terça-feira, 31 de março de 2015

A PROPÓSITO DO KUITO KUANAVALE – I




1 – Os acontecimentos que se desenrolaram nos campos de batalha em Angola, nos anos de 1987 e 1988, têm merecido as mais diversas leituras, particularmente em relação a um dos pontos de maior tensão e confrontação: Kuito Kuanavale.

Há pelo menos três posicionamentos, o que denota as linhas de interpretação de cada um e os interesses que estavam (e em grande parte ainda estão) em jogo na África Austral.

Essas linhas abrangem tanto as interpretações dos intervenientes dum lado e do outro da barricada, como dos investigadores, analistas e historiadores que se têm debruçado sobre um tema tão crucial para toda a África Austral.

Por isso é recomendável a abordagem tendo sempre como referência as duas correntes dominantes que se apresentavam à África Austral, ao ponto de, conforme a um processo dialéctico que já vinha de longe, não haver outra alternativa senão a guerra:

- A perspectiva do Movimento de Libertação em África, tendo em conta o papel filosófico-ideológico e geo estratégico de cada um dos seus componentes posto à prova antes na luta contra o colonialismo, uma vez que as contradições geradas pelo Estado Novo implantado em Portugal, foram fundamentais para a decisão da Luta Armada;

- A perspectiva do “apartheid” e de seus aliados, que com base na instituição do poder racial branco construído a partir da União Sul Africana e aglutinador de filosofias e ideologias no mínimo conservadoras (para muitos retrógradas), procurava disseminar sem remissão a nível interno e externo “bantustões” satélites, eles próprios sucedâneos do carácter imprimido às suas próprias instituições.

2 – Essa abordagem por seu turno, era influenciada e influenciava os termos duma situação de conflito com expressão geo estratégica global, que se sintetizava na designação de “Guerra Fria”.

Enquanto os países de orientação socialista, se haviam tornado aliados “naturais” do Movimento de Libertação em África, suportando inclusive as posições do Não Alinhamento activo cujo exemplo maior foi o empenho da Revolução Cubana, os países componentes da NATO foram assumindo posições ambíguas, quantas vezes nos areópagos internacionais contra o “apartheid” (a nível institucional da ONU), mas quantas vezes também apoiando-o veladamente em função dos laços culturais, históricos e dos que se manifestavam por via dos interesses económicos e financeiros em jogo.

Os sistemas de inteligência dos países da NATO, incluindo os portugueses, funcionaram quase sempre em estreito apoio ao “apartheid”.

O “apartheid” era assim suportado numa geometria variável pelo campo capitalista das potências, algumas delas ex-potências coloniais com relacionamentos na África Austral, o que balanceava o peso do espectro conservador nesse empenho.

Na segunda metade da década de oitenta e sintomaticamente após o malogro da Operação Argon, em que um comando do 4º Grupo de Reconhecimento de Saldanha Bay procurou sabotar a base petrolífera da Chevron em Malembo (Cabinda), começou a haver um posicionamento cada vez mais desfavorável ao “apartheid” por parte das potências capitalistas, que tornaram o embargo de armas mais rigoroso, para além da implementação de outras medidas político-diplomáticas e económico-financeiras.

Entidades progressistas, inclusive nas potências, assumiam também uma posição de apoio aberto ao Movimento de Libertação em África, com manifesta expressão contra o “apartheid”, influindo nos relacionamentos internacionais do campo capitalista.

Entre outras razões, essas potências levaram também em consideração ter o “apartheid” levado por diante o seu programa de armamento nuclear (chegando a produzir 6 bombas atómicas), o que podia contribuir para uma confrontação de imprevisível espectro, com origem na África Austral.

Entre essas entidades progressistas há que salientar os apoios dos estados componentes dos países nórdicos e os apoios de várias organizações anti “apartheid” espalhados pela Europa e na própria Grã-Bretanha.

Na Grã-Bretanha sectores de luta contra o “apartheid”, mergulhavam suas opções históricas nos contextos da esquerda britânica, como nos contextos do surgimento da União Sul Africana.
  
