Após a sessão de tortura em um de
seus supermercados, a Ricoy escreveu uma nota. Vejam bem: os fios elétricos,
transformados em chicote, foram empunhados por outras mãos — mãos
terceirizadas, vale destacar
Em dezembro de 1888, já passada a
Abolição, Machado de Assis cismou com a forma como veio a se noticiar a morte
de um carrasco de Minas Gerais, o qual teria exercido o “desprezível ofício
desde 1835 até 1858”: “Por que carga d’água há de ser desprezível um
ofício criado por lei? Foi a lei que decretou a pena de morte, e desde Caim até
hoje, para matar alguém é preciso alguém que mate. A bela sociedade estabeleceu
a pena de morte para o assassino, em vez de uma razoável compensação pecuniária
aos parentes do morto, como queria Maomé. Para executar a pena não se há de ir
buscar o escrivão, cujos dedos só se devem tingir no sangue do tinteiro. Usamos
empregar outro criminoso” (Bons dias!, 27/12/1888).
Confesso que também embatuquei
com a primeira nota expedida pelo supermercado Ricoy a propósito de uma sessão
de tortura nas dependências de uma de suas filiais, gravada pelos próprios
torturadores:
1 – Ficamos chocados com o
conteúdo de uma tortura gratuita e sem sentido em cima do
adolescente vítima.
2 – O Ricoy desde sua fundação na
década de 1970 exerce os princípios mais rígidos de valorização do ser
humano, seja em nossas lojas ou em nossa comunidade. Ficamos muito
abalados com a notícia que nos causou repulsa imediata.
3 – Os dois seguranças
acusados de praticarem os atos são de empresa contratada terceirizada e
não prestam mais serviço para nossos supermercados.
4 – Para manter nossa coerência
em contribuir com as investigações, nesta terça-feira (3), um funcionário
da loja Yervant Kissajikian, 3384, prestou depoimento no 80º Distrito Policial.
5 – O Ricoy já disponibilizou uma
assistente social para conversar com a vítima e a família. Daremos todo o
suporte que for necessário.
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Os grifos são meus para realçar
algumas das convenções próprias desse tipo de discurso, praticado de tal modo
no Brasil que chego a pensar num curso sobre o assunto, pois creio que seria
inédito e disporei para isso de um corpus que não para de se ampliar.
A estrutura básica (verifiquei muitas outras “notas de pesar e esclarecimento”
escritas pela assessoria de outros supermercados e lojas a propósito de casos
semelhantes) consiste em:
1-manifestar espanto e indignação, 2-manifestar que
ela mesma, loja, defende princípios contrários aos subjacentes no ato que muito
a indignou, 3-esclarecer que os seguranças são terceirizados (o que não é
apenas um clichê linguístico ou retórico, claro), 4-avisar que já os despediu,
5-mostrar-se interessada nas investigações, em que pretende colaborar,
6-manifestar que fará todo o possível para dar suporte à
vítima (a palavra suporte é um faz-tudo emocional, material,
espiritual, social e o que mais couber aí tal sua indefinição). Não se
economiza no uso de pronomes indefinidos (todo o, todos, tudo, nada), advérbios
de intensidade (extremamente, veementemente, muito, muitíssimo)
e também no emprego de um repertório já clássico de verbos e substantivos como repudiar,
indignar, indignação, tudo não deixando de ser variações da tendência
superlativista dessa forma. Superlativismo que é, por assim dizer, um ativismo
atrasado ou recrudescido, que o comércio empresta das “moções de repúdio”,
próprias deste tempo também, quando o leite derramado derrama muitas vezes mais
que a última vez. Como no entanto já são lugares-comuns, o espírito que aí se
manifesta como que tocado por uma enormidade é um pouco amortecido pelas
letras, mesmo que superlativas.
