sábado, 7 de setembro de 2019

Brasil | DESPREZÍVEL


Após a sessão de tortura em um de seus supermercados, a Ricoy escreveu uma nota. Vejam bem: os fios elétricos, transformados em chicote, foram empunhados por outras mãos — mãos terceirizadas, vale destacar


Em dezembro de 1888, já passada a Abolição, Machado de Assis cismou com a forma como veio a se noticiar a morte de um carrasco de Minas Gerais, o qual teria exercido o “desprezível ofício desde 1835 até 1858”: “Por que carga d’água há de ser desprezível um ofício criado por lei? Foi a lei que decretou a pena de morte, e desde Caim até hoje, para matar alguém é preciso alguém que mate. A bela sociedade estabeleceu a pena de morte para o assassino, em vez de uma razoável compensação pecuniária aos parentes do morto, como queria Maomé. Para executar a pena não se há de ir buscar o escrivão, cujos dedos só se devem tingir no sangue do tinteiro. Usamos empregar outro criminoso” (Bons dias!, 27/12/1888).

Confesso que também embatuquei com a primeira nota expedida pelo supermercado Ricoy a propósito de uma sessão de tortura nas dependências de uma de suas filiais, gravada pelos próprios torturadores:

1 – Ficamos chocados com o conteúdo de uma tortura gratuita e sem sentido em cima do adolescente vítima.

2 – O Ricoy desde sua fundação na década de 1970 exerce os princípios mais rígidos de valorização do ser humano, seja em nossas lojas ou em nossa comunidade. Ficamos muito abalados com a notícia que nos causou repulsa imediata.

3 – Os dois seguranças acusados de praticarem os atos são de empresa contratada terceirizada e não prestam mais serviço para nossos supermercados.

4 – Para manter nossa coerência em contribuir com as investigações, nesta terça-feira (3), um funcionário da loja Yervant Kissajikian, 3384, prestou depoimento no 80º Distrito Policial.

5 – O Ricoy já disponibilizou uma assistente social para conversar com a vítima e a família. Daremos todo o suporte que for necessário.

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Os grifos são meus para realçar algumas das convenções próprias desse tipo de discurso, praticado de tal modo no Brasil que chego a pensar num curso sobre o assunto, pois creio que seria inédito e disporei para isso de um corpus que não para de se ampliar. A estrutura básica (verifiquei muitas outras “notas de pesar e esclarecimento” escritas pela assessoria de outros supermercados e lojas a propósito de casos semelhantes) consiste em: 

1-manifestar espanto e indignação, 2-manifestar que ela mesma, loja, defende princípios contrários aos subjacentes no ato que muito a indignou, 3-esclarecer que os seguranças são terceirizados (o que não é apenas um clichê linguístico ou retórico, claro), 4-avisar que já os despediu, 5-mostrar-se interessada nas investigações, em que pretende colaborar, 6-manifestar que fará todo o possível para dar suporte à vítima (a palavra suporte é um faz-tudo emocional, material, espiritual, social e o que mais couber aí tal sua indefinição). Não se economiza no uso de pronomes indefinidos (todo o, todos, tudo, nada), advérbios de intensidade (extremamente, veementemente, muito, muitíssimo) e também no emprego de um repertório já clássico de verbos e substantivos como repudiar, indignar, indignação, tudo não deixando de ser variações da tendência superlativista dessa forma. Superlativismo que é, por assim dizer, um ativismo atrasado ou recrudescido, que o comércio empresta das “moções de repúdio”, próprias deste tempo também, quando o leite derramado derrama muitas vezes mais que a última vez. Como no entanto já são lugares-comuns, o espírito que aí se manifesta como que tocado por uma enormidade é um pouco amortecido pelas letras, mesmo que superlativas.




