quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Geopolítica: a Eurásia renasce — e quer ser alternativa


Ferrovias. Energia. Resistência à pressão militar dos EUA. Substituição gradual do dólar. Fórum de Vladivostok consolida parceria estratégica entre China e Rússia, no instante em que Ocidente permanece em crise 

Pepe Escobar*, no Asian Times 

Xi Jinping e Vladimir Putin foram vistos numa joint venture culinária. Panquecas com caviar (blin, em russo), empurrados com um shot de vodca. Aconteceu há dias, no Fórum Econômico Oriental em Vladivostok. É metáfora desenhada (e comestível) para selar a sempre crescente ‘parceria estratégica abrangente russo-chinesa’. Assista:

á há alguns anos, o Fórum de Vladivostok vem oferecendo um mapa inigualável do caminho, a quem se interesse por rastrear o progresso da integração da Eurásia.

Ano passado, às margens do Fórum, Moscou e Seul fizeram o lançamento bombástico de uma plataforma comercial trilateral, a qual, crucialmente, integrou Pyongyang, girando em torno de um corredor de conectividade de toda a península coreana com o Extremo Oriente da Rússia.

Tópicos de discussão em mesa redonda, esse ano, incluíram a integração do Extremo Oriente da Rússia em conexões logísticas; mais uma vez, a conexão entre Rússia e as Coreias – com o objetivo de construir uma Ferrovia Trans-Coreana conectada à Trans-Siberiana e um ramo do “Oleogasodutostão” que se conecta com a Coreia do Sul via China. Outros tópicos foram a parceria Rússia-Japão em termos de aumentar o trânsito eurasiano, centrado na conexão da Trans-Siberiana com a Linha Principal [ing. Baikal-Amur Mainline (BAM)], já ampliado para uma ferrovia projetada até a ilha de Sakhalin, e dali direto até a ilha de Hokkaido.

O futuro: de Tóquio a Londres, direto, por trem.

E há também a integração de Rússia e Associação de Nações do Sudeste Asiático, ANSA [ing. ASEAN] – ampliando projetos atuais de infraestrutura, agrícolas e de construção de navios, para energia, setor agroindustrial e de florestas, como delineado por Ivan Polyakov, presidente do Conselho de Negócios Rússia-ANSA.

Essencialmente aí se trata de construir simultaneamente um eixo crescente Oriente-Ocidente e também um eixo Norte-Sul. Rússia, China, Japão, as Coreias e o Vietnã, avançam, lentamente, mas com firmeza, rumo a sólida integração geoeconômica.

A mesa de discussão talvez mais fascinante em Vladivostok foi Crossroads on the Silk Road  [Cruzamentos na Rota da Seda], que reuniu, dentre outros, Sergey Gorkov, vice-ministro de Desenvolvimento Econômico da Rússia; Wang Yilin, presidente da gigante chinesa do petróleoCNPC, e Zhou Xiaochun, vice-presidente do grupo de diretores do essencial Boao Forum.

O ímpeto de Moscou é unir as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) com a União Econômica Eurasiana (UEE). Mas o objetivo geoeconômico final é ainda mais ambicioso: uma “parceria Eurasiana Expandida”, na qual a ICE converge na direção da UEE, da Organização de Cooperação de Xangai, OCX, e ANSA. No coração desse gigante está a parceria estratégica Rússia-China.

O mapa do caminho adiante, é claro, envolve tocar as cordas certas de um acorde complexo de equilíbrio entre interesses políticos e práticas gerenciais em múltiplos projetos Oriente-Ocidente. A simbiose cultural tem de entrar nesse quadro. A parceria Rússia-China tende cada vez mais a pensar em termos de Go (weiqi, o jogo), visão partilhada, baseada em princípios estratégicos universais.

Outra mesa de discussão chave em Vladivostok reuniu Fyodor Lukyanov, diretor de pesquisa no sempre essencial Clube de Discussão Valdai, e Lanxin Xiang, diretor do Centro de Estudos de Um Cinturão, Uma Estrada, no Instituto Nacional Chinês para Colaboração Internacional da OCX. A discussão aí se centrou na interação geopolítica asiática, envolvendo Rússia, China e Índia, países-chaves dos (B)RICS, e em como a Rússia pode capitalizar sobre essa interação, ao mesmo tempo em que navega pelo pântano da guerra comercial de sanções cada vez mais violentas.

