segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Macron confessa-se ou as angústias da burguesia francesa ...e alemã


"O fascismo não é o contrário da democracia burguesa, é a sua evolução em tempos de crise" -- B. Brecht

Daniel Vaz de Carvalho

1 - A burguesia no "fio da navalha" das crises

Em 27 de agosto o sr Macron proferiu um discurso perante os embaixadores franceses, em que fez praticamente o pleno sobre política internacional, economia, soberania, NATO, UE, interesses da França em África e no Médio Oriente, etc, afastando-se da habitual ortodoxia, porém praticamente ignorado pelos grandes media.

Macron, limita-se a ser porta-voz e um dos executantes dos interesses da burguesia francesa, em íntima ligação com as posições do governo alemão. Os últimos presidentes franceses limitaram-se a ser arautos de políticas decididas em Berlim. Por isso, é importante percebermos o que diz e por que o diz.

Em primeiro lugar, avaliemos os contextos deste discurso, que reflete as preocupações da burguesia francesa e por certo alemã. É significativo que Macron, que tem demonstrado ser uma nulidade intelectual e política, de repente se exprima de forma alheia à ortodoxia vigente, sobre política internacional, ordem mundial, globalização, soberania, economia de mercado.

A França está em estagnação desde a adoção do euro. Que surpresa! De 2000 a 2018 o crescimento médio anual foi inferior a 1,3%, mas de 2008 a 2018 apenas 0,86%. A BC de bens, positiva antes de 2000, atingiu em 2018 um défice de 76,7 mil milhões de euros! (dados AMECO) Acrescente-se o atraso tecnológico e industrial da França em muitas áreas face a parceiros/concorrentes e a perda de voz na cena internacional.

Na lista da Forbes entre os 50 primeiros ultraricos contam-se 25 dos EUA com a agravante de estarem nos primeiros lugares (8 entre os 10 primeiros), mas apenas dois franceses. A Alemanha conta com cinco. Esta classificação não agrada aos oligarcas.

A agitação social não cessou, o total descrédito dos políticos do sistema e da UE, a ascensão de uma direita mais radical, que em muitos aspetos coloca em causa os dogmas neoliberais e o federalismo da UE, conquistando largas camadas da "classe média", coloca a burguesia francesa e não só, no "fio da navalha", perante o avanço de nova crise económica e financeira.

Já antes das manifestações dos coletes amarelos as sondagens davam a Macron apenas uns 26% de apoio. Face a isto, não deixa de ser sintomático o esforço mediático desde então para promover Macron, "omnipresente em todas as suas facetas e em todos os canais" [1]

2 - Política internacional: "enfrentando o fim da hegemonia ocidental no mundo"

Diz Macron que a ordem internacional está a ser abalada de uma maneira sem precedentes: uma grande reviravolta em quase todos os campos, com uma magnitude profundamente histórica, que traduz uma recomposição geopolítica e estratégica. "Provavelmente, estamos enfrentando o fim da hegemonia ocidental no mundo".

"A posição ocidental no mundo profundamente abalada pelos erros dos ocidentais em certas crises, pelas escolhas, também americanas durante vários anos e que não começaram com esse governo, mas que levam a revisitar certas implicações dos conflitos no Médio Oriente e noutros lugares".

Desta forma, Macron diz ser necessário repensar profundamente uma estratégia diplomática e militar, mesmo "elementos de solidariedade que pensávamos serem intangíveis para a eternidade, mesmo que a tivéssemos formado juntos em momentos geopolíticos que hoje mudaram".

Por outras palavras, os EUA que façam o seu caminho que nós faremos o nosso. Mas quem? A França e a Alemanha? A UE? A zona euro? Com quem não é claro, mas o facto é que aqueles "nós" olham agora estarrecidos para Leste.

Reconhece-se "o surgimento de novos poderes, cujo impacto provavelmente subestimamos há muito tempo. A China na vanguarda, mas também a estratégia que a Rússia liderou, é preciso dizer, nos últimos anos com mais sucesso. A Índia emergente, essas novas economias que estão se tornando não apenas económicas, mas também políticas e que se pensam como verdadeiras civilizações estatais e que não apenas empurram a nossa ordem internacional, como chegam a pesar na ordem económica, a repensar a ordem política e o imaginário político que a acompanha. A Índia, Rússia e China, têm uma inspiração política muito mais forte do que os europeus de hoje. (...) uma lógica real, uma filosofia verdadeira, um imaginário que perdemos um pouco".

