domingo, 23 de fevereiro de 2020

Guiné Equatorial | Quero, posso e mando: como Obiang libertou um preso político


Até a libertar presos políticos o Presidente da Guiné Equatorial mostra que é um ditador: sem um único papel, o informático da oposição Joaquín Eló Ayeto foi libertado depois de um ano na prisão de Black Beach.

Joaquín Eló Ayeto sobreviveu a um ano na Black Beach, a prisão de Malabo onde a tortura é comum, e acaba de ser libertado da mesma forma que foi preso: sem aviso, sem diligências e sem papéis.

“Paysa” Eló, como é conhecido, foi preso em Fevereiro de 2019 e acusado de conspirar para matar o Presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema. Torturado duas vezes nas primeiras semanas, as acusações acabaram por ser retiradas. No total, passou 12 meses na prisão, incluindo longos períodos incontactável, durante os quais nem a família nem os advogados sabiam se estava vivo ou morto. Agora, de um momento para o outro, foi libertado.

“Obiang libertou-me a seu bel-prazer, sem nenhuma diligência, nem sequer um papel a declarar a minha liberdade”, diz ao PÚBLICO “Paysa” Eló, de 41 anos, por telefone, a partir da sua casa em Malabo, a capital. “Simplesmente declarou a libertação. Estou livre, mas se um polícia quiser prender-me, será fácil dizer que fugi da prisão.”

Eram seis da tarde de 14 de Fevereiro quando abriram o portão da Black Beach — que está dentro da Zona da Presidência da República, a 300 metros do palácio de Obiang — e Eló saiu em liberdade. A decisão foi tomada horas antes, numa audiência do Presidente a três militantes da Convergência para a Democracia Social (CPDS), partido da oposição no qual Eló milita. “A reunião com Obiang foi feita a nosso pedido. O objectivo era pedir a libertação de presos políticos, especialmente os que estão detidos sem julgamento nem condenação, incluindo Joaquín Eló Ayeto e Luis Mba Esono”, conta ao PÚBLICO Andrés Esono Ondo, secretário-geral da CPDS.

“Joaquín Eló foi preso a 25 de Fevereiro de 2019. Foi levado a julgamento a 22 de Novembro, um julgamento [de um dia] sem garantias processuais e no qual foi provado que era inocente do crime de injúria contra o chefe do Estado. Não foi proferida sentença, mas ele ficou incomunicável na Black Beach. Luis Mba Esono foi preso a 11 de Julho de 2019, com mais oito pessoas. O Governo não explicou os motivos da prisão. “Foram levados para um local desconhecido, os seus familiares não sabiam nada sobre o seu paradeiro e não tiveram autorização para obter apoio de um advogado”, conta Esono, que é sociólogo e antigo professor universitário.

Para espanto dos três oposicionistas, Obiang tomou a palavra e disse que Joaquín Eló e Luis Mba seriam libertados. “O Presidente decidiu libertá-los naquele momento. Deu instruções ao ministro do Interior, que estava na audiência, para que os libertassem. E assim foi”, conta ao PÚBLICO o advogado de direitos humanos Ángel Obama Obiang, secretário das relações institucionais da CPDS, que integrou a delegação do partido (o outro era Wenceslao Mansogo Alo, médico e terceiro vice-secretário-geral do partido). Nessa tarde, foram soltos.

O inferno de Black Beach

Os relatos da Black Beach são conhecidos. Em 2017, nos seis meses em que esteve na Black Beach, “todos os dias alguém foi torturado — todos os dias”, contou o ilustrador Ramón Esono Ebalé, co-autor d’O Pesadelo de Obi, a banda desenhada satírica sobre a ditadura da Guiné Equatorial. “É um tema profundo falar sobre o que é ouvir pessoas a gritar porque lhes estão a arrancar a pele ou a espancar o corpo”, contou ao PÚBLICO na altura do lançamento do livro em Portugal (2019, Tigre de Papel), a partir de El Salvador, onde vive.

Joaquín Eló, acabado de sair da prisão, limita-se ao relato factual do que lhe fizeram e do que viu: “Na primeira vez que fui torturado, a 27 de Fevereiro, perguntaram-me sobre ‘o atentado contra Obiang’ e eu respondei: ‘Não sei do que estão a falar.’ Levaram-me para a Brigada Judicial [Comissariado Central da Polícia], conhecido como Guantánamo e, no sótão, penduraram-me num andaime com umas cordas e começaram a bater-me com tudo o que tinham à mão. Foram 20 ou 30 minutos a baterem-me sem parar. Depois, tiram-me as cordas e perguntaram: ‘Onde é que vão matar o Presidente?’. Eu respondi: ‘Mas como é que se mata o Presidente, não faço ideia!’. Quando me mandaram sair da sala, não conseguia andar. Arrastei-me pelo chão. Isto foi a primeira vez que me torturaram.”

