Judith Dellheim | Outras Palavras
Na Alemanha, metade da população
já defende transporte público gratuito, financiado pelo Estado. No continente,
cinco tipos de atores políticos apoiam a proposta e sugerem financiá-la com
recursos que subsidiam produção de carros
O texto abaixo foi escrito por
Judith Dellheim, pesquisadora da Fundação Rosa Luxemburgo que tem acompanhado
as propostas de políticas de passe livre na Alemanha e estudado a dependência
de seu país em relação à indústria automotiva. Foi publicado em português pela
primeira vez em uma publicação da Fundação, em 2016. Dellheim é uma das
convidadas para o seminário internacional Transporte
como direito e políticas de passe livre em debate, que acontece entre os
dias 16 e 18 de setembro em Niterói-RJ.
Nos últimos anos ganhou força na
Alemanha a ideia de “Transporte Público Local Livre” (em alemão, Gratis-ÖPNV),
também conhecida como “Tarifa Zero para o Transporte Público Local” (Nulltarif
im ÖPNV[1]). Aproximadamente metade dos cidadãos alemães defende passe livre
com financiamento solidário para o sistema de transporte público, incluindo
isenção total nas tarifas de ônibus, bondes, metrô e trens de superfície[2].
Tal fato deveria motivar a tomada de novas ações e este texto pretende ser um
incentivo nesta direção. Trata-se, sobretudo, de um aporte para o debate “O
Plano B”, promovido pelo partido A Esquerda, e para as discussões sobre o
futuro a partir de uma perspectiva de esquerda.
A ideia existe há décadas
Os argumentos favoráveis são
conhecidos há tempos. Praticamente todo mundo quer viver em um lugar tranquilo
e, ao mesmo tempo, usufruir de mobilidade para chegar rapidamente a qualquer
canto, poder deixar as crianças brincarem na rua, viver sem se preocupar com
carros passando em alta velocidade e com as consequências da poluição do ar
para a saúde. A possibilidade de alcançar tais condições depende da situação
financeira de cada um. Quem pode se dar ao luxo de comprar uma casa própria em
meio à natureza – e a compra – acaba contribuindo com o aumento da circulação
de veículos e os consequentes transtornos decorrentes para outras pessoas. Os
pobres, que frequentemente têm mobilidade limitada, são os que mais sofrem com
as consequências do trânsito: morar em um lugar barato muitas vezes significa conviver
com o barulho das ruas, alto índice de poluição do ar, alta concentração de
partículas poluentes, maiores riscos de acidentes de trânsito e estresse. Isso
é especialmente danoso para as crianças que crescem nessas condições e, não
raro, apresentam problemas de saúde. A estes somam-se outros fatores negativos,
como impermeabilização e envenenamento dos solos, tensão e agressividade das
pessoas, automóveis estacionados em locais proibidos, ausência de espaços
tranquilos e de locais públicos que favoreçam a comunicação interpessoal.
Trata-se, portanto, de áreas habitacionais que ofereçam qualidade de vida e da
pergunta central: “Como vivemos hoje e como gostaríamos de viver?” Na sociedade
atual, com muita frequência, as cidades são planejadas de acordo com as
necessidades dos proprietários de automóveis. E os poderes públicos – altamente
endividados – investem anualmente muito mais por habitante em transporte
individual motorizado do que em transporte público local. Além disso, sob a
justificativa dos cofres públicos vazios, o transporte público de passageiros
nos municípios e nas regiões passa por privatizações, aumento de tarifas,
redução ou cancelamento de linhas. Os investimentos necessários ficam de fora.
Essa breve lista mostra que a
“Tarifa Zero para o Transporte Público Local” não é a solução para todos os
problemas, mas poderia ser, na melhor das hipóteses, um primeiro passo na
direção certa.
No entanto, esta lista também
apresenta possíveis argumentos contra a “Tarifa Zero para o Transporte Público
Local”: os cofres públicos vazios, o uso individual irregular do transporte
público local, que pode vir a ocultar novas desigualdades sociais; maiores
áreas tomadas por estacionamentos; superlotação e consequente aumento do stress dos usuários dos transportes públicos locais; menosprezo crescente
pelo serviço dos transportes públicos locais; mais “lacunas de investimento”.
Além disso, a lista sugere que
estejamos lidando aqui com questões ainda mais profundas: desigualdade social;
estruturas de produção e consumo; poder público e, em especial, finanças
públicas; e disposições políticas em diversos níveis. Por exemplo, mesmo que todos
em um município sejam a favor da Tarifa Zero para o Transporte Público Local e
consigam colocar a iniciativa em prática, encontrarão dificuldades no que diz
respeito à legislação da UE e da Alemanha (disposições legais para licitação de
contratos públicos, freio das dívidas públicas, etc.). Além do mais, a medida
não surtiria nenhum ou apenas pouquíssimo efeito sobre a demanda total de
automóveis, visto que não seriam produzidos menos veículos, mesmo que pessoas
que iam de carro para o trabalho passassem a utilizar o “Transporte Público
Local Livre”.