sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Câncer e solo contaminado: triste legado da base aérea dos EUA nos Açores


A população dos Açores está registrando um dramático aumento nos casos de câncer entre os residentes nas proximidades da Base Aérea das Lajes. Além dos elevados níveis de radiação, agora também está se revelando um altíssimo nível de contaminação do solo, que afeta, além da saúde, os agricultores locais.

Quando o pesquisador e ex-funcionário da base, Orlando Lima, vai se aproximando das imediações da Base Aérea das Lajes, os índices de radiação sobem cada vez mais. 

"Estamos em 22 mil [partículas alfa]. Vamos fugir daqui, pois já estivemos por tempo demais", diz o especialista português, entrevistado pela agência Ruptly, que produziu uma reportagem sobre o drama dos moradores da ilha. 

A Base Aérea das Lajes localiza-se na vila das Lajes, no concelho da Praia da Vitória, na parte nordeste da ilha Terceira, nos Açores. A base é utilizada pela Força Aérea dos Estados Unidos desde 1945, que permanece nas instalações até hoje, no âmbito da cooperação da OTAN entre Lisboa e Washington.

"Isso é resultado de contaminação nuclear", afirmou Lima.

A sua posição é endossada por Félix Rodrigues, professor de física da Universidade de Açores. 

"É um inferno que se repete em várias ilhas ocupadas pelos norte-americanos. É um tipo de política de terra queimada. Os problemas vão se acumulando e os governos locais não fazem frente, a população não tem capacidade de fazer frente. Talvez seja o resultado de muita iliteracia científica, de desconhecimento de muitas relações causa-efeito", disse o especialista.

Segundo ele, foram verificados diversos locais com um nível de contaminação muito elevado de metais pesados, como chumbo, cobre, zinco e molibdênio. Esses metais, em alta concentração, acabam entrando na cadeia alimentar e provocam esterilidade, diversos tipos de câncer e outros problemas de saúde, alertou o físico. 


Um dos argumentos apontados pelos residentes de que a base aérea seria a causa dos problemas de saúde das famílias locais é apresentado por Norberto Messias, cientista da Escola Superior de Saúde e da Universidade de Açores, entrevistado pela agência. Segundo ele, as estatísticas oficias apontam que 33% dos casos de câncer do olho nos Açores, por exemplo, são registrados em moradores do concelho da Praia da Vitória, que concentra somente 8% da população do arquipélago. 

De fato, os habitantes relatam casos de famílias inteiras, que moraram nas proximidades da base, com incidência de diferentes tipos de câncer.

Esse é o caso de Madail Ávila, de 34 anos, que morou durante anos praticamente ao lado da entrada da base norte-americana.

Os meus dois pais faleceram de cancro [câncer] …  A minha mãe com cancro de mama e o meu pai com outro tipo de cancro. Eu, aos 33 anos, também fui diagnosticada com câncer de mama", explicou a moça que destacou ser muito raro que uma família toda da mesma área geográfica tenha problemas de saúde desta natureza.

Marcos Fagundes, outro morador da Praia da Vitória, não tem dúvidas de que a causa do problema seja a base dos EUA. "Existem ruas inteiras, nas quais as pessoas de um lado da rua foram diagnosticadas com câncer e do outro lado não. Isso não é normal", alega ele.

Além dos abundantes casos de câncer, os agricultores locais também apresentam queixas. Segundo estes, regiões inteiras em torno da base simplesmente pararam de produzir, se tornaram completamente inférteis.

Uma das explicações disso, segundo continuou o físico Félix Rodrigues, seria o despejo de combustíveis pelos militares.

"Em 10 anos, 88 mil litros de combustível foram derramados, e isso são dados oficialmente assinalados. E ainda tem aqueles [litros] que não foram assinalados", explica o especialista. Ele alega que o principal problema para combater esse fator reside na falta de legislação no país para tratar da contaminação do solo. Segundo o entrevistado, o nível de contaminação ao redor da base seria 50 vezes maior, do que o permitido em países como Canadá.