Quanto ao primeiro item, “Ficamos chocados com o conteúdo de uma tortura gratuita e sem sentido em cima do adolescente vítima”, cabe perguntar que tortura não é gratuita ou pode ter sentido. Por esse lapso escapa alguma fumaça. Imaginemos que a assessoria de imprensa não saiba escrever direito, não saiba português nem tenha noções mínimas de regência (o que se percebe pelo “tortura em cima”), ainda assim não é raro que a exigência moral ou o assombro mais franco sempre possam achar caminho, mesmo entre as ruínas, para se expressar. Contudo, se não for o caso de uma indigência linguística, teria sido mais adequado formular algo como: “Ficamos chocados com o conteúdo de uma tortura — como tal, sempre gratuita, sem sentido, além de abominável ou hedionda, para não dizer diabólica — praticada com um adolescente etc.”. Tortura é, digamos, substantivo absoluto, intransitivo, cujo sentido, sempre macabro, se encerra em si mesmo, não passível de ser graduado em sua essência por nenhum adjetivo ou advérbio. A frase original, no entanto, indica que o mundo dos que escreveram essa nota parece reservar algum lugar para a sua prática.

Em relação ao segundo ponto: “O Ricoy desde sua fundação na década de 1970 exerce os princípios mais rígidos de valorização do ser humano, seja em nossas lojas ou em nossa comunidade. Ficamos muito abalados com a notícia que nos causou repulsa imediata”. Como disse, o recurso ao verbo repudiar já é um clássico — mas quais seriam “os princípios mais rígidos de valorização do ser humano” que o estabelecimento exerce desde sua fundação? Nos “mais rígidos”, aliás, quase leio “incorruptíveis” – mas quais são? Onde acho esses princípios? São os mesmos da Declaração dos Direitos do Homem? Sem dúvida se proclama aí uma universalidade de conduta, com princípios válidos desde sempre, em toda parte, para todos, mas gostaria de vê-los descritos, e não só a eles como também os momentos particulares em que o Ricoy teria a oportunidade de “empunhar essa bandeira”, para manter o tom de seu enunciado muito digno — convenhamos, aqui ele já não é supermercado, mas, desde sua fundação, aliás durante a ditadura militar, estaria mais para uma espécie de organização que milita em favor dos direitos humanos, e a atividade comercial talvez biombo ou fachada para a valorização, não do dinheiro mas do espírito. Do humano clientela ou do humano empregado? E do humano terceirizado? Haveria aí uma escala? E, sendo sempre “a mais rígida valorização”, como se mostraria de um caso a outro? Quase já vou esquecendo que ela é universal e não desce a tais vulgaridades.

O terceiro ponto traz outra convenção típica desse gênero – que de tão praticado produzirá algum gênio, mesmo que permaneça anônimo –, além da insistência sempre presente em reiterar (eles são infatigáveis) que não aceitam qualquer ato de violência e não vão se eximir! (um ótimo verbo, pois a repetição do i é sempre galvanizante e desperta credibilidade). A tópica presente aqui é o anúncio de que já despediram os seguranças, que sempre serão de uma empresa contratada, clichê desta época também. São portanto, como o carrasco de Minas Gerais, desprezíveis. Não vou dizer, assistindo ao vídeo com o menino cercado por caixas de tomate e outros alimentos, com a calça arriada até os tornozelos e chicoteado com fios elétricos (o instrumento vintage foi um pouco atualizado, mas não perdeu ressonâncias antigas), além de impedido de gritar, pois estava amordaçado, e proibido severamente de se proteger por qualquer forma dos golpes sucessivos, não vou dizer que essas figuras não sejam sádicas, mas lembrar que são terceirizadas e em seguida avisar que já foram despedidas tem muito daquele desprezível, parecendo um pouco injusto ou ingrato. Afirmar que esses homens não têm vínculo empregatício com o lugar onde cometeram as violações permite um subterfúgio que não tivera o Estado em relação àquele verdugo, contratado por ele diretamente e buscado entre assassinos para exercer o ofício de matar, fazendo-o se deslocar da marginalidade para o centro da ordem ou da manutenção da ordem social. Lembremos ainda que profissão corrente até o fim da escravidão como a de capitão do mato ou apresador de escravos urbanos era muitas vezes, ao contrário do posto de carrasco, trabalho autônomo, não menos requisitado e indescartável, ainda que também considerado abjeto pela sociedade do século 19, especialmente depois de 1850, e mesmo pelos que o remuneravam depois que se levava a presa. Já então fedia como o trabalho de um traficante negreiro, mas por feder não era menos solicitado.

