução de possíveis testemunhas
[4] PM: Polícia Militar
Do mesmo autor em resistir.info:
Seria
bom se fosse verdade
[*] Jornalista, brasileiro
O original encontra-se em anovademocracia.com.br/no-211/...
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
[*] Jornalista, brasileiro
O original encontra-se em anovademocracia.com.br/no-211/...
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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