As autoridades do território autônomo pretendem investigar a questão e um estudo está sendo feito, com levantamento de casos para apurar com precisão as causas dos problemas. No entanto, praticamente ninguém na ilha tem dúvidas de que a base aérea é a maior responsável.

Inúmeros casos judicias nos Estados Unidos, nos quais os soldados processam o governo e o exército por danos à saúde são uma forte evidência disso. Além dos histórico dos problemas das bases militares norte-americanas com os governos locais ao redor do mundo.

Por outro lado, a parceria no âmbito da OTAN entre o Portugal e os EUA pode falar alto e, considerando as desproporções políticas dos envolvidos, as consequências do estudo não são evidentes.

De todo modo, o problema está em evidência agora e a população dos Açores está disposta a lutar pelo futuro.

"Precisamos pensar nas gerações futuras", conclui Madail Ávila.


Fotos: 1 - A base aérea dos EUA nos Açores; 2 - Uma rocha contaminada recolhida na respectiva área.

Jim Mattis refuta as «Fake News» de Israel e da OTAN

Thierry Meyssan*

Eis o que desde há anos a imprensa atlantista afirma : o Presidente Bashar al-Assad utiliza armas químicas contra o seu próprio povo. Salvo que, segundo o Secretário da Defesa dos EUA, o General Jim Mattis, trata-se de uma “fake news” (notícia falsa-ndT). Tal como nas armas químicas de Saddam Hussein esta história, que preenche as colunas dos jornais desde há cinco anos, não passa de pura propaganda de guerra.

sto deveria ter feito as «parangonas» de todos os jornais ocidentais. Mas apenas a Newsweek o relatou [1]. Durante o seu encontro de imprensa, a 2 de Fevereiro, o Secretário da Defesa, o General Jim Mattis, indicou que embora ele «pensasse» que Damasco tinha utilizado armas químicas, contra o seu próprio povo, ninguém no Pentágono tinha a menor prova a respeito.

O jornalista, que conhece pessoalmente o General Jim Mattis, ouviu-o "off de record" (ou seja, em particular) declarar a sua aversão ao mito das armas químicas sírias. Dá-lhe, assim, a oportunidade de se repetir, desta vez publicamente. Eis aqui a transcrição (publicada com um ligeiro atraso) dessa conversa.

- Pergunta : Há provas de que armas de cloro foram utilizadas, provas de armas de cloro :
- Jim Mattis : Eu penso que sim.
- Pergunta : Não, eu sei, eu percebi-o.
- Jim Mattis : Eu penso que elas foram utilizadas em várias ocasiões. E, como você sabe, uma categoria um tanto distinta, foi por isso que eu descartei o sarin como qualquer coisa de distinto – sim.
- Pergunta : Há portanto provas credíveis que o sarin e o cloro...
- Jim Mattis : Não, eu não tenho provas, não em concreto. Eu não tenho provas. É o que afirmo, é o que outros, grupos no terreno, ONG.s, combatentes no terreno têm dito, que o sarin tem sido utilizado. Nós, claro, procuramos provas. Eu não tenho provas, credíveis ou não credíveis.
Fonte : “Media Availability by Secretary Mattis at the Pentagon”, Press Secretary, Departement of Defence, February 2, 2018.

No início da guerra, a República Árabe da Síria pediu à ONU que viesse investigar o uso de armas químicas pelos jiadistas. Os inspectores não encontraram nada de convincente. Mas, em Agosto de 2013, os Estados que apoiavam o projecto dos Irmãos Muçulmanos mudaram a acusação e alegaram, apenas com base na exclusiva informação da Unidade 8200 da Mossad , que o Exército Sírio acabava de massacrar quase 1.500 civis na Ghuta(zona rural dos arredores de Damasco-ndT) com uma mistura de gás, incluindo sarin.

