Para os países alinhados com
Washington já não se trata apenas de violar grosseiramente a democracia. Os
governos que seguem de braço dado com a administração Trump enveredaram pela
carreira do crime.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Houve ocasiões – raras – em que
os principais governos da União Europeia se distanciaram do comportamento
boçal, truculento e neofascista da administração norte-americana gerida por
Donald Trump. É certo que as razões nem eram louváveis, uma espécie de escrever
direito por linhas tortas porque contrapor à política de fortaleza comercial de
Washington o neoliberalíssimo «comércio livre» global, que serve meia dúzia de
grandes conglomerados económico-financeiros, não é propriamente um
comportamento honroso.
Ainda assim, essa situação foi
suficiente para os que fazem política e comunicação navegando à vista nas vagas
do oportunismo situacionista tentarem fazer crer que entre Washington e alguns
dos principais aliados existiam saudáveis divergências, recomendáveis pelo
facto de «parecer mal» estarem associados aos desmandos trumpistas.
Porém, o que tem de ser tem muita
força, a realidade impôs os factos, as máscaras caíram, o globalismo ditou as
suas leis, embora já periclitantes, e deixou de haver lugar para disfarces.
A harmonia entre Washington e os
aliados restabeleceu-se quando foi preciso por mãos à obra e cuidar do que
interessa a quem manda: o domínio sobre as matérias-primas e a vantagem militar
planetária para, em última instância, assegurá-lo.
Bastou o aparecimento de provas
de que a superioridade militar da NATO e respectivas ramificações pode estar em
causa; eis que entra na ordem da actualidade uma disputa mais cerrada pelas
riquezas naturais do mundo – e logo a boçalidade e o desprezo militante de Trump
por qualquer coisa que tenha a ver com democracia e direitos humanos deixaram
de ser problema.
A harmonia chegou com os
psicopatas
Esbateram-se os limites,
desapareceu a vergonha. Se o caminho mais eficaz para garantir a sobrevivência
do «nosso civilizado modo de vida» é o recurso à autocracia, então que seja,
desde que o discurso oficial assegure as melhores intenções democráticas e humanistas.
Mesmo que a harmonia entre a NATO
e a gestão do Pentágono, a comunhão de ideais entre quem manda na União
Europeia e a administração de Washington se tenham restabelecido no momento em
que, depois de muitos tumultos e convulsões, a equipa que traça a doutrina
Trump seja agora um sólido núcleo de psicopatas.
John Bolton, o conselheiro de
Segurança Nacional do presidente; Michael Pompeo, o secretário de Estado, por
inerência o tutelar dos Negócios Estrangeiros; Michael Pence, o
vice-presidente, formam um triunvirato de fascistas com provas dadas em
carreiras onde o recurso ao terrorismo político, declarado ou clandestino,
nunca foi um problema.
Se lhes associarmos as figuras de
um comprovado assassino e fora-da-lei como Elliott Abrams, agora escolhido como
enviado especial para gerir o golpe na Venezuela; e de um expoente da
«supremacia branca» como Steve Bannon, que corre mundo unindo as hordas
fascistas, xenófobas, populistas e nacionalistas para manter a pressão, de modo
a que o neofascismo seja a solução e nunca um problema, teremos um quinteto de
psicopatas à altura de Trump, de tal modo que torna o próprio presidente
descartável.
Pois foi precisamente na hora da
estabilização do fascismo e da sociopatia como doutrina norte-americana que a NATO e a União Europeia – com o governo de Portugal fazendo
questão de destacar-se – decidiram prestar-lhe vassalagem. Certamente não
foi para que o governo português encarreirasse na esteira do terrorismo
político e da guerra nuclear que os portugueses votaram.
Para os devidos efeitos e para
memória futura registemos o desprezo assumido pela equipa de António Costa em relação à
democracia, aos direitos humanos, à paz e ao direito internacional. Não
existe outra interpretação possível do apoio ao golpe contra a Venezuela; não
há hipótese de concluir outra coisa do alinhamento pleno com a NATO nos
caminhos da guerra nuclear que estão a ser abertos por Washington.
É terrorismo, não é democracia
Aquilo que está a acontecer na
Venezuela, e que tem proactivamente a mão do governo de Portugal, é terrorismo,
é tentação fascista, é jogar com a vida de milhões de pessoas.
