Divertida reviravolta: diante da
crise, governo Macri – que prometeu a ortodoxia neoliberal – congela preços e
oferece subsídios. A oligarquia financeira redescobre a política, para
conservar o poder e tentar impedir a volta da esquerda…
Felipe Calabrez | Outras Palavras
A crise que devasta a economia
argentina passava relativamente despercebida pela velha mídia, que, como
sabemos, costuma mensurar a gravidade dos dramas dos países vizinhos em função
da orientação ideológica de seus governos. O galopante declínio
das condições de vida dos argentinos e o aumento acelerado e
concomitante nos preços e nos níveis de pobreza não ocupavam destaque nos
grandes jornais.
Eis que ontem (17/04), o anúncio
de um pacote de medidas do presidente Maurício Macri causou sobressalto. Diante
da escalada de preços, o governo anunciou um amplo pacote que inclui acordo
entre governo e empresas para manter estáveis os preços de itens da cesta básica,
descontos em medicamentos para beneficiários de programas sociais e subsídios
estatais a tarifas de energia.
A rigor, trata-se do avesso do
ideário neoliberal, aquele que a eleição de Macri representava e que animou os
“mercados” e a mídia, e que conta com a chancela do FMI.
“Populista!” e “eleitoreiro!”, já
bradaram os analistas de mercado. Aqui vale pontuar algumas questões.
Apesar da deterioração dos níveis
de atividade econômica, a inflação ganha força na Argentina. Segundo o
Instituto Nacional de Estatística e Censos, o índice acumulado dos últimos 12
meses supera os 54%. Dentre os itens mais afetados estão alimentação e transporte.
Os fatores que explicam a escalada generalizada de preços incluem a acelerada
desvalorização do peso e o desrepresamento de preços administrados. Soma-se a
esses fatores o elemento “inercial”, tão conhecido dos brasileiros, e que
consiste no reajuste de preços futuros baseado na inflação passada. Trata-se
aqui de expectativas.
Para reverter o primeiro elemento
causador da inflação – a desvalorização do peso – o governo Macri tem queimado
suas reservas internacionais. O objetivo é irrigar a economia com dólares para
reverter sua valorização em relação ao peso. Uma parte desse dinheiro provém do
empréstimo contraído com o FMI ano passado. Soma-se a isso, como não poderia
faltar no receituário neoliberal, taxas de juros estratosféricas, que superam a
casa dos 60% ao ano e que garantem uma situação confortável aos bancos.
Em relação aos preços-chave da
economia, que foram repetidamente reajustados, o governo mostrou, em seu
recente pacote, uma brutal reversão de estratégia, anunciando que não haverá
mais reajuste de eletricidade, gás e energia elétrica até o fim do ano. “Não
haverá novos aumentos. Os dois aumentos anunciados [para eletricidade
residencial] para o resto de 2019 serão absorvidos pelo Estado Nacional”,
afirma o documento governamental.
A política anunciada por Macri
diante da caótica situação em que o país se encontra adiará novamente o chamado
“ajuste fiscal”. De acordo com o ministro da Economia, Nicolás Dujovne, serão
gastos cerca de 9 bilhões de pesos (cerca de US$ 215 milhões), inviabilizando a
zeragem do déficit primário. Vale lembrar que a zeragem do déficit consta como
condicionalidade do FMI diante do empréstimo ao governo.
É compreensível a estupefação que
acomete os analistas de mercado. Subsídios públicos e represamento de preços
são o que mais foi condenado das políticas dos governos Kirchner: a “origem de
todos os males”; o que deve ser extirpado da política, dando lugar à “racionalidade
econômica”. O que a realidade dos países latino-americanos parece demonstrar,
no entanto, é que doses muito altas de “racionalidade econômica” podem produzir
sérios problemas sociais e políticos.
E aqui o economista crente nas
virtudes auto-ajustáveis do mercado poderia argumentar que tudo se deve às
políticas supostamente erráticas dos governos anteriores, “populistas” (de
esquerda) que foram. Pouco importa. O mundo real é complexo demais para ser
submetido a experimentos puros, em laboratório, isento da ação de variáveis
intervenientes. Em outras palavras, sua “ciência econômica” sempre carece da
prova cabal. Quando a realidade se impõe, o governo neoliberal aciona os
mecanismo de Estado que permitem manejar certos preços da economia, fazendo
“política” – aquela ferramenta que produz a interessante simbiose entre
satisfazer as necessidades mais imediatas da população com o olho nas próximas
eleições.
Nesse aspecto, os analistas do
mercado parecem ter razão. Macri está de olho nas próximas eleições. E aqui
chegamos ao nó da questão: Até que ponto conseguirá contar com a
condescendência do FMI para práticas “populistas”? Macri parece estar em uma
sinuca de bico, de certa forma semelhante àquela em que se encontra Jair
Bolsonaro: Como conciliar as exigências do “mercado” e das pessoas para
determinar os preços-chave da economia?
No caso de Macri algo parece
jogar a seu favor: o pavor que as elites financeiras têm do kirchnerismo.
“Melhor que vocês o façam, senão eles o farão”.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário