segunda-feira, 17 de junho de 2019

Brasil | O método Moro, antes da Lava-Jato


Exemplos de justiça sem força existem aos montes; de força sem justiça, o mais recente é capitaneado pelo ex-juiz federal e hoje ministro Sérgio Fernando Moro

Sandoval Matheus | GGN

Um povo não deve admitir justiça sem força, tampouco força sem justiça. A frase não é minha, mas de um sujeito que morreu em 2008, o escritor e jornalista Fausto Wolff, conhecido por, além de escrever maravilhosamente bem e não fazer nenhuma concessão aos poderosos, certa vez ter vencido um duelo de birita contra nada mais nada menos do que um marinheiro sueco.

Exemplos de justiça sem força existem aos montes; de força sem justiça, o mais recente é capitaneado pelo ex-juiz federal e hoje ministro Sérgio Fernando Moro. Fica cada vez mais difícil a argumentação de quem pretende rechaçar a tese de que Luiz Inácio Lula da Silva é um prisioneiro político, alguém que precisava ser tirado do caminho para que se pudesse promover a escalada do projeto político que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República.

Lula, no entanto, não foi o primeiro nem o único alvo da sanha de Moro. O método do ex-juiz e seu complexo de justiceiro são antigos, e remontam a antes da famigerada Operação Lava-Jato: a Operação Agro-Fantasma, em 2013.

Quando ainda estava à frente da 2.ª Vara Federal de Curitiba – posteriormente 13.ª Vara – e antes de ser designado para a Lava-Jato, Moro autorizou a prisão preventiva de 11 pessoas no estado do Paraná, entre agricultores familiares e funcionários da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Eles foram acusados de estelionato, associação criminosa, falsificação de documento público, falsidade ideológica, peculato e prevaricação, no âmbito do Programa Aquisição de Alimentos (PAA).

Em linhas gerais, o PAA era um programa do governo federal que consistia em comprar a produção agroecológica de pequenos produtores rurais organizados em cooperativas e associações e repassar os alimentos para entidades como escolas, asilos e creches. No limite, o governo poderia comprar o equivalente a R$ 8 mil por ano da produção de cada agricultor, ou mais ou menos R$ 660 por mês. Em um dos municípios investigados pela Polícia Federal à época, os “desvios” denunciados pelo Ministério Público somaram pouco mais de R$ 17 mil. Não era exatamente uma hemorragia de dinheiro estatal, ou algo que de fato valesse a pena fraudar.

O que de fato acontecia no PAA não era crime, mas sim um erro administrativo. As associações e cooperativas firmavam com a Conab uma espécie de convênio, que rigidamente previa os produtos e as quantidades a serem entregues diretamente para pessoas e entidades com vulnerabilidade alimentar. Acontece que a agricultura agroecológica está muito sujeita às intempéries climáticas e com alguma frequência um agricultor sem conhecimento da burocracia estatal se dava conta de que não conseguiria entregar para uma escola ou creche um tipo específico de alimento (digamos, batata) e por conta própria o substituía por outro (talvez, abobrinhas, ou coisa que o valha).

Quando, em suas investigações, os policiais federais compararam a documentação da Conab com entrevistas de campo com merendeiras de escolas e outros funcionários responsáveis por receber esses alimentos, a conta não fechou. As batatas previstas não estavam lá, e ninguém perguntou sobre abobrinhas. Sérgio Moro decidiu que isso configurava um crime.

Talvez o ex-juiz pudesse ter se dado conta de que o problema não era assim tão grande se tivesse sido mais criterioso nas audiências, ou se os policiais federais tivessem dedicado mais cinco minutos de seu tempo a papear com merendeiras.

Mas, contrariando inclusive o posicionamento do Ministério Público, Moro decidiu que era mais racional prender todo mundo preventivamente. Houve quem ficasse encarcerado até 68 dias. Um dos funcionários da Conab preso precisou de uma cirurgia durante o período, mas não obteve autorização.

O ponto mais bizarro de toda a operação foi quando, em dezembro de 2013, a Polícia Federal tentou apreender um iate em uma pequena propriedade rural de Irati, município a quase 300 quilômetros de distância do mar. Neste link, você pode ver uma pequena entrevista disponível no YouTube com um dos produtores, feita pelo jornalista Marcelo Auler.

O julgamento de Lula pelo caso do tríplex no Guarujá deixou claro que Sérgio Moro não é um juiz com muito discernimento probatório. Ao mandar procurar um iate a 300 quilômetros do mar ele também pareceu ter pouca ou nenhuma noção de geografia, o que me faz pensar que ele teria dificuldades até mesmo para diferenciar um ônibus espacial de um Chevette ano 1978.

A Operação Agro-Fantasma foi o início do desmantelamento de um programa de combate à fome com eficácia reconhecida pela FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Hoje, o PAA, que chegou a distribuir mais de 16 mil toneladas de comida só no Paraná em 2012, praticamente inexiste, as cooperativas de produtores ruíram e há quem tenha abandonado a terra e precise se dedicar a subempregos para ganhar algum dinheiro.

Os agricultores precisaram esperar até 2016 para terem sua inocência reconhecida pela Justiça Federal, nas sentenças da juíza Gabriela Hardt, que assumiu os processos quando Sérgio Moro passou a se dedicar exclusivamente à Lava-Jato. Por algum motivo que funcionários da 13.ª Vara Federal de Curitiba não souberam me explicar, essas sentenças seguem até hoje em segredo de justiça.

Mesmo assim, consegui ler uma delas. Não posso contar aqui muitos detalhes, porque o defensor que me passou o material receia sofrer retaliações por parte da Justiça Federal. Mas posso dizer que no seu despacho final a juíza reconhece que tudo não passou, no máximo, de um erro administrativo, e critica a atuação da PF, que não teria sequer tido a diligência de apreender todas as notas fiscais pertinentes ao caso.

Sobre o segredo de justiça, o meu palpite é que o pessoal não quer deixar vir à luz o tipo de barbeiragem jurídica que parece ser o único método de atuação reconhecido pelo atual ministro da Justiça.

GGN


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