Eis como as burguesias dominantes na UE (alemã e francesa) verificam que se tornam cada vez mais irrelevantes, agarradas a teses falhadas, ao contrário da "estratégias de sucesso da Rússia".

3 - A "ordem internacional"

A intervenção de Macron reflete a desorientação que reina na "ordem internacional" que o ocidente (leia-se NATO e aliados) comandava: "Acostumámo-nos a uma ordem internacional que se baseava na hegemonia ocidental. As coisas estão mudando". Macron refere-se também ao insucesso relativo do G7, que exibiu divergências, incapacidade de consenso e liderança.

O receio de aventuras bélicas "num mundo onde os conflitos se multiplicam", e cujas consequências diretas, como no caso do fim do tratado INF (misseis de médio alcance) em que "os mísseis retornariam sobre o nosso território" ou indiretas lançando o caos nas economias e no comércio internacional: "uma ordem em que nossa segurança e organização se baseia e está desaparecendo".

O distanciamento em relação aos EUA é evidente, quer no fim dos tratados de controlo de armas, na questão do Irão ou das relações com a Rússia. "É indispensável estruturar a Europa para um novo relacionamento com a Rússia". Neste sentido é anunciada a visita dos ministros das Relações Exteriores e o ministro dos Exércitos, a Moscovo para retomar "um diálogo constante com o Presidente Putin, criando um grupo de trabalho para avançar nessa arquitetura comum".

Quanto ao Irão, é deixado claro, que todos (no G7) estão comprometidos com a estabilidade e a paz na região". Isso significa que todos também se absterão de comportamentos que possam ameaçar essa paz e estabilidade". Embora decididos a não permitir que o Irão obtenha a arma atómica.

O que é evidente, é que os EUA e aliados (incluindo a França) podem ter vencido batalhas mas não ganharam nenhuma guerra, pelo contrário criaram caos, fragilizaram a economia, degradaram a situação internacional, envolveram-se em atoleiros de que não sabem sair. Bem pode Macron lastimar a Líbia "cena inaceitável ao nível humanitário" que a França ajudou a criar, podia também falar da situação no Iémen criada pela Arábia Saudita (outra derrota "ocidental"), grande cliente de armas francesas.

Por seu lado, aparecendo como vencedora "a Rússia maximizou todos os seus interesses no contexto atual: voltou à Síria, voltou à Líbia, voltou à África, está em todos os assuntos de crise por nossas fraquezas ou erros".

As oligarquias francesa e alemã, parecem finalmente reconhecer que atreladas ao carro de guerra dos EUA caminham para o desastre. A falhada hegemonia dos EUA quer manter-se sobre os pés de barro do dólar, o poder militar, um estatuto imperial e uma ganância que desestabiliza e ameaça destruir o mundo inteiro, sem sequer ter em conta os interesses dos seus aliados mais próximos.

"A ordem em que nossas certezas e nossa organização repousam está desaparecendo isso deve-nos levar a questionar nossa própria estratégia, porque hoje os que têm cartas reais nas mãos são os EUA a China". Esta constatação leva-o a colocar a questão da fragilidade da UE e da incapacidade de ter uma política própria, limitando-se a decidir "ser aliados minoritários de um ou de outro ou um pouco de um e um pouco do outro ou decidir ter nossa parte no jogo e pesar".

4 - Economia de mercado, globalização

Seria divertido apreciarmos as piruetas políticas destes títeres da oligarquia, caso não nos envolvessem nelas. Afinal, após anos de propaganda de não haver alternativa, dizem-nos que "estamos passando por uma crise sem precedentes na economia de mercado.

Uma economia "profundamente financiarizada e o que era uma economia de mercado, que alguns poderiam até teorizar como uma economia social de mercado e que estava no centro do equilíbrio em que pensávamos, se tornou um capitalismo cumulativo, (...) levando a uma maior concentração de riqueza". Uma "economia de mercado produzindo desigualdades sem precedentes que, no final, abalam profundamente nossa ordem política".

Parece então que o problema já não é não se explicar devidamente as "reformas", como diziam, mas do seu descrédito. "Como explicar aos nossos concidadãos que é uma boa organização quando eles não encontram sua parte. Quando as classes médias, que são a base de nossas democracias, não têm mais a sua participação, duvidam e são legitimamente tentadas por regimes autoritários, democracias iliberais ou pondo em questão o sistema económico".

