Ary dos Santos morre jovem, em 18
de Janeiro de 1984, com 47 anos, na vertigem de uma vida vivida com a mesma
intensidade que iluminava a sua poesia.
Manuel Augusto Araújo | Abril
Abril | opinião
Ary dos Santos foi um malabarista
da palavra, descobrindo na simplicidade das metáforas conexões inesperadas que
se apropriam da linguagem popular que recupera para a linguagem maior, mesmo
erudita, da poesia. São raros os poetas que conseguem o ritmo encantatório,
quase alucinado que imprime aos seus versos. Ler Ary no silêncio das páginas
acaba sempre por acordar a sua poderosa voz de declamador em que sabia como
poucos enfatizar a oralidade omnipresente na sua poesia escrita para ser dita
ou cantada. Na poesia de Ary tudo parece fácil, quase imediato, escrito de um
jacto sem rasuras. Uma aparente facilidade que oculta um intenso e complexo
trabalho de criatividade e renovação que mergulha nas raízes populares sem
nunca decair no imediatismo nem nas vulgaridades. Há uma linha de continuidade
na sua obra poética, desde o seu primeiro livro Adereços, Endereços até ao
último Estrada da Luz/Rua da Saudade, uma autobiografia romanceada de uma
vida em que todos os minutos foram vividos em alta rotação, assumidos com uma
coragem rara.
A sua importância para a poesia
moderna portuguesa é inegável não só por ser um cidadão-poeta empenhado desde
sempre na transformação social, o que adquire expressão maior no pós-25 de
Abril, como na renovação do fado, a canção típica da sua bem-amada cidade:
Lisboa.
Como nenhum outro é o poeta por
excelência da Revolução dos Cravos que plasmou em inúmeros poemas de alto
calibre na sua grande qualidade e originalidade, colocando em muitos a tónica
militante do amor ao seu partido, o Partido Comunista Português. Uma poesia
viril, uma voz indomada e indomável, como bem escreveu Baptista-Bastos, bem
expressa no poema «Poeta Castrado, Não!»:
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é seu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já se não fala
‑ é tão vulgar que nos cansa
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
‑ a morte é branda e letal –
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
‑ Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
‑ Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Não, nunca foi um poeta castrado.
Foi um poeta militante, um homem-poeta traidor à sua classe, era oriundo de uma
família aristocrática, por amor ao seu povo.
Versos para serem cantados ou
declamados que falam da grandeza das coisas simples, do amor, da nobreza do
trabalho, das lutas pelos amanhãs que virão, da pulsação cívica dos bairros,
dos mistérios escondidos nos passagens da sua cidade. Versos que parecem surgir
do nada, do quase nada como se construíssem repentinamente e que são muitíssimo
trabalhados por quem, como poucos, arrombava todos os segredos da língua.
Poemas que assombram pelo ritmo que a declamação sublinha e por, nas canções,
se colarem à música para que foram escritos. Assombro ainda maior por serem
escritos sobre a música e não musicados a posteriori, por um Ary que sem
conseguir acertar um compasso descobria a vibração do som com um fulgor
deslumbrante. Ouça-se «Estrela da Tarde», um paradigma dessa revelação num poema
em que o poeta exige uma música onde pudesse colocar a torrente de palavras que
o inquietava.
Um elitismo bacoco e infame
procura diminuir a grandeza de Ary dos Santos, não lhe perdoando a Bandeira
Vermelha1 que
orgulhosamente transportava, que procuram silenciá-lo fazendo-o pagar bem caro
a sua militância comunista, a sua assumida homossexualidade.
No trabalho sobre a palavra em
Ary, nada é banal nem banalizável, mesmo nos slogans publicitários em que
roçava, a par de Alexandre O’Neill, a excepcionalidade.
Ary é um génio da poesia, das
letras extraordinárias para fados e canções. Um talento superlativo, magnifico,
sem desperdícios de um homem de uma grandeza de alma incomum amante do seu
país, do seu povo, da sua cidade, do seu partido.
Ary dos Santos morre jovem, em 18
de Janeiro de 1984 com 47 anos, na vertigem de uma vida vivida com a mesma
intensidade que iluminava a sua poesia. Uma vida cunhada pela frontalidade, a
generosidade e o vigor que colocava em cada segundo que vivia.
É este poeta maior entre os
poetas seus contemporâneos que está ocultado dos programas escolares. Raramente
é recordado nos meios de comunicação social, silêncio de maior a estranheza na
rádio e na televisão sendo ele autor de muitas das mais belas canções que se
escreveram em português. É a infâmia do círculo de silêncio da mediocridade
propinante que procura menorizar este enorme poeta por lhe ser insuportável a
sua grandeza militante.
A voz de Ary continua e
continuará a fazer-se ouvir sobre os escombros desse desdém medíocre, com uma
força que a história registará e que continua bem viva em todos os seus
camaradas e todos os que continuam a luta que foi dele e que é de todo o povo
patriota.
Nota:
1.Um
dos mais emocionantes e interventivos poemas de Ary dos Santos foi criado em
poucas horas, para o jornal Avante!, em 14 de Agosto de 1975, que publicou
uma reportagem sobre a violência fascista que, dias antes, desatada em Braga,
destruíra o Centro de Trabalho do PCP na cidade. Vale a pena ler este poema e a sua história.
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