Cinquenta anos depois, é ainda
mais necessário examinar em profundidade um movimento que indicou o esgotamento
do capitalismo mas inspirou, ao mesmo tempo, a “renovação” pós-moderna do
sistema
Erick Corrêa | Outras Palavras
1968 constitui um evento de
dimensão histórico-mundial (Wallerstein), assim como 1789-91, 1848,
1917, 1989-91, pois assinala um ponto de virada histórico suficientemente
persuasivo para instaurar um novo world time (Eberhard).
Particularmente contagiante, a expressão francesa da crise internacional,
detonada em Paris no mês de maio, funcionaria como uma espécie de catalisador
de outras revoltas antissistêmicas em arenas locais distantes como Varsóvia,
Praga, Dublin, Berlim, Tóquio, São Paulo, Cidade do México ou Lima.
Devido a esta repercussão mundial
da experiência francesa, convencionou-se nos meios jornalísticos e até mesmo
acadêmicos reduzir 68 ao maio de 68, uma referência ao mês no qual a
contestação de setores esquerdistas do movimento estudantil universitário
explodiu nas barricadas da Rua Gay-Lussac, no entorno da Sorbonne em Paris. Já
a referência a maio-junho de 68 incorpora o desfecho conclusivo da
crise, quando o impacto causado pelos Acordos de Grenelle – pactuados, no fim
de maio, pelo Ministério do Trabalho com a Confederação Geral do Trabalho
(CGT), sob a direção do Partido Comunista Francês (PCF) –, somado à proibição
das organizações revolucionárias mediante decreto governamental de 12 de junho,
e a subsequente vitória eleitoral de De Gaulle, conseguiram finalmente
canalizar as energias revolucionárias do movimento para saídas reformistas.
Contudo, este ano turbulento não
começou nem terminou em 1968, algo que a expressão anos 68 também
tenta exprimir. Na Itália, por exemplo, a contestação eclodiu um ano antes da
rebelião na França, arrastando-se por mais dez anos.
A cada decênio, repõe-se uma
situação de disputa pela memória e significado de 68, sempre renovada por uma
série de publicações acadêmicas e editoriais jornalísticos que polemizam sobre
o anacronismo ou, pelo contrário (a depender do ponto de vista), sobre a
atualidade ou contemporaneidade das aspirações libertárias e energias
revolucionárias liberadas naquele ano.
Não há também consenso quanto ao
seu impacto sobre a vida social, se este foi subestimado ou superestimado pelos
protagonistas daquela geração. Afinal, 68 foi uma revolução social derrotada,
ou tudo não passou de uma intentona hedonista e iconoclasta de perturbação
do status quo pela juventude revoltada? 68 resultou na vitória da
heteronomia e do individualismo pós-moderno ou simboliza um importante marco
temporal nos processos de descolonização e de emancipação das populações
submetidas às mais diversas formas históricas de opressão (patriarcal,
heteronormativa, xenofóbica, étnico-racial, política)?
Algumas interpretações mais
dogmáticas chegam a reduzir a história de 1968 a um tudo ou nada maniqueísta,
incapaz de perceber a sua dimensão histórica real.
É nesse sentido, nos parece, que
a provocação lançada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1984), de que o Maio de 68 não aconteceu, deve ser entendida: pois, se a
luta não começou nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela terminou
com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolveu posteriormente também
nas trincheiras do campo simbólico, isto é, nos conflitos ideológicos pela
memória do evento. De fato, as interpretações sobre 68 dividem-se mesmo no
interior de campos políticos afins, principalmente à esquerda do espectro
sociopolítico, sobretudo na França, país onde o evento despertou as reações
mais furiosas e apaixonadas. O caso dos antigos fundadores da revista Socialismo
ou Barbárie (1949-67), Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, é exemplar
nesse sentido. Para o primeiro, 68 foi uma revolta bem sucedida, enquanto
que para o segundo, não passou de uma revolução fracassada.
