Talvez Joacine - e o seu
indefectível assessor, já agora - ainda não tenha compreendido bem a
responsabilidade que os eleitores lhe colocaram aos ombros.
Anselmo Crespo | Diário de Notícias
| opinião
Há fenómenos eleitorais difíceis
de compreender. E que, às vezes, demoram anos a fazer sentido. Como é que os
americanos puderam eleger Donald Trump? Ou os brasileiros foram capazes de pôr
no Planalto uma figura como Jair Bolsonaro? Como foi possível o Brexit ter
saído vencedor do referendo no Reino Unido? E André Ventura? De onde é que
saíram aqueles eleitores? No caso de Joacine Katar Moreira, porém, dificilmente
alguém pode manifestar surpresa pela sua eleição.
Mulher, negra e gaga. Eis o
cartão-de-visita que a própria entregou ao país quando decidiu candidatar-se ao
cargo de deputada. Se ser mulher não representava qualquer fator de novidade, a
ideia de termos no Parlamento a primeira mulher negra constituía, em si mesmo,
um factor de diferenciação. Mas foi a gaguez que lhe completou a
"persona" e que a tornou viral. A dificuldade em expressar-se
secundarizou-lhe a mensagem política, mas Joacine - e o Livre, já agora - não
se importou. Entre os que sorriram embaraçados com a sua gaguez, os que andaram
a partilhar as suas entrevistas com os amigos e os que sofreram com ela de cada
vez que queria completar uma frase, a verdade é que Joacine Katar Moreira
tornou-se viral e o país ganhou uma nova "mascote".
Depois de eleita, a campanha de
marketing pessoal continuou. Política? Zero. Junte-se à mulher, negra e gaga um
assessor que decide ir de saia para o Parlamento e o buzz em torno da
deputada aumentou ainda mais. Política? Zero. Acrescente-se-lhe ainda as
guerras estéreis que a própria foi comprando e alimentando nas redes sociais
com pessoas do seu espectro político. Política? Zero. E agora, pièce de
résistance, este lavar de roupa suja na praça pública que, ainda por cima,
nasce da incompetência da deputada. Política, até agora, zero. Mas que os trolls têm
andado bem "alimentados", disso não há dúvidas.
Talvez Joacine - e o seu
indefectível assessor, já agora - ainda não tenha compreendido bem a
responsabilidade que os eleitores lhe colocaram aos ombros. A deputada não foi
eleita para fazer documentários para televisões estrangeiras, para ter um GNR a
escoltá-la e, muito menos, para andar a fugir das perguntas dos jornalistas.
Foi eleita para apresentar propostas a tempo e horas, para ser coerente com o
programa com que o Livre se apresentou a eleições, para fazer oposição ao
Governo e não ao seu próprio partido. Joacine Katar Moreira não foi eleita para
se andar a gabar de si própria, nem para andar em guerrinhas infantis na
comunicação social e nas redes sociais - alguém que afaste o assessor do
Twitter - com os seus camaradas de partido e com os jornalistas. Foi eleita
para dignificar o cargo de deputada.
Até porque é de uma tremenda
injustiça o que Joacine tem dito publicamente sobre o partido a que ainda
pertence. Sobretudo para o seu fundador. A mim bastar-me-ia ter visto Rui
Tavares a dançar descomplexado - e desengonçado como eu, já agora - no
vídeo-clip de campanha, para perceber que Joacine Katar Moreira não venceu esta
eleição sozinha. A juntar às entrevistas que Tavares deu e as que recusou para
lhe dar o "palco" e a defesa acérrima que fez sempre da
"sua" candidata. A ingratidão, mas, sobretudo, o comportamento de
Joacine Katar Moreira e seus muchachos nos últimos dias retiram-lhe todo
capital de queixa que pudesse ter.
O Livre e Joacine Katar Moreira estão,
por isso, perante um problema de difícil resolução. Em circunstâncias normais,
o partido não teria outra solução que não fosse retirar a confiança política à
sua deputada. Mais do que isso, depois das afirmações públicas que fez, se
fosse coerente, Joacine Katar Moreira devia sair do partido pelo próprio pé e
acabar de vez com este embaraço público. Mas nada disto é simples. O Livre
lutou muito para chegar ao Parlamento e para conseguir a respetiva subvenção
estatal. Perder a única deputada, menos de dois meses depois de ter sido
eleita, era pior que morrer na praia. Seria afogar-se na areia. Joacine Katar
Moreira podia até aguentar a legislatura como deputada independente, mas
ficaria, seguramente, ainda mais debilitada, quer na sua imagem pública, quer
politicamente.
A humildade - que outros já
recomendaram - é, talvez, a única saída possível para a deputada, por muito que
lhe custe recuar do beco sem saída em que se meteu. E sim, Joacine tem muito
para aprender na política. Tem de aprender, por exemplo, a dar prioridade à
mensagem, às ideias e ao debate, porque foi para isso que foi eleita. O
problema é que o deslumbramento de Joacine Katar Moreira fê-la acreditar que
ela vale mais que o partido que a elegeu. Ou, pior ainda, que ela é o seu
próprio partido. É uma espécie de adaptação livre do "L'État, c'est
moi", atribuída a Luís XIV, o que, convenhamos, para quem ainda não
mostrou rigorosamente nada como deputada, é de uma arrogância sem limites.
Imagens: 1 – Em Google; 2 - Joacine
Katar Moreira com o seu assessor, Rafael Esteves Martins ./ © Miguel A.
Lopes - Lusa
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