Martinho Júnior, Luanda
1
– Os acontecimentos que se desenrolaram nos campos de batalha em Angola, nos
anos de 1987 e 1988, têm merecido as mais diversas leituras, particularmente em
relação a um dos pontos de maior tensão e confrontação: Kuito Kuanavale.
Há
pelo menos três posicionamentos, o que denota as linhas de interpretação de
cada um e os interesses que estavam (e em grande parte ainda estão) em jogo na
África Austral.
Essas
linhas abrangem tanto as interpretações dos intervenientes dum lado e do outro
da barricada, como dos investigadores, analistas e historiadores que se têm
debruçado sobre um tema tão crucial para toda a África Austral.
Por
isso é recomendável a abordagem tendo sempre como referência as duas correntes
dominantes que se apresentavam à África Austral, ao ponto de, conforme a um
processo dialéctico que já vinha de longe, não haver outra alternativa senão a
guerra:
-
A perspectiva do Movimento de Libertação em África, tendo em conta o papel
filosófico-ideológico e geo estratégico de cada um dos seus componentes posto à
prova antes na luta contra o colonialismo, uma vez que as contradições geradas
pelo Estado Novo implantado em Portugal, foram fundamentais para a decisão da
Luta Armada;
-
A perspectiva do “apartheid” e de seus aliados, que com base na instituição
do poder racial branco construído a partir da União Sul Africana e aglutinador
de filosofias e ideologias no mínimo conservadoras (para muitos retrógradas),
procurava disseminar sem remissão a nível interno e externo “bantustões” satélites,
eles próprios sucedâneos do carácter imprimido às suas próprias instituições.
2
– Essa abordagem por seu turno, era influenciada e influenciava os termos duma
situação de conflito com expressão geo estratégica global, que se sintetizava
na designação de “Guerra Fria”.
Enquanto
os países de orientação socialista, se haviam tornado aliados “naturais” do
Movimento de Libertação em África, suportando inclusive as posições do Não
Alinhamento activo cujo exemplo maior foi o empenho da Revolução Cubana, os
países componentes da NATO foram assumindo posições ambíguas, quantas vezes nos
areópagos internacionais contra o “apartheid” (a nível institucional
da ONU), mas quantas vezes também apoiando-o veladamente em função dos laços
culturais, históricos e dos que se manifestavam por via dos interesses
económicos e financeiros em jogo.
Os
sistemas de inteligência dos países da NATO, incluindo os portugueses,
funcionaram quase sempre em estreito apoio ao “apartheid”.
O “apartheid” era
assim suportado numa geometria variável pelo campo capitalista das potências,
algumas delas ex-potências coloniais com relacionamentos na África Austral, o
que balanceava o peso do espectro conservador nesse empenho.
Na
segunda metade da década de oitenta e sintomaticamente após o malogro da
Operação Argon, em que um comando do 4º Grupo de Reconhecimento de Saldanha Bay
procurou sabotar a base petrolífera da Chevron em Malembo (Cabinda), começou a
haver um posicionamento cada vez mais desfavorável ao “apartheid” por
parte das potências capitalistas, que tornaram o embargo de armas mais
rigoroso, para além da implementação de outras medidas político-diplomáticas e
económico-financeiras.
Entidades
progressistas, inclusive nas potências, assumiam também uma posição de apoio
aberto ao Movimento de Libertação em África, com manifesta expressão contra o “apartheid”,
influindo nos relacionamentos internacionais do campo capitalista.
Entre
outras razões, essas potências levaram também em consideração ter o “apartheid” levado
por diante o seu programa de armamento nuclear (chegando a produzir 6 bombas
atómicas), o que podia contribuir para uma confrontação de imprevisível
espectro, com origem na África Austral.
Entre
essas entidades progressistas há que salientar os apoios dos estados
componentes dos países nórdicos e os apoios de várias organizações anti “apartheid” espalhados
pela Europa e na própria Grã-Bretanha.
Na
Grã-Bretanha sectores de luta contra o “apartheid”, mergulhavam suas
opções históricas nos contextos da esquerda britânica, como nos contextos do
surgimento da União Sul Africana.
3
– Esse tipo de contenciosos reflecte-se nas abordagens hoje possíveis perante
uma conjuntura global, onde constam duas linhas distintas e contraditórias, que
agora se encontram já num outro processo similar ao da então “Guerra Fria”,
como se houvesse a transmissão de densidades de carácter geo estratégico duma
época para a outra, num processo que começa a ser determinante:
-
A linha que socorre a hegemonia unipolar que promove um modelo de globalização
que recorre a expedientes capitalistas neo liberais e elitistas, que se
inscreve indelevelmente no Pentágono, na OTAN, ou no ANZUS, que coloca o
capital como o grande foco de atenção e se faz sobremodo sentir em expedientes
em torno da busca incessante de domínio sobre os produtos energéticos (com
relevância para o petróleo e o gás), com incidência maior no Médio Oriente, mas
também em África e nas Américas;
-
A linha que socorre a emergência de várias opções e expressões sócio-económicas
incluindo as protagonizadas por economias de mercado, cujo objectivo é uma
conversão multipolar de todos os contenciosos em que o homem se encontra
empenhado, com recurso a expedientes progressistas que colocam o homem no centro
das atenções e reduzem o peso do capital dominante, sem deixar de recorrer ao
domínio sobre produtos energéticos (petróleo e gás), assim como minerais,
sobretudo no continente Euro-Asiático (no triângulo crítico dos BRICS formado
pela Rússia, China e Índia), mas também na América do Sul (tendo como fulcro
principal a Venezuela Bolivariana) e em África (a África do Sul é o único país
africano que faz parte dos BRICS).
