Ao renunciar à candidatura à
presidência, ela qualificou-se como estrategista da vitória sobre a direita –
agora mais possível que nunca. Seu gesto diz muito, a Brasil às voltas com
Bolsonaro e a uma Europa ameaçada pelo neofascismo
Antonio Martins | Outras Palavras
No futebol, um drible pode mudar
a história de um campeonato. Na Argentina, tão apaixonada quanto o Brasil pelo
esporte de Pelé e Maradona ou Messi, a ex-presidente Cristina Kirchner desenhou
neste sábado uma jogada mágica. Ao anunciar, em vídeo [incorporado
neste texto, logo abaixo], que disputará as eleições presidenciais de 27 de
outubro, porém na condição de candidata a vice de Alberto Fernández
[veja seu perfil e
sua entrevista ao Pagina
12], ela cumpriu três objetivos cruciais, com um único movimento. Ofereceu, ao
projeto antioligárquico e antineoliberal que expressa, condições muito mais
favoráveis para voltar ao governo, em 2020. Além disso, em caso de vitória,
terá sido a estrategista do êxito, mas não arcará com os limites e
constrangimentos do exercício direto do poder. Estará muito mais livre para
dialogar com a sociedade, para ajudar a mobilizá-la, para pressionar o governo
à esquerda. Por fim, desfez o cerne da estratégia do atual presidente Maurício
Macri. Incapaz de apresentar aos argentinos qualquer resultado favorável, ele
contava esconder o desastre que suas políticas promoveram atrás de um biombo: a
rejeição de parte considerável dos argentinos a Cristina. Agora, que perdeu a condição
de fazê-lo, sua própria candidatura é contestada por correligionários de
direita. A poucas semanas do início do processo
eleitoral argentino (as “eleições
primárias” de todos os partidos ocorrerão em 11 de agosto),
instalou-se a confusão, no campo que reúne hipercapitalistas e ultraconservadores.
O lance de Cristina Kirchner foi
feito mesma semana em que, no Brasil, Jair Bolsonaro tenta sair do isolamento
apelando à única arma que talvez lhe reste: o sentimento antiestablishment;
e em que forças de ultradireita ameaçam mobilizar este mesmo sentimento para
avançar consistentemente nas eleições para o Parlamento europeu. Talvez seja
possível tirar destes fatos, coincidentes no tempo e semelhantes no sentido,
três hipóteses decisivas:
1. O descrédito das
instituições é uma marca de nosso tempo e continua crescendo. Toda ação
política precisa levar em conta este fenômeno. Segundo as pesquisas de
opinião mais recentes, Cristina Kirchner havia
ultrapassado Maurício Macri, nas preferências para as eleições
argentinas – e era favorita para um eventual segundo turno. Mas o risco a
correr era enorme e o que está em jogo não recomenda a aventura. A
ex-presidente partia de um índice de rejeição superior 35%. Mesmo após três
anos e meio de governo ruinoso, Macri – ou um “novo” outsidercom perfil
semelhante ao seu – poderia vencer.
Empresário e ex-dirigente de
futebol, Macri foi, em um século, o primeiro candidato a vencer as eleições sem
pertencer ao Partido Radical (de direita moderada) ou ao Justicialista
(“peronista”). Assim como Bolsonaro ou Trump, venceu na esteira do sentimento
de revolta popular, diante da crise do sistema de representação. Esta
apropriação é fruto de uma reviravolta. O ataque às instituições não é, em
geral, uma bandeira da direita. E a crítica ao esvaziamento da velha
democracia, com o processo de globalização, foi feita entre outros, ainda nos
anos 1990, por jornais como o Le Monde Diplomatique, que falavam em
“instituições globalitárias”. Ou por intelectuais como o escritor José
Saramago. Numa carta
ao Fórum Social Mundial de 2002, ele mencionou os “rituais vazios” da
política. Comparou as eleições contemporâneas a uma espécie de “missa laica” –
em que os eleitores podem escolher distintas faces e nomes, mas não projetos de
futuro.
No entanto, salvo notáveis
exceções, a esquerda institucional não foi capaz de dar consequência concreta a
esta crítica. Uma “nova” direita, muito mais brutal, o fez, em especial a
partir da grande crise pós-2008. Percebeu que havia um vácuo o ocupar. Numa
sociedade em que o capital eliminava direitos, era preciso mover o centro de
gravidade do debate público. Ao invés do perigoso debate sobre políticas
concretas, a crítica vazia “aos políticos” (sem nunca apresentar
alternativas…). Ou propostas que explorassem sensações como a de insegurança
(porte de armas, por exemplo) ou de desamparo (agenda moralista).
