José Pereira Coutinho é o único
português na Assembleia Legislativa de Macau e falou da censura na Assembleia,
a descriminação face a associações africanas e o medo de Hong Kong.
O único deputado português na
Assembleia Legislativa (AL) de Macau denunciou à Lusa atos de censura às suas
intervenções no plenário, com a última tentativa a visar um parágrafo no qual
abordava “escândalos de corrupção”.
“Na semana passada, na
intervenção antes da ordem do dia, quiseram censurar a minha intervenção na
AL”, acusou José Pereira Coutinho, em entrevista, referindo-se aos serviços da
assembleia.
Em causa está o seguinte
parágrafo: “Decorridos quase vinte anos após o estabelecimento da RAEM [Região
Administrativa Especial de Macau], não podemos deixar de lamentar a
incapacidade e falta de coragem do Governo de apresentar propostas de leis
relativas à aquisição de bens e serviços, concursos de empreitadas e construções
que têm sido foco dos maiores escândalos de corrupção nos últimos tempos”.
Tal como acontece com as
perguntas que são dirigidas ao chefe do Executivo, as intervenções em plenário
têm de ser remetidas com antecedência. As primeiras uma semana antes, as
segundas com um mínimo de 48 horas “com o argumento de que precisam de ser
traduzidas”, explicou o deputado, na Al desde 2005. “O que acontece é que eles
recebem as nossas intervenções antes da ordem do dia com 48 horas de
antecedência, depois ligam-me, para pedir para cortar determinado parágrafo
inteiro”, acusou aquele que é também conselheiro das comunidades portuguesas e
presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau.
O deputado afirmou que os pedidos
são realizados pelos serviços da AL, em que seja adiantada qualquer
justificação. “Mas da minha parte sempre recusei”, salientou, destacando que
“sempre que se toca em questões como a corrupção, como a situação do chefe do
Executivo ou qualquer outro assunto de melindre, é-lhes inconveniente e pedem”.
Esta situação já foi vivida no
passado com mais gravidade, nomeadamente em 2018, já que depois da recusa do
deputado em eliminar o parágrafo, a versão chinesa do texto surgia sem conter a
frase em questão, de acordo com Pereira Coutinho. “O que tem ocorrido no
passado, uma ou outra vez, sem repetição, é que a versão chinesa está
censurada, não obstante [manter-se] a minha versão portuguesa. Mas depois de eu
ter chamado a atenção, deixaram de fazer isso”, ressalvou.
“Nunca senti quaisquer
constrangimentos ou pressões ou ameaças nos últimos 20 anos em Macau. Sempre
tive margem de manobra para fazer tudo”, ressalvou, contudo, o único deputado
de nacionalidade portuguesa na AL. “Mas (…) por interpostas pessoas já me
convenceram a refrear-me um bocadinho em determinados assuntos. Mas eu acho
isso muito natural. Isto acontece também em Portugal, nos Estados Unidos, em
qualquer país ocidental”, referiu. A agência Lusa pediu na quinta-feira, por
email, uma reação ao presidente da AL de Macau, sem que tenha obtido resposta
até ao momento.
Associações lusófonas africanas
discriminadas nos apoios, ao contrário dos portugueses
José Pereira Coutinho disse
também que as associações lusófonas africanas são discriminadas nos subsídios
concedidos pelas autoridades do território, ao contrário do que acontece com as
portuguesas.
“A comunidade portuguesa está bem
porque o Governo de Macau tem olhado com carinho a comunidade portuguesa,
subsidiando a maior parte das atividades organizadas pelas associações”, começou
por explicar Pereira Coutinho. “Só que, aí, também tenho recebido queixas de
que alguns são filhos e outros enteados”, ressalvou.
“Há muitas associações de países
de língua portuguesa que são tratadas de uma forma desigual porque eles são
africanos e os outros são portugueses. Isso tem de ser dito cá fora. Tenho
recebido queixas nesse sentido”, reforçou aquele que é também conselheiro das
comunidades portuguesas.
Para Pereira Coutinho, “faz falta
em Macau o que existe em Hong Kong: por exemplo, um serviço independente que só
aceite, por exemplo, queixas por discriminação”. “Como deputado, recebo queixas
por discriminação étnica”, afirmou, enumerando casos em que macaenses e
portugueses concorrem para a função pública, mas que se deparam com provas apenas
em chinês, num território em que a lei prevê que o português deverá permanecer
como língua oficial em Macau até 2049.
A entrada de portugueses na
função pública é praticamente impossível após o estabelecimento da região
Administrativa Especial de Macau, assinalou: “a comunidade portuguesa sabe que
não tem lugar (…), só entram aqueles que têm relação de amizade ou que caem de
paraquedas e que vêm cá fazer serviços”. Isto porque, acusou o também
presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau, “hoje em
dia para trabalhar na função pública é preciso mostrar que é patriota, caso
contrário o cargo pode não estar garantido pelos anos fora”.