4
– Parece-me evidente que a linha multipolar favorece a interpretação abrangente
do significado da batalha do Kuito Kunavale inserida numa linha distendida do
Cunene (a oeste) ao Kuando Kubango (a leste) e é precisamente nesses termos que
abordo, procurando não fugir à interpretação completa dos factos e dos
acontecimentos!
A
batalha do Kuito Kuanavale teve no triângulo de Tumpo apenas um ponto de
viragem, pelo que a sua interpretação correcta só se pode inscrever na geo
estratégica da linha Kuito Kuanavale/Calueque, pois de outra maneira dá-se azo,
com “pequenez estrutural”, a não se completar a observação geo estratégica
do imenso teatro de operações que se tornou decisivo, o que possibilita o
reforço do argumento daqueles que continuam a afirmar que foram as SADF/FALA
que saíram vitoriosos da contenda militar no Kuando Kubango!
Por
outro lado, é preciso não esquecer que, para além desses, há toda uma
influência que na última década se tem vindo a evidenciar, resultado da
aproximação de relações militares de membros da NATO, em particular Portugal
e reflectindo a gestação, a criação e empenho do AFRICOM, tirando partido das
tendências de assimilação que actualmente se fazem sentir com mais força por
via do impacto de filosofias e ideologias conservadoras em função da “abertura
do mercado”, ou seja das portas escancaradas de Angola!
Não
foi por acaso que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos esteve tão activo
em acções de influência e sensibilização (por exemplo com a “argumentista” Theresa
Whelan) especialmente dirigidas a Angola e Portugal, visando expor a geo
estratégia inicial do AFRICOM, bem como a proximidade dessa geo estratégia com
a da OTAN (NATO), tornando desde então os vínculos reciprocamente
complementares e sincronizados.
No
ataque ao governo de Kadafi na Líbia, pôde-se constatar a complementaridade, a
operacionalidade e a sincronização AFRICOM-OTAN e os reflexos que se expandem
por todo o Sahel.
A
absorção, por parte de algumas elites militares angolanas, dos conceitos da
NATO e do Pentágono, “esbate-se” no caso da interpretação relativa à
vitória geo estratégica decisiva que as forças progressistas alcançaram em
Angola em 1988, tendendo para sustentar a interpretação redutora que
sobrevaloriza o triângulo de Tumpo, enquanto subvaloriza (ou esquece) a linha
Kuito Nunavale/Calueque, pelo que fixar a vitória no triângulo de Tumpo,
conforme os últimos artigos do Jornal de Angola e da ANGOP, ao estabelecerem
omissões, possibilitam a continuação da interpretação de alguns generais que
serviram às SADF/FALA, como indiciam aproximar-se aos conceitos propostos pela
NATO/AFRICOM ultimamente tão “persuasivos” em relação a Angola!
Foto:
Monumento à batalha do Kuito Kuanavale, situado na localidade do mesmo nome.
Artigos
anteriores (os dois primeiros publicados em janeiro e o terceiro publicado em
março de 2008, no Página Um, já retirados da blogosfera):
- Cuito
Cuanavale – Vinte anos depois – I;
-
Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – II;
-
Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – III.
- Bibliografia
de R. Alport – http://www.rhodesia.nl/cuito.htm;
-
A batalha do Cuito Cuanavale – Vitória mítica de Cuba – http://rubelluspetrinus.com.sapo.pt/canavale.htm;
-
Guerra de fronteira no Sul de África – http://sistemasdearmas.com.br/ca/bushwar1.html
-
Áreas sem governação em Angola e Moçambique, preocupam EUA – http://www.rtp.pt/noticias/?article=127780&layout=121&visual=49&tm=7&)
Artigos
publicados recentemente pelo Jornal de Angola:
-
A grande vitória militar no triângulo de Tumpo – http://m.ja.sapo.ao/reportagem/a_grande_vitoria_militar_no_triangulo_do_tumpo#foto;-
Angolanos comemoram na 2ª feira o 27º aniversário da Batalha do Cuito Cuanavale
– http://www.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/noticias/politica/2015/2/12/Angolanos-comemoram-segunda-feira-aniversario-Batalha-Cuito-Cuanavale,d3a0e182-7e09-4386-95b4-72a0c63e9d47.html
-
Comandante N´Gueto pediu captura de um “katacombe” – http://m.ja.sapo.ao/inicio/reportagem/comandante_ngueto_pediu_captura_de_um_katacombe
-
Cuito Cuanavale acoge acto del 23 de marzo – http://www.portalangop.co.ao/angola/es_es/noticias/politica/2015/2/13/Cuando-Cubango-Cuito-Cuanavale-acoge-acto-del-Marzo,33e6ca36-807d-40b1-9c64-2df483d8e82a.html
-
Cuito Cunavale mudou a história – http://m.ja.sapo.ao/politica/cuito_cuanavale_mudou_a_historia_1
-
Ministo quiere celebración ncionl 23 de marzo – http://www.portalangop.co.ao/angola/es_es/noticias/politica/2015/2/13/Cuando-Cubango-Ministro-quiere-celebracion-nacional-Marzo,d47ce9b1-8af9-4a21-af62-d384cfc21618.html
-
Monumento à liberdade – http://m.ja.sapo.ao/inicio/reportagem/monumento_a_liberdade
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