sábado, 24 de agosto de 2019

LEITURAS - Salazar, o fascista num museu


«Como é óbvio, não se trata de considerar impróprio um abstrato museu sobre o salazarismo. Creio que o ponto fundamental é outro: é que os museus têm contexto e estão inseridos num território. O discurso produzido no local – e a experiência da visita – ficará determinado pelo complexo memorial onde o museu se inscreve: a antiga escola, a casa e os seus objetos domésticos, os espaços onde o ditador se fez moço, a campa rasa para atestar a imagem desse político que se representou como antipolítico e como humilde e desinteressado servidor da nação.»

Miguel Cardina, Ainda a história do «Museu Salazar» 

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«O sobrinho neto do ditador português, Rui Salazar, é o grande entusiasta da iniciativa. Conheci Rui Salazar há uns anos. Vive num mundo paralelo. Solitário, rodeado dos livros do tio, das garrafas que o tio guardava na adega, dos sapatos e roupas velhas do tio, dos relatórios e contas dos quase 40 anos que levou de presidente do conselho (números que sabia de cor). O homem era simpático e lunático. (...) Confesso que ao ouvir um autarca avançar com a ideia do Museu Salazar, nos mesmos moldes que o sobrinho defendera numa conversa comigo vinte anos antes, me arrepiei.».»

Luís Osório, Postal do dia

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«Há sete anos, estive em Gori, na Geórgia, terra onde nasceu Estaline e se pode visitar um Museu que lhe é dedicado – grande, cheio de fotografias, documentos e objectos bem-apresentados. Mas, da primeira à última sala, passa-se por um verdadeiro «monumento» laudatório e glorioso, no mínimo aterrador e que me dispenso de descrever… (...) A maioria dos «filhos da terra», orgulhosos do seu herói, bem ao contrário dos outros georgianos que conheci, querem que o Museu e a casinha logo ao lado, onde Estaline nasceu e se guardam alguns dos seus pertences sem qualquer interesse, continuem a homenageá-lo como sempre.»

Joana Lopes, Museus de Ditadores

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«Se o museu sobre Salazar em Santa Comba Dão se apresenta, como li, como um "centro interpretativo do Estado Novo", gostaria que os promotores me esclarecessem se: 1. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre as torturas e encarceramentos pela PIDE; 2. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o corporativismo que reprimiu os sindicatos, e sobre o apoio dos e aos monopólios das grandes famílias empresariais; 3. Terá uma secção explícita sobre pobreza e analfabetismo, sem uma desculpa histórica, considerando que tais problemas não se verificavam em muitos contextos europeus de então; 4. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o racismo oficial das primeiras décadas do regime, o trabalho obrigatório nas colónias, o estatuto do indigenato, e a guerra colonial; 5. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o tratamento das mulheres como cidadãs de segunda, tuteladas em tudo por pais e maridos; 6. Terá uma secção, explícita e sem rodeios, sobre o tratamento de gays e lésbicas como doentes e criminosos, encaminhados para a Mitra ou para tratamentos psiquiátricos violentos; 7. Terá uma secção que contextualize a ditadura no mundo de então, no qual havia democracias perfeitamente funcionais. Outras questões se colocariam, mas creio que estas são suficientemente - como dizê-lo? - "interpretativas"...»

Miguel Vale de Almeida, O museu de Santa Comba dá? 

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«É quando o discurso sobre o passado deixa de ser politicamente relevante que esse passado se pode repetir. A memória da nossa ditadura não é o único elemento que trava o crescimento da extrema-direita, mas conta. A democracia não sobrevive quando se instala a ideia que entre ela e a ditadura há apenas divergências de opinião. Não trata os seus inimigos da mesma forma que trata os seus aliados. Tem os seus códigos, os seus rituais, a sua iconografia e o seu discurso oficial. Que podem integrar os que não se revêm nela, mas não lhes dão dignidade simbólica. A tolerância democrática acaba onde começa a sua destruição. Não há temas e personagens tabu. Salazar deve ser estudado e revisitado. Mas um museu sobre o ditador não pode servir para celebrar, branquear e normalizar a ditadura.»

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Daniel Oliveira, A democracia recorda a ditadura, não a normaliza

Postado por Nuno Serra em Ladrões de Bicicletas

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