Atestando a boa fé da Síria, a Rússia propôs a sua adesão à Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas. Moscovo e Washington, em conjunto, destruíriam todas as armas químicas sírias assim como os precursores (isto é, as substâncias necessárias ao fabrico dessas armas).

No entanto, a acusação de uso dessas armas nunca parou. Mesmo se o próprio Pentágono supervisionou a destruição, a imprensa atlantista persistia em pretender que o Exército Árabe Sírio as estava a utilizar. Alguns média (mídia-br), como o Anglo-Saxónico Bellingcat (cujo director é um empregado do Atlantic Council) [2] ou o Francês Le Monde [3] tornaram-se meros repetidores profissionais desta Fake News.

Para acabar com este boato, um mecanismo de inquérito conjunto foi criado pela ONU e pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ). Depois de ter conduzido, a partir de Nova Iorque e Viena, uma ampla colecta de informações, essa instância recusou-se a ir verificá-los no local e inclusive a proceder a colheitas de amostras. O tom subia no Conselho de Segurança, onde todos podiam observar o ascendente do n. ° 2 da Administração das Nações Unidas, o neo-conservador Jeffrey Feltman [4], sobre a embaixatriz dos EUA, Nikki Haley. Finalmente, acabaram por se contabilizar até 5 vetos russos às mentiras ocidentais sobre este assunto em exclusivo [5].

Na momento do caso de Khan Sheikhun, os Estados Unidos afirmaram com estardalhaço ter provas da responsabilidade síria ---provas que segundo o General Mattis jamais existiram ---e puniram a Síria bombardeando, por isso, a base de Shayrat.

O Secretário da Defesa Robert McNamara admitiu que os Estados Unidos haviam mentido para lançar e, depois, prosseguir a sua guerra contra os Vietnamitas. O seu sucessor, Colin Powell, reconheceu ter mentido ao Conselho de Segurança para lançar a guerra contra os Iraquianos. Etc. Mas todos o fizeram depois de ter feito correr o sangue e terem deixado as suas funções oficiais. Nenhum foi processado.
Tal como no seu Direito comercial, os dirigentes dos EUA podem falir, deixar de pagar aos seus credores e recomeçar, imediatamente, os seus negócios do zero como se nada tivesse acontecido.

Pela primeira vez, um Secretário da Defesa, em exercício, denunciou as mentiras em curso de Israel, da sua própria Administração e da OTAN. Muito embora ele tenha tido o cuidado de se apresentar como convencido da culpabilidade síria, a sua declaração refuta as justificações dos bombardeamentos israelitas na Síria, pretensamente para destruir armas químicas. Ela arrasa os seus colegas Rex Tilleron e Nikki Haley. Ela soa como uma advertência para os 23 Ministros dos Negócios Estrangeiros que, a 23 de Janeiro, de novo acusaram a Síria do emprego de armas químicas [6] ; Ministros que se pronunciaram pela «democracia» no Levante… com a exclusiva condição de que Bachar al-Assad não se possa candidatar às eleições e ganhá-las.

Thierry Meyssan | Tradução Alva | Fonte Al-Watan (Síria)

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “Mattis Admits There Was No Evidence Assad Used Poison Gas on His People”, Ian Wilkie, Newsweek, February 8, 2018.
[2] Brown Moses, de seu verdadeiro nome Eliot Higgins, participa por outro lado na associação Propaganda or Not ? que acusa diversas fontes, entre as quais a Rede Voltaire, de serem instrumentos do Kremlin. Cf. “A campanha da Otan contra a liberdade de expressão”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Dezembro de 2016.
[3] Na base de um rascunho grosseiramente falso, este quotidiano acusa a Rede Voltaire de não ser credível. Cf. “A verdade sobre as «fake news»”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Janeiro de 2018.
[4] “A Alemanha e a ONU contra a Síria”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) , Rede Voltaire, 28 de Janeiro de 2016.
[5] “Na ONU, a incapacidade USA de admitir a realidade”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 21 de Novembro de 2017.

