Até a libertar presos políticos o
Presidente da Guiné Equatorial mostra que é um ditador: sem um único papel, o
informático da oposição Joaquín Eló Ayeto foi libertado depois de um ano na
prisão de Black Beach.
Joaquín Eló Ayeto sobreviveu a um
ano na Black Beach, a prisão de Malabo onde a tortura é comum, e acaba de ser
libertado da mesma forma que foi preso: sem aviso, sem diligências e sem
papéis.
“Paysa” Eló, como é conhecido,
foi preso em Fevereiro de 2019 e acusado de conspirar para matar o Presidente
da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema. Torturado duas vezes nas primeiras
semanas, as acusações acabaram por ser retiradas. No total, passou 12 meses na
prisão, incluindo longos períodos incontactável, durante os quais nem a família
nem os advogados sabiam se estava vivo ou morto. Agora, de um momento para o
outro, foi libertado.
“Obiang libertou-me a seu
bel-prazer, sem nenhuma diligência, nem sequer um papel a declarar a minha
liberdade”, diz ao PÚBLICO “Paysa” Eló, de 41 anos, por telefone, a partir da
sua casa em Malabo, a capital. “Simplesmente declarou a libertação. Estou
livre, mas se um polícia quiser prender-me, será fácil dizer que fugi da
prisão.”
Eram seis da tarde de 14 de Fevereiro
quando abriram o portão da Black Beach — que está dentro da Zona da Presidência
da República, a 300 metros do palácio de Obiang — e Eló saiu em liberdade. A
decisão foi tomada horas antes, numa audiência do Presidente a três militantes
da Convergência para a Democracia Social (CPDS), partido da oposição no qual
Eló milita. “A reunião com Obiang foi feita a nosso pedido. O objectivo era
pedir a libertação de presos políticos, especialmente os que estão detidos sem
julgamento nem condenação, incluindo Joaquín Eló Ayeto e Luis Mba Esono”, conta
ao PÚBLICO Andrés Esono Ondo, secretário-geral da CPDS.
“Joaquín Eló foi preso a 25 de
Fevereiro de 2019. Foi levado a julgamento a 22 de Novembro, um julgamento [de
um dia] sem garantias processuais e no qual foi provado que era inocente do
crime de injúria contra o chefe do Estado. Não foi proferida sentença, mas ele
ficou incomunicável na Black Beach. Luis Mba Esono foi preso a 11 de Julho de
2019, com mais oito pessoas. O Governo não explicou os motivos da prisão. “Foram levados para um local desconhecido, os seus familiares não sabiam nada
sobre o seu paradeiro e não tiveram autorização para obter apoio de um
advogado”, conta Esono, que é sociólogo e antigo professor universitário.
Para espanto dos três oposicionistas,
Obiang tomou a palavra e disse que Joaquín Eló e Luis Mba seriam libertados. “O
Presidente decidiu libertá-los naquele momento. Deu instruções ao ministro do
Interior, que estava na audiência, para que os libertassem. E assim foi”, conta
ao PÚBLICO o advogado de direitos
humanos Ángel Obama Obiang, secretário das relações institucionais da CPDS, que
integrou a delegação do partido (o outro era Wenceslao Mansogo Alo, médico e
terceiro vice-secretário-geral do partido). Nessa tarde, foram soltos.
Os relatos da Black Beach são
conhecidos. Em 2017, nos seis meses em que esteve na Black Beach, “todos os
dias alguém foi torturado — todos os dias”, contou o ilustrador Ramón Esono
Ebalé, co-autor d’O Pesadelo de Obi, a banda desenhada satírica sobre a
ditadura da Guiné Equatorial. “É um tema profundo falar sobre o que é ouvir
pessoas a gritar porque lhes estão a arrancar a pele ou a espancar o corpo”,
contou ao PÚBLICO na altura do lançamento do livro em Portugal (2019, Tigre de
Papel), a partir de El Salvador, onde vive.
Joaquín Eló, acabado de sair da
prisão, limita-se ao relato factual do que lhe fizeram e do que viu: “Na
primeira vez que fui torturado, a 27 de Fevereiro, perguntaram-me sobre ‘o
atentado contra Obiang’ e eu respondei: ‘Não sei do que estão a falar.’
Levaram-me para a Brigada Judicial [Comissariado Central da Polícia], conhecido
como Guantánamo e, no sótão, penduraram-me num andaime com umas cordas e
começaram a bater-me com tudo o que tinham à mão. Foram 20 ou 30 minutos a
baterem-me sem parar. Depois, tiram-me as cordas e perguntaram: ‘Onde é que vão
matar o Presidente?’. Eu respondi: ‘Mas como é que se mata o Presidente, não
faço ideia!’. Quando me mandaram sair da sala, não conseguia andar. Arrastei-me
pelo chão. Isto foi a primeira vez que me torturaram.”
A segunda vez que foi torturado
foi na Black Beach. “Bateram-me umas 100 vezes. Fiquei com o corpo cheio de
feridas. A seguir meteramme numa cela com 14 pessoas, onde estive seis meses.