A globalização também é posta em causa: "portanto, devemos encontrar os meios para repensar a globalização, mas também para repensar essa ordem internacional".

E necessário "manter empregos em nosso país". Como? Fazer "concessões vacilantes a grupos nos quais não podemos fazer nada". Mas a estratégia adaptação também não serve. Consiste em dizer: é necessário correr mais rapidamente contra esse mundo em movimento", "fazer reformas para alcançar outros tentando nada mudar de verdade. Este é um cenário que rapidamente nos levará ao mesmo resultado". Ou seja, a requentada história das "reformas estruturais" não passa de uma falácia"...

Por fim – era o que estava a faltar (!) – queixa-se das privatizações: "a crise económica e financeira, levou vários Estados a privatizações forçadas sem opção europeia, decidindo reduzir sua soberania entregando muitas infraestruturas essenciais no sul da Europa aos chineses. Não culparemos os chineses por serem inteligentes, podemos nos culpar por sermos estúpidos". (!) Pois sim, mas nem agora nem antes as troikas foram questionadas, nem as austeridades para compensar a banca francesa e alemã, nem as imposições dos famigerados tratados orçamentais da UE – que a França não cumpre.

5 - UE e soberania

É necessário "trabalhar pela construção de uma soberania europeia (...) militar, estratégica, em todos os assuntos. Esta não é uma iniciativa para desafiar a NATO, mas é complementar a ela muito profundamente, porque também nos dá espaço para manobras e autonomia estratégica."

Em termos de soberania "devemos repensar em nossas fronteiras. Devemos ser mais capazes de proteger nossas fronteiras". Quanto aos migrantes o objetivo é que possam "retornar ao seu país de origem com o apoio da União Africana" e da UE.

Torna-se evidente que a burguesia francesa não está interessada na atual UE em que países do Leste estão mais alinhados com os EUA do que com a CE, arrastando os demais para confrontos contrários aos interesses da França e da Alemanha.

O interesse da burguesia francesa é pela zona euro, que obviamente tem intenções de controlar, servindo-se de reforçados mecanismo financeiros que deseja aprofundar para se salvar a ela própria. "Precisamos lutar por um reforço, uma maior integração da área do euro, uma maior integração dos mercados e atores financeiros da zona do euro e uma capacidade de construir tudo o que realmente constrói soberania financeira e monetária, é indispensável".

Os interesses dos países periféricos não contam. A questão é saber se a Alemanha vai nisso de favorecer a França à sua custa, embora, segundo os tratados a Alemanha, já devesse ter sido penalizada pela dimensão do excedente comercial

6 - Concluindo

A França e a Alemanha vêm a "sua" "Europa" e elas próprias entrarem em crise tendo apenas soluções que se mostraram inúteis ou contraproducentes. O que Macron afirma sobre a "adaptação" e o prosseguimento das medidas atuais entra em choque com a política decidida pelo BCE.

Os burocratas da CE, fixados nos dogmas que os suportam, não chegam a uma solução para o Brexit, aliás uma forma de mostrar às tendências centrífugas o que o futuro lhes reservaria. A Leste os vários países mostram que acima da UE a sua fidelidade é para com os EUA que ajudaram a colocar no poder e suportam cliques neofascistas e corruptas que os dominam, funcionando como agentes da agressividade contra a Rússia.

Apesar do silêncio dos media controlados pela oligarquia, um país com as ambições da Alemanha não pode ignorar o dinamismo da Organização de Cooperação de Shangai, da Nova Rota da Seda, nem mesmo da União Económica Eurasiática [2] , face ao descalabro da economia mundial liderada pelos EUA, FMI, BM, OMC, que já mostraram não ter controlo sobre o que se passa na economia.

A agressividade dos EUA, roça o desnorte de uma guerra total, ameaçando em primeiro lugar os países europeus sede de inúmeras de bases norte-americanas.

O comércio internacional não progride, preso às agendas imperialistas que têm conduzido a Estados caóticos e a sanções contra importantes clientes, como a Rússia cujas retaliações recaíram significativamente sobre as exportações da França e da Itália.

A França permanece envolvida em guerras conspirações na África francófona, resultando em caos, miséria, corrupção. O capitalismo precisa de expandir os mercados, mas as políticas da sua ganância conduzem ao desastre global.