Toda a energia vem da Sibéria

Tudo volta sempre ao básico e à parceria estratégica Rússia-China sempre em evolução. Xi e Putin autoenvolveram-se nela até o âmago. Xi define a parceria como o melhor mecanismo para que “se neutralizem conjuntamente os riscos e desafios externos”. Para Putin, “nossas relações são cruciais, não só para nossos países, mas também para o mundo.” É a primeira vez que um líder chinês participa nas discussões de Vladivostok.

A China está progressivamente se interconectando com o Extremo Oriente da Rússia. Corredores internacionais de transporte – Primorye 1 e Primorye 2 – darão novo impulso ao trânsito de cargas entre Vladivostok e o nordeste da China. A empresa Gazprom está próxima de completar o trecho russo do gigantesco gasoduto “Energia [poder] da Sibéria” até a China, em parceria com a CNPC. Mais de 2 mil quilômetros de dutos já foram instalados de Yakutia até a fronteira russo-chinesa. O gasoduto Energia [poder] da Sibéria começará a operar em dezembro de 2019.

Segundo o Fundo Russo de Investimento Direto, FRID [ing. Russian Direct Investment Fund (RDIF)], a parceria está avaliando 73 projetos de investimento no valor total de mais de $100 bilhões. A Comissão Comercial Russo-Chinesa de Aconselhamento faz a supervisão, incluindo mais de 150 executivos das maiores empresas russas e chinesas. O CEO do FRID, Kirill Dmitriev, está convencido de que “haverá transações particularmente promissoras nos acordos bilaterais que serão resultado do relacionamento produtivo entre Rússia e China.”

Em Vladivostok, Putin e Xi mais uma vez concordaram em manter crescente comércio bilateral em yuan e rublos, deixando de lado o EUA-dólar – já efeito da decisão tomada por ambos em junho, de aumentar o número de contratos denominados em yuan-rublo. Paralelamente, o ministro do Desenvolvimento Econômico Maksim Oreshkin aconselhou os russos a vender EUA-dólares e comprar rublos.

Moscou espera apreciação do rublo para cerca de 64 por EUA-dólar, no próximo ano. Atualmente é comercializado em cerca de 70 rublos /dólar, puxado para baixo pelas sanções EUA e pelo estrago que o dólar-arma-política está causando no Brasil, Índia e África do Sul, e também em estados aspirantes a ser (B)RICS, chamados “BRICS Plus“, como Turquia e Indonésia.

Putin e Xi mais uma vez reafirmaram que continuarão a trabalhar coordenadamente em seu mapa do caminho intercoreano baseado em um “duplo esfriamento” – a Coreia do Norte suspende os testes nucleares e lançamentos de mísseis balísticos, e os EUA suspendem os exercícios militares com Seul.
Mas o que parece estar realmente capturando a imaginação das duas Coreias é a ferrovia Transcoreana. Kim Chang-sik, presidente do desenvolvimento de ferrovias em Pyongyang disse: “Desenvolveremos ainda mais esse projeto a partir de negociações entre Rússia, Coreia do Norte e Coreia do Sul, de modo que os proprietários do projeto serão os países da Península Coreana.”

Isso se conecta ao que disse o presidente sul-coreano Moon Jae-in há apenas três meses: “Tão logo a linha principal Trans-Coreana esteja construída, poderá ser conectada à Ferrovia Trans-Siberiana. Com isso, será possível entregar produtos da Coreia do Sul à Europa, o que será economicamente benéfico não só para as Coreias, do Sul e do Norte, mas também para a Rússia.”

Compreenda a matryoshka

Ao contrário do que reza a histeria ocidental mal informada ou manipulada, os jogos de guerra em Vostok, na Trans-Baikal do Extremo Oriente da Rússia, incluindo 3 mil soldados chineses, são apenas uma parte da muito mais profunda complexa parceria estratégica Rússia-China. É feito uma matryoshka: o jogo de guerra é uma boneca dentro do jogo geoeconômico.

Em ‘China and Rússia: The New Rapprochement’ [China e Rússia: a nova reaproximação], Alexander Lukin, da Escola Superior de Economia da Universidade Nacional em Moscou, expõe em detalhes todo o mapa do caminho; a ampla parceria ainda em construção para toda a Eurásia, é parte de um conceito muito mais amplo e abrangente de “Eurásia Expandida” [ing. “Greater Eurasia”]. Esse é o âmago da entente Rússia-China, levando a o que o cientista político Sergey Karaganov chamou de “um espaço comum para cooperação econômica, logística e de informação, paz e segurança, de Xangai a Lisboa e de Nova Delhi a Murmansk.”