Aí estive muito doente. Nunca fui levado a um médico. O meu advogado pediu
vezes sem conta para que eu fosse visto por um médico. A certa altura estava
com uma diarreia muito forte e levaram-me a uma pequena loja dentro da Black
Beach onde há medicamentos. Para meu espanto, na loja estava a dra. Mercedes
Botoco, uma médica muito conhecida na Guiné Equatorial, que trabalhou no PNUD e
na Unicef, conhecida como dra. Merche. Esta é uma sociedade estranha. Pessoas
como a dra. Merche podiam denunciar o que se passa dentro da Black Beach. Ela
reconheceu-me, mas não quis falar comigo e foi lá para dentro.
Enquanto estive na Black Beach,
morreram nove pessoas com diarreia, incluindo três rapazes. A seguir, fui
mudado para uma cela de 4mx6m onde estavam 24 presos. Tínhamos uma casa de
banho para os 24 e não havia água. A 2 de Janeiro, fui para outra cela, onde
estava António Timoteo, também preso político, preso há seis anos, no ‘caso
Cipriano’, outra suposta tentativa de atentado contra o Presidente. Nesta cela,
os meus familiares nem podiam levar comida. Estive estas duas últimas semanas
sem comer nem beber, porque a comida que eles dão nem parece comida e não
arrisquei. A Black Beach está fora de controlo, eles até já batem nas mulheres
e nos idosos — e estão a matar as pessoas à fome. Deve haver uns 800 presos.”
Por ser programador informático e participar na plataforma digital Somos+, que
quer politizar os jovens, Eló é alvo do regime. “Mas não é preciso ser-se
informático. Qualquer pessoa que diga que as coisas não estão bem, incomodain Obiang.
Se um agricagricultor de cacau de uma pequepequena aldeia se queixar,xar, o
presipresidente da comunidadedade ppode dizer que ele é umu ‘inimigo internno’.
Na Black Beach conheci uma mulher cujo marido é do CI [partido Cidadãos para a
Inovação, ilegalizado em 2018, que elegeu o único deputado da oposição, que não
ocupou o lugar por estar preso no dia das eleições]. Como não conseguiram uma
razão para o prender a ele, acusaram-na de cortar as bananeiras de uma
plantação do Estado colada à sua e prenderam-na. Esteve quatro meses na Black
Beach, sem sentença, sem nada.”
A 11 de Fevereiro, três dias
antes de Eló e Mba serem libertados, o juiz Juan Carlos Ondo Angue,
ex-magistrado do Tribunal Constitucional e presidente do Supremo Tribunal de
Justiça (e filho da antiga embaixadora em Espanha), telefonou ao embaixador
espanhol em Malabo a dizer que a sua casa fora invadida por forças de segurança
do Estado que o queriam prender. Acabou por refugiar-se e está neste momento em
parte incerta.
Andrés Esono estava em casa
quando o telefone tocou: “Uns colegas do partido ligaram a dar a notícia.”
Joaquín Eló, soube depois, saiu a pé da prisão e foi directo para a sede da
CPDS. “A seguir, vieram com o Joaquín para minha casa e celebrámos.” Luis Mba
foi libertado seis horas depois. Esteve sete meses na prisão de Oveng Asem, na
parte continental do país. “Uns polícias meteram-no num carro e levaram-no até
uma localidade próxima, onde o deixaram para que ele fosse para a sua aldeia, a
100km dali, sem lhe darem qualquer recurso para chegar a casa.”
‘Não temos uma vida normal’
Nada espanta Andrés Esono. No ano
passado, quando chegou ao Chade para um congresso político, foi detido e
interrogado pelos serviços secretos, e passou 13 dias no escritório do director
nacional de Contraterrorismo sem poder lavar-se ou mudar de roupa. Até que o
chefe dos serviços secretos veio pedir-lhe “desculpa em nome do Governo do
Chade por todos os inconvenientes e revelou que fora o próprio Governo da Guiné
Equatorial que fizera chegar ao Governo do Chade falsas acusações”, contou na
altura.
Quando regressou a Malabo, o
secretário-geral da CPDS retomou a actividade política, “mas não foi fácil”.
“As forças de segurança importunaram-me sempre que quis viajar para o exterior
ou quando regressava”, conta agora. “Tiraram-me o passaporte e levaram-me ao
comissário de polícia de turno, que fazia telefonemas antes de me deixar
passar. Isso aconteceu umas cinco vezes, até que enviei uma queixa formal ao
ministro da Segurança e deixaram de me incomodar.”
“[Na oposição] não temos uma vida
normal”, diz Joaquín Eló. “Só há trabalho no Estado e para isso temos de ser do
PDGE [Partido Democrático da Guiné Equatorial] de Obiang. Vivo de trabalhos
pontuais e do apoio de familiares e amigos.” O informático quer “intensificar a
actividade da Plataforma Somos+, porque os jovens não têm trabalho e ninguém
fala desse problema. O Estado só fala de golpes de Estado, golpes de Estado,
golpes de Estado. Estranhamente estão sempre a acontecer e sempre a falhar. Nós
queremos falar do futuro dos jovens deste país.”
Desde 2016, Eló esteve preso
“nove ou dez vezes”, em esquadras da polícia. “Há sempre violência — na última
vez, partiram-me o nariz.” Isto, antes do ano na Black Beach. Receia voltar a
ser preso? “O que posso fazer? Ter cuidado? Sim. Tenho medo? Sim, sou humano.
Mas se não denuncio isto, vai parecer normal.”
Bárbara Reis | Público
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