Maio de 1968: um convite ao debate


Cinquenta anos depois, é ainda mais necessário examinar em profundidade um movimento que indicou o esgotamento do capitalismo mas inspirou, ao mesmo tempo, a “renovação” pós-moderna do sistema

Erick Corrêa | Outras Palavras

1968 constitui um evento de dimensão histórico-mundial (Wallerstein), assim como 1789-91, 1848, 1917, 1989-91, pois assinala um ponto de virada histórico suficientemente persuasivo para instaurar um novo world time (Eberhard). Particularmente contagiante, a expressão francesa da crise internacional, detonada em Paris no mês de maio, funcionaria como uma espécie de catalisador de outras revoltas antissistêmicas em arenas locais distantes como Varsóvia, Praga, Dublin, Berlim, Tóquio, São Paulo, Cidade do México ou Lima.

Devido a esta repercussão mundial da experiência francesa, convencionou-se nos meios jornalísticos e até mesmo acadêmicos reduzir 68 ao maio de 68, uma referência ao mês no qual a contestação de setores esquerdistas do movimento estudantil universitário explodiu nas barricadas da Rua Gay-Lussac, no entorno da Sorbonne em Paris. Já a referência a maio-junho de 68 incorpora o desfecho conclusivo da crise, quando o impacto causado pelos Acordos de Grenelle – pactuados, no fim de maio, pelo Ministério do Trabalho com a Confederação Geral do Trabalho (CGT), sob a direção do Partido Comunista Francês (PCF) –, somado à proibição das organizações revolucionárias mediante decreto governamental de 12 de junho, e a subsequente vitória eleitoral de De Gaulle, conseguiram finalmente canalizar as energias revolucionárias do movimento para saídas reformistas.

Contudo, este ano turbulento não começou nem terminou em 1968, algo que a expressão anos 68 também tenta exprimir. Na Itália, por exemplo, a contestação eclodiu um ano antes da rebelião na França, arrastando-se por mais dez anos.

A cada decênio, repõe-se uma situação de disputa pela memória e significado de 68, sempre renovada por uma série de publicações acadêmicas e editoriais jornalísticos que polemizam sobre o anacronismo ou, pelo contrário (a depender do ponto de vista), sobre a atualidade ou contemporaneidade das aspirações libertárias e energias revolucionárias liberadas naquele ano.

Não há também consenso quanto ao seu impacto sobre a vida social, se este foi subestimado ou superestimado pelos protagonistas daquela geração. Afinal, 68 foi uma revolução social derrotada, ou tudo não passou de uma intentona hedonista e iconoclasta de perturbação do status quo pela juventude revoltada? 68 resultou na vitória da heteronomia e do individualismo pós-moderno ou simboliza um importante marco temporal nos processos de descolonização e de emancipação das populações submetidas às mais diversas formas históricas de opressão (patriarcal, heteronormativa, xenofóbica, étnico-racial, política)?

Algumas interpretações mais dogmáticas chegam a reduzir a história de 1968 a um tudo ou nada maniqueísta, incapaz de perceber a sua dimensão histórica real.

É nesse sentido, nos parece, que a provocação lançada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1984), de que o Maio de 68 não aconteceu, deve ser entendida: pois, se a luta não começou nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela terminou com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolveu posteriormente também nas trincheiras do campo simbólico, isto é, nos conflitos ideológicos pela memória do evento. De fato, as interpretações sobre 68 dividem-se mesmo no interior de campos políticos afins, principalmente à esquerda do espectro sociopolítico, sobretudo na França, país onde o evento despertou as reações mais furiosas e apaixonadas. O caso dos antigos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie (1949-67), Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, é exemplar nesse sentido. Para o primeiro, 68 foi uma revolta bem sucedida, enquanto que para o segundo, não passou de uma revolução fracassada.