3 – Esse tipo de contenciosos reflecte-se nas abordagens hoje possíveis perante uma conjuntura global, onde constam duas linhas distintas e contraditórias, que agora se encontram já num outro processo similar ao da então “Guerra Fria”, como se houvesse a transmissão de densidades de carácter geo estratégico duma época para a outra, num processo que começa a ser determinante:

- A linha que socorre a hegemonia unipolar que promove um modelo de globalização que recorre a expedientes capitalistas neo liberais e elitistas, que se inscreve indelevelmente no Pentágono, na OTAN, ou no ANZUS, que coloca o capital como o grande foco de atenção e se faz sobremodo sentir em expedientes em torno da busca incessante de domínio sobre os produtos energéticos (com relevância para o petróleo e o gás), com incidência maior no Médio Oriente, mas também em África e nas Américas;

- A linha que socorre a emergência de várias opções e expressões sócio-económicas incluindo as protagonizadas por economias de mercado, cujo objectivo é uma conversão multipolar de todos os contenciosos em que o homem se encontra empenhado, com recurso a expedientes progressistas que colocam o homem no centro das atenções e reduzem o peso do capital dominante, sem deixar de recorrer ao domínio sobre produtos energéticos (petróleo e gás), assim como minerais, sobretudo no continente Euro-Asiático (no triângulo crítico dos BRICS formado pela Rússia, China e Índia), mas também na América do Sul (tendo como fulcro principal a Venezuela Bolivariana) e em África (a África do Sul é o único país africano que faz parte dos BRICS).

4 – Parece-me evidente que a linha multipolar favorece a interpretação abrangente do significado da batalha do Kuito Kunavale inserida numa linha distendida do Cunene (a oeste) ao Kuando Kubango (a leste) e é precisamente nesses termos que abordo, procurando não fugir à interpretação completa dos factos e dos acontecimentos!

A batalha do Kuito Kuanavale teve no triângulo de Tumpo apenas um ponto de viragem, pelo que a sua interpretação correcta só se pode inscrever na geo estratégica da linha Kuito Kuanavale/Calueque, pois de outra maneira dá-se azo, com “pequenez estrutural”, a não se completar a observação geo estratégica do imenso teatro de operações que se tornou decisivo, o que possibilita o reforço do argumento daqueles que continuam a afirmar que foram as SADF/FALA que saíram vitoriosos da contenda militar no Kuando Kubango!

Por outro lado, é preciso não esquecer que, para além desses, há toda uma influência que na última década se tem vindo a evidenciar, resultado da aproximação de relações militares de membros da NATO, em particular Portugal e reflectindo a gestação, a criação e empenho do AFRICOM, tirando partido das tendências de assimilação que actualmente se fazem sentir com mais força por via do impacto de filosofias e ideologias conservadoras em função da “abertura do mercado”, ou seja das portas escancaradas de Angola!

Não foi por acaso que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos esteve tão activo em acções de influência e sensibilização (por exemplo com a “argumentista” Theresa Whelan) especialmente dirigidas a Angola e Portugal, visando expor a geo estratégia inicial do AFRICOM, bem como a proximidade dessa geo estratégia com a da OTAN (NATO), tornando desde então os vínculos reciprocamente complementares e sincronizados.

No ataque ao governo de Kadafi na Líbia, pôde-se constatar a complementaridade, a operacionalidade e a sincronização AFRICOM-OTAN e os reflexos que se expandem por todo o Sahel.

A absorção, por parte de algumas elites militares angolanas, dos conceitos da NATO e do Pentágono, “esbate-se” no caso da interpretação relativa à vitória geo estratégica decisiva que as forças progressistas alcançaram em Angola em 1988, tendendo para sustentar a interpretação redutora que sobrevaloriza o triângulo de Tumpo, enquanto subvaloriza (ou esquece) a linha Kuito Nunavale/Calueque, pelo que fixar a vitória no triângulo de Tumpo, conforme os últimos artigos do Jornal de Angola e da ANGOP, ao estabelecerem omissões, possibilitam a continuação da interpretação de alguns generais que serviram às SADF/FALA, como indiciam aproximar-se aos conceitos propostos pela NATO/AFRICOM ultimamente tão “persuasivos” em relação a Angola!
  
Foto: Monumento à batalha do Kuito Kuanavale, situado na localidade do mesmo nome.

Artigos anteriores (os dois primeiros publicados em janeiro e o terceiro publicado em março de 2008, no Página Um, já retirados da blogosfera):

- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – I;
- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – II; 
- Cuito Cuanavale – Vinte anos depois – III.

- Bibliografia de R. Alport – http://www.rhodesia.nl/cuito.htm; 
- A batalha do Cuito Cuanavale – Vitória mítica de Cuba – http://rubelluspetrinus.com.sapo.pt/canavale.htm; 
- Guerra de fronteira no Sul de África – http://sistemasdearmas.com.br/ca/bushwar1.html
- Áreas sem governação em Angola e Moçambique, preocupam EUA – http://www.rtp.pt/noticias/?article=127780&layout=121&visual=49&tm=7&)

Artigos publicados recentemente pelo Jornal de Angola:

- Comandante N´Gueto pediu captura de um “katacombe” – http://m.ja.sapo.ao/inicio/reportagem/comandante_ngueto_pediu_captura_de_um_katacombe

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