Não se trata apenas da
entronização como «presidente interino» de um arruaceiro que os Estados Unidos
treinam e pagam há 15 anos para servir como instrumento numa operação de golpe
de Estado. Juan Guaidó é um entre vários que se formaram numa escola de
terrorismo na Sérvia financiada pelos Estados Unidos, conhecida como
Otpor/CANVAS1,
para organizar «revoluções coloridas» e mudanças de regime em geral, de que são
exemplos casos como o da Ucrânia, Geórgia, Egipto, Líbia, Síria, Honduras,
Paraguai, Brasil.
E não se trata igualmente do recurso
ao pretexto das supostas «irregularidade» e «ilegitimidade» das eleições
presidenciais de Maio do ano passado, que decorreram segundo normas
democráticas comprovadas por entidades independentes e de reconhecida
idoneidade que acompanharam todo o processo. Ao contrário do que fizeram, por
exemplo, o secretário-geral da ONU, António Guterres, e a alta comissária
europeia, Federica Mogherini, que recusaram os convites para serem ou enviarem
observadores, partindo do princípio de que as eleições seriam fraudulentas
muito antes de se realizarem.
O que está verdadeiramente em
causa como consequência do comportamento das personalidades, entidades e
organizações que apoiam a estratégia de mudança de regime montada pela equipa
de psicopatas de Trump é a tragédia que paira sobre todo o povo venezuelano –
comunidade portuguesa obviamente incluída.
Uma tragédia anunciada, uma vez
que os promotores da operação tiveram o cuidado de não deixar margem de recuo.
A parada é alta e todo o processo foi montado de modo a que não haja outra
saída que não seja a destruição da Revolução Bolivariana, sufragada em mais de
uma vintena de consultas populares legítimas realizadas durante os últimos 20
anos.
Solução: banho de sangue
Ora a capitulação do governo de
Nicolás Maduro – que não tem de se demitir ou de convocar eleições porque a
Constituição, a única lei pela qual responde, não o obriga – só pode ser
alcançada por estas vias: golpe militar interno, agressão estrangeira
directamente pelos Estados Unidos ou por procuração (Brasil, Colômbia e
Argentina estão prontos), ou colapso absoluto do Estado devido às sanções, extorsão e roubo de que os bens do povo
venezuelano são vítimas – a começar pelas 31 toneladas de ouro de que entidades bancárias
estrangeiras se apropriaram abusivamente, também com responsabilidade do
Banco Central Europeu, para que conste.
Sejam quais forem os caminhos
seguidos pelos responsáveis do golpe, o resultado será um banho de sangue com
extensão imprevisível. Esse é o preço que Estados Unidos e aliados estão
dispostos a pagar para deitarem as mãos aos 300 mil milhões de barris de petróleo
venezuelano – as maiores reservas mundiais conhecidas – às poderosas reservas
de ouro, nióbio, tântalo e outros elementos e metais preciosos.
Não há pretextos e máscaras que
sirvam para a ocasião. O que, através do golpe, os Estados Unidos, a União Europeia
e aliados puseram em andamento foi a compra que um valiosíssimo lote de
riquezas naturais e estratégicas pago com sangue humano, na quantidade que for
precisa. Afinal, tal como no Iraque, na Líbia, na Síria ou Afeganistão.
O caminho para a guerra nuclear
A fuga para a frente com o
objectivo de garantir a sobrevivência do neoliberalismo, conduzida pelo gang de
tiranos sociopatas de Washington, não hesita, como se vê, perante a repugnante
e desumana traficância em curso na Venezuela.
Fuga essa que começa a adquirir
velocidade própria numa outra direcção até aqui vedada pelos mais
compreensíveis instintos de sobrevivência colectiva: a da guerra nuclear.
Não há outra leitura para a
decisão norte-americana de abandonar o Tratado de Armas de Médio Alcance (INF2),
assinado há 30 anos pelos Estados Unidos e a União Soviética.
Não há outra leitura do apoio a
essa posição manifestado pela NATO e pelo sempre «bom aluno», o governo de
Portugal.
Os pretextos invocados para o
abandono do Tratado são falsos ou, no mínimo, desconhecidos. Nem os Estados
Unidos nem a NATO apresentaram, até ao momento, qualquer prova de que a Rússia
estaria a violar esse acordo. Em paralelo, também não se regista qualquer
interesse, tanto dos dirigentes norte-americanos como da NATO – e da
comunicação social com eles sintonizada – em aceitarem os convites de Moscovo para visitarem os
locais onde supostamente estariam a ser construídas as armas que violam o
Tratado.
Ao invés, a parte russa já
divulgou provas de que os Estados Unidos estão a produzir armas proibidas pelo Tratado
há pelo menos dois anos.