Se no privado, esclareceu, o
cenário é completamente diferente, na função pública há uma outra realidade:
“Se [o português] tiver cunhas é evidente que toca guitarra. É evidente que
continua a funcionar assim”.
Governo tem muito medo de Hong
Kong, mas não há mercado para a mobilização
Por outro lado, o deputado
referiu que o governo tem medo que a situação de Hong Kong alastre para o
território, mas garantiu que não há “mercado”para a mobilização.
“O governo tem muito medo daquilo
que está a acontecer em Hong Kong (…) possa alastrar para Macau”, afirmou
Pereira Coutinho, numa referência aos protestos violentos que têm marcado o
território vizinho há mais de cinco meses. “[Mas] Macau não tem mercado para o
que está a acontecer em Hong Kong. Em primeiro lugar porque os nossos jovens
são diferentes, quer em termos de educação, quer em termos de conhecimentos políticos,
quer em termos daquilo que está a acontecer de uma maneira geral na sociedade”,
explicou.
Em “segundo lugar, o governo de
Macau comporta-se de uma maneira diferente do Governo de Hong Kong em termos de
concessão de subsídios. Nós temos subsídios de toda a espécie e para todos os
efeitos”, acrescentou.
Pereira Coutinho defendeu que os
jovens de Macau e de Hong Kong partilham o mesmo problema da habitação, mas
que, depois, há muitas diferenças que os separam. Enquanto em Hong Kong é
visível ainda “a penetração e influência do modelo ocidental de democracia, de
educação, de visão e de maior internacionalização, Macau nunca foi uma cidade
internacional”, apontou
“Em Macau há antibióticos, há
anestésicos que fazem com que eles esqueçam de uma forma curta o sofrimento que
têm”, recordando que existem “28 fundos a conceder subsídios todos os anos para
todas as associações e entidades particulares”, algo que, frisou, “Hong Kong
não tem”. “Basta invocar um slogan da Grande Baía [o projeto de uma metrópole
definida por Pequim que junta Hong Kong, Macau e a província chinesa de
Guangdong] ou sessões de esclarecimento de como ser mais patriota para ter
subsídios”, sustentou.
Por outro lado, o deputado de
nacionalidade portuguesa, nascido em Macau, lembrou o facto de já ter
organizado muitas manifestações e que “não é qualquer assunto que consegue
convencer as pessoas a irem para a rua”. “Não é fácil pôr 100 pessoas na rua. Nós
já conseguimos pôr 20 mil numa mega manifestação contra um projeto de lei que
concedia imunidade governantes em processos criminais e que concedia pensos de
aposentação para uma dúzia de elites de governantes. O projeto foi retirado”,
recordou.
Contudo, tendo em conta o tema
sensível que é Hong Kong, o deputado da AL destacou o que considera ser uma
evidência hoje: “As pessoas vão para a rua são identificadas, são
referenciadas, [porque] nós temos câmaras em todos os lados. Pode não ter
consequências imediatas, mas ah! Eu garanto que terão retaliações indiretas e
diretas no médio prazo”.
Corrupção é o dado mais negativo,
o mais positivo é a segurança
Para o deputado, a corrupção é o
fenómeno mais negativo no território e a segurança uma das conquistas mais importantes
dos últimos 20 anos.
“Nos últimos anos não houve um
combate efetivo à corrupção em Macau”, afirmou Pereira Coutinho em entrevista,
dando o exemplo da “falta de coragem para modernizar a legislação referente à
aquisição de bens e serviços, empreitadas e construções por parte das entidades
públicas”. “A corrupção vai ser o desafio de Macau. Macau é muito permeável à
corrupção. E a AL é completamente ineficaz no combate à corrupção”, sublinhou.
José Pereira Coutinho admitiu
ainda que o parlamento de Macau não tem capacidade para contrariar o fenómeno:
“Nós não temos poderes para fiscalizar o orçamento do Governo de Macau. Não
temos. Aquilo é uma paródia. O plenário para o debate orçamental é uma paródia.
Não dá para fazer nada. Não dá para fiscalizar”.
Já o dado positivo, desde a
transferência da administração de Macau para a China, é a segurança, argumentou
aquele que é também conselheiro das comunidades portuguesas. “Nos últimos 20
anos acho que a cidade de Macau é das mais seguras de toda a República Popular
da China”, opinou aquele que é também conselheiro das comunidades portuguesas.
Para isso contribuiu em muito o
investimento que tem sido feito ao nível da videovigilância, sublinhou, ainda
que se tenha de pagar um preço: “Diria que tem o seu custo, que é a
privacidade. Nós somos visionados, escutados, em tudo. Já nem estamos seguros em
casa”.
Observador | Lusa | Imagem: António
Sanmarful/Lusa
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