Guy Debord, fundador de uma pequena, porém influente organização, a Internacional Situacionista (IS, 1957-72), constatou em 88 que nada havia sido até ali “tão dissimulado com mentiras dirigidas” quanto a história de 68. De fato, naquele mesmo ano, surgia pela primeira vez na França um livro sobre 68 produzido pelo campo néocon(neoconservador), chamado O pensamento 68, dos ideólogos Luc Ferry e Alain Renaut.

Vinte anos depois, no livro O pensamento anti-68 (2008), o filósofo Serge Audier alertava para o que chamou de trabalho de deslegitimação de 68, realizado por três atores principais, oriundos de campos políticos e intelectuais distintos, mas que convergiram na interpretação sobre aquele episódio: os gaullistas (retórica do “complô internacional”), os comunistas (retórica das “provocações esquerdistas”) e os neoconservadores (como o ex-presidente Nicolas Sarkozy), que pretendia liquidar a herança de maio de 68.

Em 2018, o atual presidente da França, Emmanuel Macron, restaurou a polêmica sobre o legado de 68 desde um ponto de vista modernisateurque, longe de liquidar com a herança de 68, pretende instrumentalizá-la, ressaltando as supostas características liberal-modernizantes do evento, enquanto oculta seus aspectos mais selvagens (como a greve geral de 10 milhões de trabalhadores com ocupação de fábricas e universidades).

Para os situacionistas[1], “de todos os critérios parciais utilizados para acordar ou não o título de revolução a tal período de perturbação no poder estatal, o pior é seguramente aquele que considera se o regime em vigor caiu ou se manteve. Esse critério […] é o mesmo que permite à informação diária qualificar como revolução qualquer putsch militar que tenha mudado o regime do Brasil, de Gana ou do Iraque”. A “prova mais evidente” do caráter revolucionário de 68, continuam os situacionistas, “para aqueles que conhecem a história do nosso século, ainda é esta: tudo o que os stalinistas fizeram, sem recuo, em todos os estágios, para combater o movimento, prova que a revolução estava lá”[2].

Debord, por sua vez, identificaria justamente na reação a 68 a origem do novo ciclo de dominação da sociedade do espetáculo, denominado espetáculo integrado, quando países de economia capitalista mais avançada (como França e Itália) passaram a incorporar, na tentativa de frear o avanço das forças revolucionárias liberadas internamente no decurso dos anos 1960-70, algumas das técnicas de governo empregadas tanto pelos regimes concentracionários de Stalin e Hitler, como pelas ditaduras militares dos países de economia capitalista mais atrasada (como Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina e Brasil) – sem, contudo, uma correlata supressão dos arranjos institucionais do chamado Estado de direito. Ao comentar a “estratégia da tensão” aplicada pelo Estado italiano contra o movimento del ‘77, Debord notou que “só se ouviu falar com frequência de ‘Estado de direito’ a partir do momento em que o Estado moderno, chamado democrático, deixou de ser democrático” (Comentários sobre a sociedade do espetáculo, § XXVI, 1988).

Como vimos, 68 não se restringe temporalmente aos meses de maio e junho, nem espacialmente à França. No Brasil, diferentemente de países formalmente democráticos como Estados Unidos, França e Itália, em 1968 a exceção se encontrava mais à vontade para mostrar o seu próprio rosto, dado que um processo de ruptura democrática já estava em curso no país há quatro anos. Mesmo assim, o ano de 68 foi marcado pela ascensão da resistência à ditadura instaurada em 64.