É verdade que a carta oficial de Ouro Preto, que tinha reportado o fato que interessara ao cronista, mencionava que o sujeito exercera o ofício entre 1835 e 1858, portanto umas décadas antes de sua morte; seja como for, a pena de morte continuava a existir ainda naquela altura, e com ela a tarefa do carrasco. “Deus meu, não digo que o ofício seja dos mais honrosos: é muito inferior ao do meu engraxador de botas (…); mas se o carrasco sai a matar um homem, é porque o mandam”. E o executor não deixa de ser um pobre-diabo, a quem no entanto o Estado deveria agradecer pelos serviços prestados. É ingratidão chamar-lhe de repugnante, assim como despedir os seguranças e, mais ainda, se tornar um “colaboracionista”. Convenhamos que esses supermercados estão não apenas lavando as mãos pelo artifício de buscarem carrascos de outras empresas, mas também infringindo uma espécie de ética, de lealdade afinal devida àqueles de quem se serviu – estão colaborando com o inimigo, ou seja, a justiça que queira julgar o crime cometido contra um rapaz, no caso morador de rua. Uma justiça a cuja suposta equanimidade se recorreu – não primeiro o supermercado, mas seus detratores, seus inimigos afinal, a quem logo se juntou –, justiça que em princípio (o qual esperamos ser “o mais rígido”) é inimiga dos que apreciam a tortura ou a prescrevem, especialmente para determinada classe de pessoas. Não há dúvida de que esses empresários se degradam numa espécie de colaboracionismo – é que de tanto ver o verbo colaborar andar por essas notas fica mais fácil acrescentar o “ismo”. Seria como se os generais da ditadura militar se referissem a um torturador como “desprezível” — teríamos então a mesma “dissonância cognitiva”, como gostava de dizer FHC. Nesse sentido, é preciso admitir que o atual presidente da República não presta colaborações desse tipo, isto é, que possam ir contra sua própria noção de justiça.

Na informação da rede Extra escrita recentemente por sua assessoria a propósito da morte de Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, consequência de uma mata-leão aplicado por um de seus seguranças, também constava que fora “imediatamente e definitivamente” afastado o elemento desprezível, e a companhia então se mostrava interessada em ajudar, instaurara “uma sindicância interna” e acompanhava “junto à empresa de segurança e aos órgãos competentes o andamento das investigações”. Como fatos desse tipo se repetem, concluímos que os terceirizados não cessam de ser afastados, o que aliás já caracteriza sua condição, como se a empresa os estivesse sempre trocando para aperfeiçoar seus “princípios mais rígidos de valorização do humano”. Estando nisso empenhados, nos dão o conforto de avisar que se desvencilharão de todos os obstáculos que a constrangem, mesmo que estes venham a ser seus empregados, embora por sorte raramente o sejam também, avisam. Em todo caso, “nada justifica a perda de uma vida”, e a “a rede Extra não vai se eximir das responsabilidades diante do ocorrido”. Eximir-se das… diante… Eis outra dissonância cognitiva, semelhante àquela que Machado viu no necrológio do assassino de Estado. Uma preposição mudaria tudo: “A rede Extra não vai se eximir das responsabilidades pelo ocorrido”. Na verdade suas assessorias não escrevem tão mal e perceberam que diante realizaria o milagre de metamorfosear um narrador em primeira pessoa (talvez doloso, mas isso foi o que imaginaram) na pessoa de um mero observador ou mesmo de alguém ausente da cena, embora muito condoído pelo que ouviu contar. Isso se não se aplicar aqui a “teoria do domínio do fato”, aquela que imputa os que sabem, embora não façam. Mas por certo ela não deverá valer nesse caso.

*Priscila Figueiredo é ensaísta e professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.

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