Guy Debord, fundador de uma
pequena, porém influente organização, a Internacional Situacionista (IS,
1957-72), constatou em 88 que nada havia sido até ali “tão dissimulado com
mentiras dirigidas” quanto a história de 68. De fato, naquele mesmo ano, surgia
pela primeira vez na França um livro sobre 68 produzido pelo campo néocon(neoconservador),
chamado O pensamento 68, dos ideólogos Luc Ferry e Alain Renaut.
Vinte anos depois, no livro O
pensamento anti-68 (2008), o filósofo Serge Audier alertava para o que
chamou de trabalho de deslegitimação de 68, realizado por três atores
principais, oriundos de campos políticos e intelectuais distintos, mas que
convergiram na interpretação sobre aquele episódio: os gaullistas (retórica do
“complô internacional”), os comunistas (retórica das “provocações
esquerdistas”) e os neoconservadores (como o ex-presidente Nicolas Sarkozy),
que pretendia liquidar a herança de maio de 68.
Em 2018, o atual presidente da
França, Emmanuel Macron, restaurou a polêmica sobre o legado de 68 desde um
ponto de vista modernisateurque, longe de liquidar com a herança de 68,
pretende instrumentalizá-la, ressaltando as supostas características
liberal-modernizantes do evento, enquanto oculta seus aspectos mais selvagens
(como a greve geral de 10 milhões de trabalhadores com ocupação de fábricas e
universidades).
Para os situacionistas[1], “de todos os critérios parciais
utilizados para acordar ou não o título de revolução a tal período de
perturbação no poder estatal, o pior é seguramente aquele que considera se o
regime em vigor caiu ou se manteve. Esse critério […] é o mesmo que permite à
informação diária qualificar como revolução qualquer putsch militar
que tenha mudado o regime do Brasil, de Gana ou do Iraque”. A “prova mais
evidente” do caráter revolucionário de 68, continuam os situacionistas, “para
aqueles que conhecem a história do nosso século, ainda é esta: tudo o que os
stalinistas fizeram, sem recuo, em todos os estágios, para combater o
movimento, prova que a revolução estava lá”[2].
Debord, por sua vez,
identificaria justamente na reação a 68 a origem do novo ciclo de dominação da
sociedade do espetáculo, denominado espetáculo integrado, quando países de
economia capitalista mais avançada (como França e Itália) passaram a
incorporar, na tentativa de frear o avanço das forças revolucionárias liberadas
internamente no decurso dos anos 1960-70, algumas das técnicas de governo
empregadas tanto pelos regimes concentracionários de Stalin e Hitler, como
pelas ditaduras militares dos países de economia capitalista mais atrasada
(como Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina e Brasil) – sem,
contudo, uma correlata supressão dos arranjos institucionais do chamado Estado
de direito. Ao comentar a “estratégia da tensão” aplicada pelo Estado italiano
contra o movimento del ‘77, Debord notou que “só se ouviu falar com
frequência de ‘Estado de direito’ a partir do momento em que o Estado moderno,
chamado democrático, deixou de ser democrático” (Comentários sobre a sociedade
do espetáculo, § XXVI, 1988).
Como vimos, 68 não se restringe
temporalmente aos meses de maio e junho, nem espacialmente à França. No Brasil,
diferentemente de países formalmente democráticos como Estados Unidos, França e
Itália, em 1968 a exceção se encontrava mais à vontade para mostrar o seu
próprio rosto, dado que um processo de ruptura democrática já estava em curso
no país há quatro anos. Mesmo assim, o ano de 68 foi marcado pela ascensão da
resistência à ditadura instaurada em 64.
A luta dos secundaristas cariocas
contra o aumento no preço das refeições, no início de 1968, que resultou na
morte do estudante Edson Luís e nas mobilizações subsequentes, culminariam na
Passeata dos Cem Mil, em junho. A partir do segundo semestre ocorreu a
contra-ofensiva dos militares e dos apoiadores civis do regime. Em julho, a
ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua
Maria Antônia, foi destruída por forças militares e paramilitares de orientação
anticomunista como o Comando de Caça aos Comunistas (com saldo de mais um
estudante morto). Em agosto, forças de repressão invadiram a Universidade de
Brasília (UnB), prendendo e espancando estudantes e professores. Em outubro, os
militares invadiram o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em
Ibiúna, prendendo centenas de lideranças do movimento estudantil. Em dezembro,
a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) fecharia ainda mais o regime,
dando início aos chamados anos de chumbo. Com a posse do general Emílio
Garrastazu Médici, então chefe do SNI [3], em 30 de outubro de 1969, o regime
atinge o ponto de indistinção total onde “o serviço secreto não seria apenas
mais um órgão da Presidência da República; seria a própria Presidência da
República”[4].