A segunda vez que foi torturado foi na Black Beach. “Bateram-me umas 100 vezes. Fiquei com o corpo cheio de feridas. A seguir meteramme numa cela com 14 pessoas, onde estive seis meses. Aí estive muito doente. Nunca fui levado a um médico. O meu advogado pediu vezes sem conta para que eu fosse visto por um médico. A certa altura estava com uma diarreia muito forte e levaram-me a uma pequena loja dentro da Black Beach onde há medicamentos. Para meu espanto, na loja estava a dra. Mercedes Botoco, uma médica muito conhecida na Guiné Equatorial, que trabalhou no PNUD e na Unicef, conhecida como dra. Merche. Esta é uma sociedade estranha. Pessoas como a dra. Merche podiam denunciar o que se passa dentro da Black Beach. Ela reconheceu-me, mas não quis falar comigo e foi lá para dentro.

Enquanto estive na Black Beach, morreram nove pessoas com diarreia, incluindo três rapazes. A seguir, fui mudado para uma cela de 4mx6m onde estavam 24 presos. Tínhamos uma casa de banho para os 24 e não havia água. A 2 de Janeiro, fui para outra cela, onde estava António Timoteo, também preso político, preso há seis anos, no ‘caso Cipriano’, outra suposta tentativa de atentado contra o Presidente. Nesta cela, os meus familiares nem podiam levar comida. Estive estas duas últimas semanas sem comer nem beber, porque a comida que eles dão nem parece comida e não arrisquei. A Black Beach está fora de controlo, eles até já batem nas mulheres e nos idosos — e estão a matar as pessoas à fome. Deve haver uns 800 presos.” Por ser programador informático e participar na plataforma digital Somos+, que quer politizar os jovens, Eló é alvo do regime. “Mas não é preciso ser-se informático. Qualquer pessoa que diga que as coisas não estão bem, incomodain Obiang. Se um agricagricultor de cacau de uma pequepequena aldeia se queixar,xar, o presipresidente da comunidadedade ppode dizer que ele é umu ‘inimigo internno’. Na Black Beach conheci uma mulher cujo marido é do CI [partido Cidadãos para a Inovação, ilegalizado em 2018, que elegeu o único deputado da oposição, que não ocupou o lugar por estar preso no dia das eleições]. Como não conseguiram uma razão para o prender a ele, acusaram-na de cortar as bananeiras de uma plantação do Estado colada à sua e prenderam-na. Esteve quatro meses na Black Beach, sem sentença, sem nada.”

A 11 de Fevereiro, três dias antes de Eló e Mba serem libertados, o juiz Juan Carlos Ondo Angue, ex-magistrado do Tribunal Constitucional e presidente do Supremo Tribunal de Justiça (e filho da antiga embaixadora em Espanha), telefonou ao embaixador espanhol em Malabo a dizer que a sua casa fora invadida por forças de segurança do Estado que o queriam prender. Acabou por refugiar-se e está neste momento em parte incerta.

Andrés Esono estava em casa quando o telefone tocou: “Uns colegas do partido ligaram a dar a notícia.” Joaquín Eló, soube depois, saiu a pé da prisão e foi directo para a sede da CPDS. “A seguir, vieram com o Joaquín para minha casa e celebrámos.” Luis Mba foi libertado seis horas depois. Esteve sete meses na prisão de Oveng Asem, na parte continental do país. “Uns polícias meteram-no num carro e levaram-no até uma localidade próxima, onde o deixaram para que ele fosse para a sua aldeia, a 100km dali, sem lhe darem qualquer recurso para chegar a casa.”

‘Não temos uma vida normal’

Nada espanta Andrés Esono. No ano passado, quando chegou ao Chade para um congresso político, foi detido e interrogado pelos serviços secretos, e passou 13 dias no escritório do director nacional de Contraterrorismo sem poder lavar-se ou mudar de roupa. Até que o chefe dos serviços secretos veio pedir-lhe “desculpa em nome do Governo do Chade por todos os inconvenientes e revelou que fora o próprio Governo da Guiné Equatorial que fizera chegar ao Governo do Chade falsas acusações”, contou na altura.

Quando regressou a Malabo, o secretário-geral da CPDS retomou a actividade política, “mas não foi fácil”. “As forças de segurança importunaram-me sempre que quis viajar para o exterior ou quando regressava”, conta agora. “Tiraram-me o passaporte e levaram-me ao comissário de polícia de turno, que fazia telefonemas antes de me deixar passar. Isso aconteceu umas cinco vezes, até que enviei uma queixa formal ao ministro da Segurança e deixaram de me incomodar.”

“[Na oposição] não temos uma vida normal”, diz Joaquín Eló. “Só há trabalho no Estado e para isso temos de ser do PDGE [Partido Democrático da Guiné Equatorial] de Obiang. Vivo de trabalhos pontuais e do apoio de familiares e amigos.” O informático quer “intensificar a actividade da Plataforma Somos+, porque os jovens não têm trabalho e ninguém fala desse problema. O Estado só fala de golpes de Estado, golpes de Estado, golpes de Estado. Estranhamente estão sempre a acontecer e sempre a falhar. Nós queremos falar do futuro dos jovens deste país.”

Desde 2016, Eló esteve preso “nove ou dez vezes”, em esquadras da polícia. “Há sempre violência — na última vez, partiram-me o nariz.” Isto, antes do ano na Black Beach. Receia voltar a ser preso? “O que posso fazer? Ter cuidado? Sim. Tenho medo? Sim, sou humano. Mas se não denuncio isto, vai parecer normal.”

Bárbara Reis | Público

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