Sem compreender o Grande Quadro que envolve debates como a reunião anual em Vladivostok, é impossível compreender o modo como a integração progressiva de ICE, UEE, OCX, ANSA, (B)RICS e (B)RICS Plus está orientada para mudar irreversivelmente o atual sistema-mundo.

*Pepe Escober - Jornalista brasileiro, correspondente internacional desde 1985, morou em Paris, Los Angeles, Milão, Singapura, Bangkok e Hong Kong. Escreve sobre Asia central e Oriente Médio para as revistas Asia Times Online, Al Jazeera, The Nation e The Huffington Post.

EUA: O século de guerras perdidas


James Petras

Apesar de ter o maior orçamento militar do mundo, cinco vezes maior do que os seis países seguintes, o maior número de bases militares no mundo – mais de 180 – e o complexo industrial militar mais caro, os EUA não conseguiram ganhar uma única guerra no século XXI.

Neste artigo, vamos enumerar as guerras e analisar porque é que, apesar da poderosa base material para guerras, elas acabaram em fracassos.

As guerras perdidas 

Os EUA têm estado envolvidos em múltiplas guerras e golpes desde o início do século XXI. Incluem o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria, a Somália, a Palestina, a Venezuela e a Ucrânia. Para além disso, os serviços secretos de Washington têm financiado cinco grupos terroristas no Paquistão, na China, na Rússia, na Sérvia e na Nicarágua.

Os EUA têm invadido países, declarado vitórias e, subsequentemente, enfrentado resistência e guerra prolongada o que tem exigido uma enorme presença militar americana apenas para proteger as guarnições dos postos avançados.

Os EUA têm sofrido centenas de milhares de baixas – soldados mortos, estropiados e desequilibrados. Quanto mais gasta o Pentágono, maiores as perdas e subsequentes retiradas.

Quanto mais numerosos são os regimes vassalos, maior é a corrupção e a incompetência.

Todos os regimes sujeitos à tutela dos EUA têm fracassado em cumprir os objetivos pretendidos pelos seus conselheiros militares norte-americanos.

Quanto mais é gasto no recrutamento de exércitos mercenários, maior é a taxa de deserção e a transferência de armas para os adversários dos EUA.

O êxito em começar guerras e o fracasso em terminá-las

Os EUA invadiram o Afeganistão, tomaram a capital (Cabul), derrotaram o exército regular… e depois passaram os vinte anos seguintes atolados em guerras irregulares perdidas.

As vitórias iniciais prepararam o terreno para as derrotas futuras. Os bombardeamentos empurraram milhões de camponeses e agricultores, pequenos comerciantes e artesãos para as milícias locais. Os invasores foram derrotados pelas forças do nacionalismo e da religião, ligadas às famílias e às comunidades. Os rebeldes indígenas recolheram armas e dólares em muitas das aldeias, cidades e províncias.

Resultados semelhantes repetiram-se no Iraque e na Líbia. Os EUA invadiram, derrotaram os exércitos regulares, ocuparam a capital e impuseram os seus clientes – que prepararam o terreno para guerras de longa duração, a grande escala, com os exércitos rebeldes locais.

Quanto mais frequentes os bombardeamentos ocidentais, maior a oposição para forçar a retirada do exército por procuração.

A Somália tem sido bombardeada com frequência. Forças Especiais recrutaram, treinaram e armaram soldados fantoches locais, apoiados por exércitos mercenários africanos, mas têm-se mantido refugiados na capital, Mogadíscio, rodeados e atacados por rebeldes islâmicos, fracamente armados, mas fortemente motivados e disciplinados.

A era das guerras imperialistas

A Síria está na mira de um exército mercenário financiado e armado pelos EUA. No início, avançaram, desenraizaram milhões, destruíram cidades e lares e apoderaram-se de território. Tudo isso impressionou os senhores da guerra dos EUA-UE. Depois de o exército sírio ter unido a população, com os seus aliados russos, libaneses (Hezbollah) e iranianos, Damasco expulsou os mercenários.

Decorridos quase dez anos, os curdos separatistas, juntamente com terroristas islâmicos e outras forças de aluguer, retiraram-se e mantêm um último reduto ao longo das fronteiras norte – os derradeiros bastiões das forças de aluguer ocidentais.

O golpe da Ucrânia em 2014 foi financiado e dirigido pelos EUA e pela UE. Tomaram a capital (Kiev) mas não conseguiram conquistar a Ucrânia do Leste e a Crimeia. A corrupção entre os cleptocratas sob o domínioa norte-americano devastou o país – mais de três milhões fugiram para a Polónia, para a Rússia e outros países em busca de subsistência. A guerra continua, os clientes corruptos dos EUA estão desacreditados e vão sofrer uma derrota eleitoral, a não ser que viciem as eleições.