A luta dos secundaristas cariocas contra o aumento no preço das refeições, no início de 1968, que resultou na morte do estudante Edson Luís e nas mobilizações subsequentes, culminariam na Passeata dos Cem Mil, em junho. A partir do segundo semestre ocorreu a contra-ofensiva dos militares e dos apoiadores civis do regime. Em julho, a ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua Maria Antônia, foi destruída por forças militares e paramilitares de orientação anticomunista como o Comando de Caça aos Comunistas (com saldo de mais um estudante morto). Em agosto, forças de repressão invadiram a Universidade de Brasília (UnB), prendendo e espancando estudantes e professores. Em outubro, os militares invadiram o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, prendendo centenas de lideranças do movimento estudantil. Em dezembro, a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) fecharia ainda mais o regime, dando início aos chamados anos de chumbo. Com a posse do general Emílio Garrastazu Médici, então chefe do SNI [3], em 30 de outubro de 1969, o regime atinge o ponto de indistinção total onde “o serviço secreto não seria apenas mais um órgão da Presidência da República; seria a própria Presidência da República”[4].

Aos ouvidos brasileiros pós-2013, esse debate (pós-68) parece assumir contornos familiares. Afinal, é inquestionável o fato de que tanto 1968 quanto 2013 marcaram, guardadas suas respectivas particularidades históricas, períodos de acirramento das lutas sociais. Parece-nos que o traço mais distintivo entre uma conjuntura e outra, mais do que nas formas e conteúdos da contestação sociopolítica e da repressão policial, consiste no fato de que a violência estatal de 2013 foi operada, desta vez, não por um regime formalmente ditatorial como em 1968, mas por um regime formalmente democrático.

Se se quiser aplicar a crítica teórica do espetáculo – crítica essa fundamentalmente nucleada pela experiência de 68 – à crise sociopolítica brasileira de 2013-18, deve-se ler com especial atenção os escritos de Guy Debord nos anos 1980. Pois a crise e o esgotamento da chamada Nova República testemunham justamente a entrada definitiva do Brasil na era do espetáculo integrado.
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[1]As críticas téorica e prática dos situacionistas, indissociáveis da crise revolucionária francesa de maio-junho, ainda são pouco lembradas por nossa historiografia sobre 68. Quando mencionadas, incorre-se em algumas imprecisões. Olgária Matos reconhece, por um lado, que “foram os situacionistas que numa mescla de marxismo, anarquismo, surrealismo, fizeram a crítica mais certeira à sociedade ‘espetacular mercantil’, onde tudo se dá sob a forma da mercadoria e esta se dá como espetáculo” (1981, p. 68). Mas erra ao afirmar que “o dia 22 de março marcou a fusão entre o leninismo, o anarquismo e o situacionismo” (Idem, p. 69). De fato, o grupo 22 de Março ao qual ela se refere (fundado em 22/03/68), resultou de uma agremiação eclética que amalgamava, de modo geral, anarquistas, trotskistas e maoístas, mas não os situacionistas. A IS também não “se formou em Strasbourg” (Idem, p. 66), como afirma a autora, mas na Itália em 1957. Os situacionistas foram os pivôs do chamado Escândalo de Strasburgo, em 1966, um dos episódios antecipadores da crise de maio. Porém, apenas um dos membros da IS, Mustapha Kayathi (autor do manifesto A miséria do meio estudantil), detinha contato com estudantes radicais de Strasbourg. Cf. Paris, 1968: As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. Já Daniel Aarão Reis Filho alude a “um texto dos anos 60” (A sociedade do espetáculo, de Guy Debord), para se compreender “o caráter mediático que a política assume desde então” (1999, p. 67). Ocorre que o livro de Debord é de 1967, e não explica 68 a posteriori, mas o antecipa em diversos aspectos, inclusive para além da questão “mediática”. Cf. “1968, O curto ano de todos os desejos”. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. 1968: Brasil/França/Alemanha. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.
[2]Cf. “O começo de uma época”. In: Internacional Situacionista, n° 12, 1969, p. 13 (Tradução nossa).
[3]O Serviço Nacional de Informações é o serviço secreto brasileiro, vigente entre 1964-90. A partir de 1990, mudaria de sigla outras três vezes. Foi o efêmero DI (Departamento de Inteligência) entre 1990-92, SSI (Subsecretaria de Inteligência) entre 1992-99 e, desde então, Abin (Agência Brasileira de Inteligência).
[4]Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 186.

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