É objectivo dos Estados Unidos
instalar os novos mísseis em países europeus como a Itália, a Alemanha e a
Holanda, onde também está prevista a disponibilização de bombas nucleares de
nova geração3.
Trata-se de engenhos ditos de
potência reduzida, isto é, com uma capacidade de destruição calculada em metade
ou mesmo menos dos largados sobre Hiroxima e Nagasaki. Este facto tem ajudado a
consolidar a tese perigosíssima segundo a qual as novas bombas poderão ser
utilizadas em conflitos limitados e sem provocarem respostas equivalentes, o
que as torna uma vantagem decisiva.
Torna-se evidente que o recurso a
essas bombas implica a existência de mísseis vocacionados para transportá-las –
e daí a quebra do Tratado INF.
Deduz-se, pois, que pelas cabeças
doentes e sanguinárias de figuras como Bolton – que pretende enviar Maduro para
Guantánamo – Pence e Pompeo passa, de facto, a ideia de vir a utilizar essa
nova combinação de mísseis de médio alcance com armas nucleares de «potência
reduzida» e tendo a Europa como um dos cenários de operações. Pelo que os
países europeus sintonizados com os tiranos sociopatas de Washington não
desprezam apenas a vida dos venezuelanos, mas também a dos seus próprios povos4.
Já não se trata apenas de violar
grosseiramente a democracia. Os governos que seguem de braço dado com a
administração Trump enveredaram pela carreira do crime.
Imagem: John Bolton, Mike Pompeo
e Mike Pence, antes do início de uma conferência de imprensa na Casa Branca, 7
de Junho de 2018. Créditos Andrew Harnik/AP / MPN News
Notas:
1.Estas
e outras revelações podem ser lidas no esclarecedor artigo «Para saber tudo
sobre o golpista Juan Gaidó», publicado numa tradução
exclusiva para Portugal pelo jornal digital O Lado Oculto, que se
apresenta como um «antídoto para a propaganda global» e é dirigido pelo nosso
colaborador José Goulão.
2.A
sigla INF provém do nome do tratado em inglês, habitualmente designado, nessa
língua, por INF Treaty (de Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty). Esta entrada da
Wikipédia refere 20 de Outubro de 2018 como o ponto de partida para a
derrogação do tratado INF, quando Donald Trump acusou a Rússia de «violá-lo há
muitos anos». Na verdade, desde o início de Fevereiro de 2018 que os EUA tinham
revisto a sua postura estratégica sobre a utilização de armas nucleares (Nuclear Posture Review). Nesse documento os EUA não
descartam um ataque nuclear inicial por sua iniciativa e designam a Rússia e a
China como inimigo principal. Na altura, o nosso colaborador André Levy alertou
para os riscos desta agressiva evolução, que recolocou o perigo de holocausto
nuclear na ordem do dia («A dois minutos da meia-noite», 16 de Fevereiro de 2018).
Recentemente, também o nosso colaborador António Abreu se pronunciou sobre o
tema («A guerra nuclear limitada, de novo», 4 de Fevereiro de
2019).
3.Um
relatório do grupo de analistas militares Southfront, «INF Is Dead. Europe Is One Step Closer To
Nuclear War», coloca como verdadeira razão para o abandono do INF não uma
eventual ameaça russa ou chinesa mas a necessidade de a administração
estado-unidense voltar a financiar massivamente o complexo militar-industrial americano,
afim de este produzir avançados sistemas de mísseis e anti-mísseis que
poderão vir a ser vendidos a alto preço no cenário europeu afectado pela «febre
da ameaça russa». Pode ler e ouvir o relatório aqui.
4.A
prestigiada ONG International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN),
que recebeu em 2017 o Prémio Nobel da Paz, considerou que a retirada dos EUA do tratado põe, antes do mais, a Europa em
grave risco, dada a natureza da aliança militar entre aquele país e a União
Europeia, consubstanciada na NATO. Se a Rússia for atacada nuclearmente os seus
sistemas de Mútua Destruição Assegurada (Mutual
Assured Destruction, ou MAD, acrónimo que tem a particularidade de
significar «louco», em inglês) dispararão em segundos. Os sistemas
MAD prevêm o disparo automático de todos os mísseis e armas nucleares
disponíveis contra os potenciais atacantes (previamente definidos) mesmo que os
sistemas de comando e a direcção político-militar do país tenham sido
completamente destruídos. Tanto os EUA como a Rússia dispõem de um arsenal
nuclear para destruir várias vezes o planeta.
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