A "classe média" que a oligarquia considera o esteio do seu domínio pela democracia burguesa, foge-lhe pela indiferença, pelo desprezo a que vota os seus políticos, pelo descrédito de protagonistas dessa mesma burguesia atolada em escândalos, fraudes, crises nunca resolvidas e uma austeridade permanente que apenas beneficia os ultra-ricos.

Para tudo isto a solução habitual do capitalismo é a guerra e isso pretendem muitos nos EUA e os seus próceres da NATO. Porém, acordam das suas mentiras e verificam que o "ocidente" perdeu a superioridade tecnológica para a China, a superioridade militar para a Rússia, os domínios imperialistas e neocoloniais estão ou caóticos ou endividados, enfrentam crescente resistência popular, dificilmente a exploração pode ser levada mais longe.

A Rússia e a China tornam inúteis as arrogantes ameaças dos EUA ao Irão. A Rússia garante continuar a cooperar e apoiar o sistema bancário iraniano. A China investe 400 mil milhões de dólares no Irão: 280 para o sistema petrolífero e petroquímico, 120 em infraestruturas de transporte e produção.

A UE é o mais evidente falhanço do poder entregue à burocracia. Não é possível manter as mesmas políticas, suportadas pelas ameaças contidas nos seus Tratados e no poder de chantagem atribuído ao BCE.

Claro que os habituais "especialistas" e analistas" e outros "comentadores" devem estar a ser reciclados para ver qual a direção a tomar no seu discurso. Neste momento preferem o silêncio sobre estes temas. Lembremos o recente litígio – um entre vários – surgido na Alemanha com o embaixador dos EUA, acerca da compra de petróleo à Rússia, que seria substituído pelo "petróleo da liberdade" (!) dos EUA – bastante mais caro.

Torna-se evidente a recusa da unipolaridade dos EUA. Macron reflete as "angústias" da oligarquia francesa e alemã, pelos fracassos imperialistas e neocoloniais. O Ocidente não consegue ganhar nenhuma das guerras em que se envolveu: criou caos, endividou-se, liquidou comércio necessário para contrariar a tendencial queda da taxa de lucro.

O mais curioso de tudo isto é Macron, sem pudor, seguindo ordens dos seus mentores, copiar quase integralmente o programa do partido da sra. Marine le Pen (M le P), e do seu criptofascismo, tanto nos aspetos de política internacional, como nas relações de soberania, migrações, controlo de fronteiras, críticas à "economia de mercado" e à UE.

Até na tese de M le P querer um "Estado estratega", Macron alinha ao confessar que não tem mais controlo sobre as políticas "dos grupos". Que diferenças existem na posição sobre o movimento sindical? Sobre as migrações, sobre as relações com a Rússia e África ou Médio Oriente. Mesmo sobre a UE e euro as diferenças passam a mínimas dado que M le P já tinha deixado cair as propostas mais radicais. Até a "democracia musculada" de M le P, foi posta em prática de maneira mais que brutal contra os "coletes amarelos".

Tudo o que serviu para eleger Macron contra a "extrema-direita" de M le Pen foi deitado para o lixo, perante uma "esquerda ausente" [3] adotando o programa da sua principal oponente, aliás à frente do partido de Macron nas eleições para o PE.

Portanto não surpreende que a burguesia mande Macron roubar o programa da le Pen. É que Macron é um homem que a oligarquia escolheu e controla, coisa que não têm por garantido com M le Pen.

Assim vai a UE e em geral o mundo capitalista entre a guerra e os fascismos. Mas como disse Brecht: "o fascismo não é o contrário da democracia burguesa é a sua evolução em tempos de crise".

Aqui chegámos. Mas uma pergunta se impõe: o que é que os interesses nacionais têm a ver com este vespeiro?

Notas:
[1] A desinformação dos media dominantes sobre a vida internacional: mentiras, manipulações, silêncios, resistir.info/varios/desinformacao_dos_media.html
[2] A União Eurasiática, visa a integração económica e política entre a Bielorrússia, Cazaquistão, Rússia, Quirguistão, Tajiquistão, Moldávia (observador), prevendo-se alargar à Mongólia, Síria, Tajiquistão, tendo já acordos de comércio com outros nove Estados, entre os quais Vietname, Índia, Irão, Tunísia, etc.
[3] A esquerda ausente, Domenico Losurdo, resistir.info/losurdo/esq_ausente.html

O discurso integral de Macron encontra-se em www.elysee.fr/...

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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