Repare: expressões como antiestablishment aparecem
com constância e com destaque, no discurso de personagens tão distintos como
Steve Bannon e Jair Bolsonaro. Fazem parte de uma estratégia política
ultraoportunista e mesmo cínica, porém eficaz – como demonstram tantos
resultados eleitorais recentes. Enfrentar esta estratégia defendendo um sistema
político esvaziado (e hostil às maiorias) é desastroso – porque dá tração ao
discurso da ultradireita. Cristina Kirchner acertou porque escolheu um caminho
oposto.
Este ultra-acirramento mobiliza
torcidas e alimenta egos, mas a quem interessa de fato? Aos que contestam as
políticas calamitosas em vigor, e teriam tudo a ganhar se houvesse vasto debate
sobre elas? Ou aos que, sabendo-se incapazes de defendê-las, buscam mudar
de assunto?
Cristina calcula que, se a
disputa entre personalismos for esvaziada, as eleições voltarão ao que importa.
O vídeo em que anunciou sua decisão de concorrer à vice-presidência é uma
provocação ao debate que Macri não desejaria. Está repleto, em fala e imagens,
de menções ao empobrecimento dos argentinos, à população de rua, às favelas e
lixões, ao fechamento incessante de empresas e à humilhação nacional da volta
submissa ao FMI. É Cristina, ficou claro, quem articulará esta narrativa até as
eleições. Mas poderá fazê-lo com muito mais desenvoltura agora, que sua figura
não será o objeto principal de debate na campanha. Ao renunciar, a
ex-presidente – conhecida pela paixão pela polêmica política – tornou-se,
paradoxalmente, mais ela própria do que nunca.
3. Os novos combates exigem uma
esquerda disposta a se reinventar. A decisão de Cristina é mais uma, numa
série relativamente recente – mas notável – de flexões de alguns partidos
históricos de esquerda e centro esquerda. O movimento começa no segundo
semestre de 2015. Na Inglaterra, depois de anos de burocratização e
amortecimento, o Partido Trabalhista foi sacudido pela renovação (por eleição
direta) de sua liderança. Jeremy Corbyn, o mais improvável dos candidatos,
venceu, porque propôs um programa claro de combate às políticas de
“austeridade”, defesa dos serviços públicos, revisão das privatizações. Por
duas vezes, os parlamentares do Labour, incomodados, o derrubaram; em
ambas, ele retornou, nos braços da base do partido. A mídia o considerava
inviável eleitoralmente. Sob sua liderança, os trabalhistas recuperaram-se da
derrota eleitoral humilhante de 2012 e são quotados para vencer as próximas
eleições parlamentares.
Mais ou menos à mesma época,
começava a funcionar, em Portugal, uma curiosa geringonça. O Partido
Socialista reviu sua tendência de décadas, de acomodação às políticas
neoliberais, coligou-se com duas agremiações à sua esquerda (Partido Comunista
e Bloco de Esquerda) e realiza um governo que, embora contraditório, retomou a
recuperação dos salários e o investimento público. À época do giro, afirmava-se
que naufragaria em poucos meses. Agora, até instituições internacionais
ortodoxas como o FMI e o Banco Mundial são obrigadas a admitir os resultados
macroeconômicos positivos.
Nos Estados Unidos, ergueu-se, em
paralelo e em oposição à onda Trump, uma vaga de esquerda que teve em Bernie
Sanders, há três anos, suas grande expressão. A cúpula do Partido Democrata
bloqueou sua candidatura à Presidência – que segundo muitas análises teria
derrotado a do atual presidente. Mas o movimento não foi contido e desembocou,
nas eleições legislativas do ano passado, na eleição de Alexandria
Ocasio-Cortez e na formulação da proposta de Green New Deal, que
ocupa hoje o centro do debate político no país.
E há poucas semanas, na Espanha,
um Partido Socialista renovado percebeu que só venceria as direitas – a
tradicional (PP), a brutal (Vox) e a “pós-moderna” (Ciudadanos) se assumisse o
choque de projetos e se comprometesse com os interesses das maiorias. Mudou,
venceu (também para surpresa de muitos) e cogita fortemente compor-se com o
Podemos, para o novo governo que formará em breve.
Com a atitude de Cristina
Kirchner, a Argentina prepara-se para integrar o grupo. Resta perguntar:
chegará a vez do Brasil?
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