quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ONU prevê o fim do capitalismo fóssil


Estudo aponta que necessidade de substituir matriz energética deverá romper com sistema que conhecemos, de energia barata. Estado precisará assumir as rédeas do mercado e priorizar bem estar coletivo contra consumo desvairado

Mar Pichel, na BBC Brasil | em Outras Palavras

É um grande alerta a governos e economistas: estamos em meio a uma transformação do modelo econômico cujo pano de fundo é o esgotamento dos recursos e as mudanças climáticas. De alguma maneira, estamos assistindo ao fim do capitalismo como o conhecemos.

Essa é a conclusão de um grupo de especialistas finlandeses em um estudo pedido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para contextualizar seu relatório mundial sobre desenvolvimento sustentável.

“O capitalismo como o conhecemos depende de energia barata. E esse é o motor ou facilitador do crescimento que vimos nos últimos 100, 150 ou 200 anos, basicamente”, explica o economista Paavo Järvensivu, integrante do centro de pesquisas finlandês BIOS e um dos autores do estudo, à BBC News Mundo.

Agora, diz ele, estamos entrando em outra etapa. “A era da energia barata está chegando ao fim, e, se não tivermos essa energia barata, já não poderemos ter esse tipo de capitalismo.”

Um momento de transição

Por causa das mudanças climáticas, pela primeira vez na história da humanidade as economias estão tendo que recorrer a fontes de energia menos eficientes que requerem “mais esforço e não menos” para serem produzidas, afirmam os cientistas no estudo.

“É preciso um grande esforço para cortar nossa dependência dos combustíveis fósseis”, diz Järvensivu.

O informe da BIOS sinaliza que a dimensão energética da economia tem sido ignorada quase por completo em muitos países ricos. Os governantes seguem pensando que podem mitigar o efeito das mudanças climáticas e se adaptar com o sistema existente.

Segundo ele, muitos governos simplesmente mudam “um pouco as regras”, introduzindo, por exemplo, “modestos” impostos sobre o carbono, a fim de desincentivar a emissão de poluentes.

Mas para Järvensivu e seus colegas do BIOS, o mercado já não é suficiente para proporcionar soluções, e os Estados devem assumir o papel de protagonistas. Outros grupos de cientistas e de estudiosos ambientalistas concordam que há necessidade de um compromisso político mais profundo.

Grande parte do problema, segundo o estudo do BIOS, é que as teorias econômicas dominantes hoje foram desenvolvidas na era da abundância energética e, portanto, as políticas econômicas relacionadas a elas se baseiam no pressuposto de crescimento energético. Portanto, “tais teorias e modelos são inadequados para explicar o momento atual”.

Reconstrução ecológica

Para explicar as exigências desse novo modelo econômico, Järvensivu recorre a um momento histórico. “No período após a Segunda Guerra Mundial, as sociedades reconstruíram suas infraestruturas e práticas; agora, precisamos de algo similar para que nossas economias e práticas possam funcionar sem combustíveis fósseis.”

E, como naquela época, não há muito tempo para conseguir isso. “Temos entre 15 e 30 anos para reconstruir a infraestrutura. Se o que queremos é manter as condições para a vida humana, o objetivo já não pode ser um ‘crescimento abstrato do PIB (Produto Interno Bruto)'”, diz o economista.

“Temos que começar a ver quais são as tarefas concretas – por exemplo, como vamos reconstruir nossos sistemas de energia e de transporte. E os governos devem descobrir como organizar a economia para cumprir essas metas.”

Segundo o estudo, é necessário transformar as formas como produzimos e consumimos energia, transporte, alimentos e moradia. “O resultado deve ser uma produção e um consumo com oportunidades decentes para uma boa vida, que ao mesmo tempo reduzam drasticamente a carga sobre os ecossistemas naturais.”

Por exemplo, de acordo com esse grupo de estudiosos, as cidades deverão ter um sistema de transporte majoritariamente elétrico. Em relação à forma como produzimos e consumimos alimentos, o estudo diz que devemos “caminhar em direção a uma dieta baseada em plantas”.

‘Algo diferente’

Para Järvensivu e seus colegas, os Estados e governos são os únicos atores “com legitimidade e capacidade” para tocar essa série de mudanças, porque “obviamente isso precisa de algum tipo de planejamento e coordenação e também um financiamento que não estamos vendo agora”.

De qualquer forma, se considerarmos a maior potência econômica do mundo, os Estados Unidos, o governo de Donald Trump não só não está destinando recursos para concretizar essa transição e reconstrução ecológica como está insistindo em formas de energia altamente poluentes, como a indústria de carbono. Em algumas ocasiões, inclusive colocou em xeque a existência das mudanças climáticas.

O economista considera que a chegada desses tipos de governos ao poder, que negam os efeitos das mudanças climáticas, se deve, em parte, ao fato de os “partidos progressistas não terem proporcionado respostas suficientemente boas para resolver os problemas de desigualdade e ambientais”.

“Portanto, houve mais espaço para movimentos populistas que oferecem soluções fáceis — e que, na realidade, não são soluções.”

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