Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
Tinha os inimigos identificados
ao escrever a frase-panfleto na guitarra. "Esta máquina mata
fascistas", o seu instrumento passava a balear a seis cordas em 1941. Após
o auge da Grande Depressão nos anos 30, devastadora, Woody Guthrie já romantizara
brilhantemente os proscritos do sistema como aqueles heróis épicos e mundanos,
maiores do que a vida, migrantes, lutadores-poesia com armas de formiga a
construir os seus castelos pelo bem comum. Agora, a guitarra apontava aos
nazis. E era fácil identificá-los porque os fascistas nunca se souberam
esconder. Cerca de oito décadas depois, o tempo que passa já relativiza o
passado recente e o fascismo recrudesce em muitos dos países que o germinaram.
A memória só precisa de um pequeno lapso de tempo para se esquecer de tudo. Por
muito que não chegue para lhes destruir o carácter, é urgente chamá-los pelo
nome. Antes como agora, fascistas são objectos políticos bem identificados. Não
podemos ser cúmplices.
As urnas não são latrinas. E é
por isso que é importante dizer que, com toda a probabilidade, o Brasil vai
eleger um fascista a 28 de Outubro. Político com 30 anos de carreira a tiro,
Bolsonaro não é um fascista qualquer. Defensor da tortura, (embora pense que
"o erro da ditadura foi torturar e não matar"), misógino selectivo,
defensor de salários diferentes consoante o sexo, o anunciado futuro presidente
do Brasil preferia ver morrer um filho do que o ver homossexual, desejava
"fuzilar a petralhada" e talvez o faça quando for eleito. Com 46% dos
votos na primeira volta, alimenta-se do ódio a um PT aparelhista que tomou o
Estado por conta. Com a Direita democrática brasileira em vias de extinção e
incapaz de estancar a sangria do seu eleitorado para a extrema-direita, nem lhe
sobra a noção do que impende sobre a liberdade à custa de não se afastarem de
Bolsonaro. Compete-nos a nós, então, identificá-lo pelo seu género político.
Não há como esconder o falhanço
da democracia e da esperança no Brasil. Entretanto, vende-se em Portugal a
fórmula de branqueamento pelo peso da distância geográfica. Dizem esses que só
quem lá está é que sabe. Foi assim com Trump ou Chávez (que, curiosamente,
Bolsonaro idolatrava). Foi assim com os fascistas Le Pen, Orbán, Kurz ou
Kaczynski (menos porque, ainda assim, são "europeus"). Querem-nos retirar
o direito de identificar fascistas já submetidos ao teste de algodão. Querem
que voltemos às reuniões de tupperware, conservando os ingredientes para um
caldo a entornar. Compete-nos a nós, então, identificá-los pelo seu género
policial: cúmplices.
(O autor escreve segundo a antiga
ortografia.)
* Músico e jurista
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