Quanto ao primeiro item, “Ficamos
chocados com o conteúdo de uma tortura gratuita e sem sentido em cima do
adolescente vítima”, cabe perguntar que tortura não é gratuita ou pode ter
sentido. Por esse lapso escapa alguma fumaça. Imaginemos que a assessoria de
imprensa não saiba escrever direito, não saiba português nem tenha noções
mínimas de regência (o que se percebe pelo “tortura em cima”), ainda assim não
é raro que a exigência moral ou o assombro mais franco sempre possam achar
caminho, mesmo entre as ruínas, para se expressar. Contudo, se não for o caso
de uma indigência linguística, teria sido mais adequado formular algo como:
“Ficamos chocados com o conteúdo de uma tortura — como tal, sempre gratuita,
sem sentido, além de abominável ou hedionda, para não dizer diabólica —
praticada com um adolescente etc.”. Tortura é, digamos, substantivo absoluto,
intransitivo, cujo sentido, sempre macabro, se encerra em si mesmo, não
passível de ser graduado em sua essência por nenhum adjetivo ou advérbio. A
frase original, no entanto, indica que o mundo dos que escreveram essa nota
parece reservar algum lugar para a sua prática.
Em relação ao segundo ponto: “O
Ricoy desde sua fundação na década de 1970 exerce os princípios mais rígidos de
valorização do ser humano, seja em nossas lojas ou em nossa comunidade. Ficamos
muito abalados com a notícia que nos causou repulsa imediata”. Como disse,
o recurso ao verbo repudiar já é um clássico — mas quais seriam “os
princípios mais rígidos de valorização do ser humano” que o estabelecimento
exerce desde sua fundação? Nos “mais rígidos”, aliás, quase leio
“incorruptíveis” – mas quais são? Onde acho esses princípios? São os mesmos da
Declaração dos Direitos do Homem? Sem dúvida se proclama aí uma universalidade
de conduta, com princípios válidos desde sempre, em toda parte, para todos, mas
gostaria de vê-los descritos, e não só a eles como também os momentos particulares
em que o Ricoy teria a oportunidade de “empunhar essa bandeira”, para manter o
tom de seu enunciado muito digno — convenhamos, aqui ele já não é supermercado,
mas, desde sua fundação, aliás durante a ditadura militar, estaria mais para
uma espécie de organização que milita em favor dos direitos humanos, e a
atividade comercial talvez biombo ou fachada para a valorização, não do
dinheiro mas do espírito. Do humano clientela ou do humano empregado? E do
humano terceirizado? Haveria aí uma escala? E, sendo sempre “a mais rígida
valorização”, como se mostraria de um caso a outro? Quase já vou esquecendo que
ela é universal e não desce a tais vulgaridades.
O terceiro ponto traz outra
convenção típica desse gênero – que de tão praticado produzirá algum gênio,
mesmo que permaneça anônimo –, além da insistência sempre presente em reiterar (eles
são infatigáveis) que não aceitam qualquer ato de violência e não
vão se eximir! (um ótimo verbo, pois a repetição do i é sempre
galvanizante e desperta credibilidade). A tópica presente aqui é o anúncio de
que já despediram os seguranças, que sempre serão de uma empresa contratada,
clichê desta época também. São portanto, como o carrasco de Minas Gerais, desprezíveis.
Não vou dizer, assistindo ao vídeo com o menino cercado por caixas de tomate e
outros alimentos, com a calça arriada até os tornozelos e chicoteado com fios
elétricos (o instrumento vintage foi um pouco atualizado, mas não perdeu
ressonâncias antigas), além de impedido de gritar, pois estava amordaçado, e
proibido severamente de se proteger por qualquer forma dos golpes sucessivos,
não vou dizer que essas figuras não sejam sádicas, mas lembrar que são
terceirizadas e em seguida avisar que já foram despedidas tem muito daquele desprezível,
parecendo um pouco injusto ou ingrato. Afirmar que esses homens não têm vínculo
empregatício com o lugar onde cometeram as violações permite um subterfúgio que
não tivera o Estado em relação àquele verdugo, contratado por ele diretamente e
buscado entre assassinos para exercer o ofício de matar, fazendo-o se deslocar
da marginalidade para o centro da ordem ou da manutenção da ordem social. Lembremos ainda que profissão corrente até o fim da escravidão como a de
capitão do mato ou apresador de escravos urbanos era muitas vezes, ao contrário
do posto de carrasco, trabalho autônomo, não menos requisitado e indescartável,
ainda que também considerado abjeto pela sociedade do século 19, especialmente
depois de 1850, e mesmo pelos que o remuneravam depois que se levava a presa. Já
então fedia como o trabalho de um traficante negreiro, mas por feder não era
menos solicitado.