Os levantamentos encomendados na Venezuela e na Nicarágua foram financiados pela National Endowment for Democracy (NED) dos EUA. Arruinaram a economia, mas perderam a guerra na rua.

Conclusão 

As guerras não são ganhas só pelas armas. Na verdade, os pesados bombardeamentos e as prolongadas ocupações militares aumentam a resistência popular, em última análise levam a retiradas e derrotas.

As grandes e pequenas guerras dos EUA no século XXI não têm conseguido incorporar os países visados ao seu império.

Ocupações imperialistas não são vitórias militares. Apenas alteram a natureza da guerra, os protagonistas da resistência, o âmbito e a profundidade da luta nacional.

Os EUA têm tido êxito a derrotar exércitos regulares, como aconteceu na Líbia, Iraque, Somália e Ucrânia. Mas a conquista ficou limitada no tempo e no espaço. Surgiram novos movimentos de resistência armada, liderados por antigos oficiais, ativistas religiosos e ativistas de base…

As guerras imperialistas chacinaram milhões, destruíram as relações tradicionais da família, do local de trabalho e dos vizinhos e puseram em marcha uma nova constelação de líderes anti-imperialistas e combatentes em milícias.

As forças imperialistas decapitaram líderes instituídos e dizimaram os seus apoiantes. Assaltaram e pilharam antigos tesouros. A resistência reagiu recrutando milhares de voluntários desenraizados que serviram de bombas humanas, desafiando mísseis e drones.

As forças imperialistas dos EUA não têm ligações à terra ocupada e à população. São "estranhos" que trabalham à hora; procuram sobreviver, garantir promoções e ir-se embora com um bónus e uma dispensa honrosa.

Em contraste, os combatentes da resistência estão ali para ficar. À medida que avançam, visam e abatem os representantes imperialistas e os mercenários. Denunciam os governantes corruptos que negam à população as condições elementares de existência – emprego, água potável, eletricidade, etc.

Os vassalos imperialistas não comparecem a casamentos, dias sagrados nem funerais, ao contrário dos combatentes da resistência. A presença destes últimos assinala um juramento de lealdade para com os mortos. A resistência circula livremente nas cidades, vilas e aldeias, com a proteção da população local; e à noite, dominam o terreno inimigo, protegidos pelo seu povo, que lhes passa informações e logística.

A inspiração, a solidariedade e as armas ligeiras podem mais do que um conflito com drones, mísseis e metralhadoras em helicópteros.

Até os soldados mercenários, treinados pelas Forças Especiais, desertam e traem os seus amos imperialistas. Os avanços imperialistas temporários só servem para as forças da resistência se reagruparem e contra-atacarem. Consideram a rendição como uma traição à sua forma de vida tradicional, como a submissão à bota das forças da ocupação ocidental e aos seus funcionários corruptos.

O Afeganistão é um bom exemplo de uma "guerra imperialista perdida". Depois de vinte anos de guerra e de mil milhões de dólares de despesas militares, dezenas de milhares de baixas, os Talibãs controlam a maior parte do campo e das cidades; entram e conquistam capitais provinciais e bombardeiam Cabul. Assumirão controlo total, no dia em que os EUA se retirarem.

As derrotas militares dos EUA são o produto de um erro fatal: os planeadores imperialistas não podem substituir com êxito a população indígena por governantes colonialistas e comparsas locais.

As guerras não se ganham com armas de alta tecnologia, dirigidas por funcionários ausentes, divorciados da população; não partilham do seu sentido de paz e justiça.

A população explorada, imbuída de um espírito de resistência comunitária e de abnegação, tem demonstrado maior coesão do que soldados em rotação, ansiosos para regressar a casa e soldados mercenários com sinais de dólar nos olhos.

As lições de guerras perdidas ainda não foram aprendidas por aqueles que pregam o poder do complexo militar-industrial, que fabrica, vende e lucra com as armas, mas têm falta da massa humana com menos armas mas com maior convicção, que tem demonstrado a sua capacidade de derrotar exércitos imperialistas.

A bandeira dos EUA mantém-se desfraldada em Washington, mas está bem dobrada nos gabinetes das embaixadas em Cabul, Trípoli, Damasco e noutras zonas de batalhas perdidas. 

Ver também: 
  A supremacia militar perdida dos EUA

O original encontra-se em www.globalresearch.ca/the-us-the-century-of-lost-wars/5653844 .
Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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