Exemplos de justiça sem força
existem aos montes; de força sem justiça, o mais recente é capitaneado pelo
ex-juiz federal e hoje ministro Sérgio Fernando Moro
Sandoval Matheus | GGN
Um povo não deve admitir justiça
sem força, tampouco força sem justiça. A frase não é minha, mas de um sujeito
que morreu em 2008, o escritor e jornalista Fausto Wolff, conhecido por, além
de escrever maravilhosamente bem e não fazer nenhuma concessão aos poderosos,
certa vez ter vencido um duelo de birita contra nada mais nada menos do que um
marinheiro sueco.
Exemplos de justiça sem força
existem aos montes; de força sem justiça, o mais recente é capitaneado pelo
ex-juiz federal e hoje ministro Sérgio Fernando Moro. Fica cada vez mais
difícil a argumentação de quem pretende rechaçar a tese de que Luiz Inácio Lula
da Silva é um prisioneiro político, alguém que precisava ser tirado do caminho
para que se pudesse promover a escalada do projeto político que levou Jair
Bolsonaro à Presidência da República.
Lula, no entanto, não foi o
primeiro nem o único alvo da sanha de Moro. O método do ex-juiz e seu complexo
de justiceiro são antigos, e remontam a antes da famigerada Operação Lava-Jato:
a Operação Agro-Fantasma, em 2013.
Quando ainda estava à frente da
2.ª Vara Federal de Curitiba – posteriormente 13.ª Vara – e antes de ser
designado para a Lava-Jato, Moro autorizou a prisão preventiva de 11 pessoas no
estado do Paraná, entre agricultores familiares e funcionários da Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab). Eles foram acusados de estelionato,
associação criminosa, falsificação de documento público, falsidade ideológica,
peculato e prevaricação, no âmbito do Programa Aquisição de Alimentos (PAA).
O que de fato acontecia no PAA
não era crime, mas sim um erro administrativo. As associações e cooperativas
firmavam com a Conab uma espécie de convênio, que rigidamente previa os
produtos e as quantidades a serem entregues diretamente para pessoas e
entidades com vulnerabilidade alimentar. Acontece que a agricultura
agroecológica está muito sujeita às intempéries climáticas e com alguma frequência
um agricultor sem conhecimento da burocracia estatal se dava conta de que não
conseguiria entregar para uma escola ou creche um tipo específico de alimento
(digamos, batata) e por conta própria o substituía por outro (talvez,
abobrinhas, ou coisa que o valha).
Quando, em suas investigações, os
policiais federais compararam a documentação da Conab com entrevistas de campo
com merendeiras de escolas e outros funcionários responsáveis por receber esses
alimentos, a conta não fechou. As batatas previstas não estavam lá, e ninguém
perguntou sobre abobrinhas. Sérgio Moro decidiu que isso configurava um crime.
Talvez o ex-juiz pudesse ter se
dado conta de que o problema não era assim tão grande se tivesse sido mais
criterioso nas audiências, ou se os policiais federais tivessem dedicado mais
cinco minutos de seu tempo a papear com merendeiras.
Mas, contrariando inclusive o
posicionamento do Ministério Público, Moro decidiu que era mais racional
prender todo mundo preventivamente. Houve quem ficasse encarcerado até 68 dias.
Um dos funcionários da Conab preso precisou de uma cirurgia durante o período,
mas não obteve autorização.
O ponto mais bizarro de toda a
operação foi quando, em dezembro de 2013, a Polícia Federal tentou apreender um
iate em uma pequena propriedade rural de Irati, município a quase 300
quilômetros de distância do mar. Neste link, você pode ver uma pequena
entrevista disponível no YouTube com um dos produtores, feita pelo jornalista
Marcelo Auler.
O julgamento de Lula pelo caso do
tríplex no Guarujá deixou claro que Sérgio Moro não é um juiz com muito
discernimento probatório. Ao mandar procurar um iate a 300 quilômetros do mar
ele também pareceu ter pouca ou nenhuma noção de geografia, o que me faz pensar
que ele teria dificuldades até mesmo para diferenciar um ônibus espacial de um
Chevette ano 1978.
A Operação Agro-Fantasma foi o
início do desmantelamento de um programa de combate à fome com eficácia
reconhecida pela FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura. Hoje, o PAA, que chegou a distribuir mais de 16 mil toneladas de
comida só no Paraná em 2012, praticamente inexiste, as cooperativas de
produtores ruíram e há quem tenha abandonado a terra e precise se dedicar a subempregos
para ganhar algum dinheiro.
Os agricultores precisaram
esperar até 2016 para terem sua inocência reconhecida pela Justiça Federal, nas
sentenças da juíza Gabriela Hardt, que assumiu os processos quando Sérgio Moro
passou a se dedicar exclusivamente à Lava-Jato. Por algum motivo que funcionários
da 13.ª Vara Federal de Curitiba não souberam me explicar, essas sentenças
seguem até hoje em segredo de justiça.
Mesmo assim, consegui ler uma
delas. Não posso contar aqui muitos detalhes, porque o defensor que me passou o
material receia sofrer retaliações por parte da Justiça Federal. Mas posso
dizer que no seu despacho final a juíza reconhece que tudo não passou, no
máximo, de um erro administrativo, e critica a atuação da PF, que não teria
sequer tido a diligência de apreender todas as notas fiscais pertinentes ao
caso.
Sobre o segredo de justiça, o meu
palpite é que o pessoal não quer deixar vir à luz o tipo de barbeiragem
jurídica que parece ser o único método de atuação reconhecido pelo atual
ministro da Justiça.
GGN
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