Aos ouvidos brasileiros pós-2013,
esse debate (pós-68) parece assumir contornos familiares. Afinal, é
inquestionável o fato de que tanto 1968 quanto 2013 marcaram, guardadas suas
respectivas particularidades históricas, períodos de acirramento das lutas
sociais. Parece-nos que o traço mais distintivo entre uma conjuntura e outra,
mais do que nas formas e conteúdos da contestação sociopolítica e da repressão
policial, consiste no fato de que a violência estatal de 2013 foi operada,
desta vez, não por um regime formalmente ditatorial como em 1968, mas por um
regime formalmente democrático.
Se se quiser aplicar a crítica
teórica do espetáculo – crítica essa fundamentalmente nucleada pela experiência
de 68 – à crise sociopolítica brasileira de 2013-18, deve-se ler com especial
atenção os escritos de Guy Debord nos anos 1980. Pois a crise e o esgotamento
da chamada Nova República testemunham justamente a entrada definitiva do Brasil
na era do espetáculo integrado.
_________________________
[1]As críticas téorica e prática dos
situacionistas, indissociáveis da crise revolucionária francesa de maio-junho,
ainda são pouco lembradas por nossa historiografia sobre 68. Quando
mencionadas, incorre-se em algumas imprecisões. Olgária Matos reconhece, por um
lado, que “foram os situacionistas que numa mescla de marxismo, anarquismo,
surrealismo, fizeram a crítica mais certeira à sociedade ‘espetacular
mercantil’, onde tudo se dá sob a forma da mercadoria e esta se dá como
espetáculo” (1981, p. 68). Mas erra ao afirmar que “o dia 22 de março marcou a
fusão entre o leninismo, o anarquismo e o situacionismo” (Idem, p. 69). De
fato, o grupo 22 de Março ao qual ela se refere (fundado em
22/03/68), resultou de uma agremiação eclética que amalgamava, de modo geral,
anarquistas, trotskistas e maoístas, mas não os situacionistas. A IS também não
“se formou em Strasbourg” (Idem, p. 66), como afirma a autora, mas na Itália em
1957. Os situacionistas foram os pivôs do chamado Escândalo de Strasburgo, em
1966, um dos episódios antecipadores da crise de maio. Porém, apenas um dos
membros da IS, Mustapha Kayathi (autor do manifesto A miséria do meio
estudantil), detinha contato com estudantes radicais de Strasbourg. Cf. Paris,
1968: As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. Já Daniel
Aarão Reis Filho alude a “um texto dos anos 60” (A sociedade do espetáculo, de
Guy Debord), para se compreender “o caráter mediático que a política assume
desde então” (1999, p. 67). Ocorre que o livro de Debord é de 1967, e não
explica 68 a posteriori, mas o antecipa em diversos aspectos, inclusive para
além da questão “mediática”. Cf. “1968, O curto ano de todos os desejos”. In:
GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores.
1968: Brasil/França/Alemanha. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.
[2]Cf. “O começo de uma época”. In: Internacional
Situacionista, n° 12, 1969, p. 13 (Tradução nossa).
[3]O Serviço Nacional de Informações é o serviço
secreto brasileiro, vigente entre 1964-90. A partir de 1990, mudaria de sigla
outras três vezes. Foi o efêmero DI (Departamento de Inteligência) entre
1990-92, SSI (Subsecretaria de Inteligência) entre 1992-99 e, desde então, Abin
(Agência Brasileira de Inteligência).
[4]Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do
Silêncio. A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula
(1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 186.
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