É verdade que a carta oficial de
Ouro Preto, que tinha reportado o fato que interessara ao cronista, mencionava
que o sujeito exercera o ofício entre 1835 e 1858, portanto umas décadas antes
de sua morte; seja como for, a pena de morte continuava a existir ainda naquela
altura, e com ela a tarefa do carrasco. “Deus meu, não digo que o ofício seja
dos mais honrosos: é muito inferior ao do meu engraxador de botas (…); mas se o
carrasco sai a matar um homem, é porque o mandam”. E o executor não deixa de
ser um pobre-diabo, a quem no entanto o Estado deveria agradecer pelos serviços
prestados. É ingratidão chamar-lhe de repugnante, assim como despedir os
seguranças e, mais ainda, se tornar um “colaboracionista”. Convenhamos que
esses supermercados estão não apenas lavando as mãos pelo artifício de buscarem
carrascos de outras empresas, mas também infringindo uma espécie de ética, de
lealdade afinal devida àqueles de quem se serviu – estão colaborando com o
inimigo, ou seja, a justiça que queira julgar o crime cometido contra um rapaz,
no caso morador de rua. Uma justiça a cuja suposta equanimidade se recorreu –
não primeiro o supermercado, mas seus detratores, seus inimigos afinal, a quem
logo se juntou –, justiça que em princípio (o qual esperamos ser “o mais
rígido”) é inimiga dos que apreciam a tortura ou a prescrevem, especialmente
para determinada classe de pessoas. Não há dúvida de que esses empresários se
degradam numa espécie de colaboracionismo – é que de tanto ver o verbo colaborar andar
por essas notas fica mais fácil acrescentar o “ismo”. Seria como se os generais
da ditadura militar se referissem a um torturador como “desprezível” — teríamos
então a mesma “dissonância cognitiva”, como gostava de dizer FHC. Nesse
sentido, é preciso admitir que o atual presidente da República não presta
colaborações desse tipo, isto é, que possam ir contra sua própria noção de
justiça.
Na informação da rede Extra
escrita recentemente por sua assessoria a propósito da morte de Pedro Henrique
de Oliveira Gonzaga, consequência de uma mata-leão aplicado por um de seus
seguranças, também constava que fora “imediatamente e definitivamente” afastado
o elemento desprezível, e a companhia então se mostrava interessada em ajudar,
instaurara “uma sindicância interna” e acompanhava “junto à empresa de
segurança e aos órgãos competentes o andamento das investigações”. Como fatos
desse tipo se repetem, concluímos que os terceirizados não cessam de ser
afastados, o que aliás já caracteriza sua condição, como se a empresa os
estivesse sempre trocando para aperfeiçoar seus “princípios mais rígidos de
valorização do humano”. Estando nisso empenhados, nos dão o conforto de avisar
que se desvencilharão de todos os obstáculos que a constrangem, mesmo que estes
venham a ser seus empregados, embora por sorte raramente o sejam também,
avisam. Em todo caso, “nada justifica a perda de uma vida”, e a “a rede Extra
não vai se eximir das responsabilidades diante do ocorrido”. Eximir-se
das… diante… Eis outra dissonância cognitiva, semelhante àquela que
Machado viu no necrológio do assassino de Estado. Uma preposição mudaria tudo:
“A rede Extra não vai se eximir das responsabilidades pelo ocorrido”.
Na verdade suas assessorias não escrevem tão mal e perceberam que diante realizaria
o milagre de metamorfosear um narrador em primeira pessoa (talvez doloso, mas
isso foi o que imaginaram) na pessoa de um mero observador ou mesmo de alguém
ausente da cena, embora muito condoído pelo que ouviu contar. Isso se não se
aplicar aqui a “teoria do domínio do fato”, aquela que imputa os que sabem,
embora não façam. Mas por certo ela não deverá valer nesse caso.
*Priscila Figueiredo é ensaísta e
professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.
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