terça-feira, 31 de março de 2020

O toque a finados do neoliberalismo? (2)

Michael Hudson [*] entrevistado por Ellen Brown e Walt McRee


Ellen Brown – Se nos ergueremos na nossa cátedra e apenas dissermos que isto precisa mudar, nada acontecerá. Poderíamos fazer isso nós próprios e justamente mostrar o que estamos a fazer, em contraste com o que eles fazem...

Michael Hudson – Está a pedir para haver simetria. Mas eles impõem-nos uma grande carga, que não precisam carregar. Lançam os dados a seu favor. A Ellen pretende parar o favoritismo interno. Para apresentar corretamente os bancos dentro do sistema tem de se dizer: "Olhem, essas pessoas estão a tentar manter o seu monopólio". Pode-se usar a legislação anti-monopólio que está em vigor desde a época de Teddy Roosevelt. Há muito poder legal para dividir os grandes bancos. Poderiam ser tratados como acho que poderiam tratar as empresas farmacêuticas se Bernie Sanders entrasse.

Walt McRee – Os monopólios estão a ser desafiados pelo setor bancário paralelo. Novas tecnologias de troca de pagamentos parecem estar corroendo essa fonte singular de crédito. Qual é o seu prognóstico para como isso vai evoluir? Os grandes bancos encontrarão uma maneira de o reprimir?

Michael Hudson – Estamos falar de criptomoeda?

Walt McRee – Seria um exemplo, sim.

Michael Hudson – Bem, não se pode impedir as pessoas de jogar. As pessoas pensam que comprar uma criptomoeda é como comprar uma gravura de Andy Warhol. Talvez o preço aumente se um grande número de pessoas quiser. Mas, basicamente, é lixo. É muito especulativo. Certamente não é estável. Sobe e desce. Um dia, pode haver uma erupção solar que apague todos os registos bancários dessas coisas. Mas não há como impedir que as pessoas façam algo que pareça idiotice ou jogo. Portanto, simplesmente, não se lhes dará nenhuma proteção contra perdas. Também vai ser necessário isolar a economia de ter transações em criptografia, essas coisas alternativas de dinheiro que contêm grandes riscos de perda. Não são dinheiro real, porque o governo não aceitará o pagamento em criptomoedas para impostos ou bens e serviços públicos. O governo aceitará apenas formas especificas de dinheiro. Pode-se criar qualquer tipo de troca ou aposta. Se se deseja criar o equivalente a uma pista de corrida de cavalos com apostas, pode-se fazer isso, mas é uma pista financeira. Eu acho que pode haver impostos nas pistas de corrida. Estão desregulamentadas desde há muito. Mas os filmes de Hollywood mostram que há muita criminalidade por aí.

Walt McRee – Estávamos, Ellen, eu e Tyson Slokum, um pouco divertidos imaginando como Max Kaiser gosta do Bitcoin e como ele o vê como o novo ouro.

Michael Hudson – Ele disse-me que muitas pessoas assistem ao seu programa porque estão muito interessados no ouro ou interessadas no Bitcoin. Acho que ele tenta ter uma visão neutra, nas nossas conversas pessoais. Ele não está especialmente interessado no ouro ou no Bitcoin. Mas muitas pessoas querem ter informação sobre isso, então ele tem convidados no seu programa dizendo-lhes: "Aqui está, faça a sua escolha". Faz parte do novo cenário financeiro especulativo, assim como os pântanos fazem parte do cenário imobiliário da Florida. Então, ele cobre todo esse espectro de opiniões. A Reuters produz os seus shows e o público quer ouvir falar sobre isso. Então ele fala sobre o que eles querem ouvir.

Ellen Brown – Eu acho que ele realmente promove o Bitcoin. Investiu muito aí, foi um dos primeiros, portanto, obviamente, ganhou muito dinheiro. Acho que ele concorda que não pode ser uma moeda nacional. É muito lento, muito caro e ambientalmente hostil. Mas, como você diz, tem sido um bom investimento, assim como obras de arte ou algo que, se as pessoas querem, o valor aumenta. Além disso, existe um grande mercado negro para isso, comércio e coisas que não se deseja que o governo conheça.

Michael Hudson – É um fenómeno real. Ele viu o fenómeno e parece ter ganhado dinheiro, mas quando Steve Keen e eu e outros nos encontrámos com ele o tópico nunca foi discutido. Mas o ouro sim.

Eu pergunto-me para onde foi o ouro da Líbia, por exemplo. Aparentemente, foi todo tirado e eu penso que os EUA o deram ao ISIS. Hillary disse que esse ouro tinha que ir para o ISIS para atuar como a nossa Legião Estrangeira. Nós demos-lhes as armas da Líbia. Parte do ouro deve ter sido levado pela CIA e pelo Departamento de Estado para os seus golpes sujos, para as suas operações secretas. Os Estados Unidos querem impedir que qualquer outro país ou grande possuidor de ouro tenha ouro suficiente para tentar restabelecê-lo como um meio de resolver os défices da balança de pagamentos.

Os EUA têm um grande défice militar; portanto, quanto mais dinheiro gastar no exterior com as suas 800 bases militares, mais ouro perderia. Portanto, os Estados Unidos querem manter o dólar no centro do sistema financeiro mundial. Foi realmente por isso que entraram em guerra com a Líbia, porque a Líbia foi um dos primeiros países a desdolarizar e mover a sua moeda em direção ao ouro. Agora há um grupo de países – Rússia, China, Irão e outros – adicionando ouro às suas reservas em vez de dólares. Estamos a passar por uma desdolarização por todo o mundo para se libertarem da capacidade de os EUA fazer o que fez com o Irão.

Quando o Irão, sob o Xá, pediu empréstimos em dólares, usou o Chase Manhattan Bank como seu agente pagador. Colocou dinheiro suficiente na conta para pagar o serviço da dívida externa. Quando o Xá deixou de governar o Irão, o Departamento de Estado disse ao Chase para recusar-se a entregar aquele dinheiro. Uma vez que Chase se recusou a entregar o pagamento e congelou a conta do Irão, isso significava que o país entrou em incumprimento de toda a dívida externa em dólares. Era responsável por uma enorme quantidade de capital.

Isto foi um aviso para o resto do mundo de que nenhum governo poderia colocar o seu dinheiro com segurança num banco americano ou numa agência bancária americana, ou numa agência britânica que atuariam como subsidiários do Pentágono. Porque se o fizer, o banco pode simplesmente forçá-lo a entrar em incumprimento a qualquer momento, assim como a CIA pode usar armas eletrónicas para destruir o seu sistema de compensação de pagamentos bancários. É por isso que a ameaça de cortar a Rússia, a China e outros países do Swift Interbank Clearing System levou a Rússia a desenvolver o seu próprio sistema de compensação. Com o toque de um botão, pode começar a funcionar sempre que os Estados Unidos tentem retirar a Rússia do sistema de pagamentos SWIFT. Os Estados Unidos estão a fazer com que o mundo inteiro desdolarize muito rapidamente. Agora a questão é: o que vai a Europa escolher. A Alemanha e outros países tornar-se-ão parte do sistema desdolarizado ou permanecerão na área do dólar?

Isto faz parte da luta contra o uso dos chips IT e de comunicação da Huawei. A Huawei não colocou spywares dos EUA no sistema. Os Estados Unidos dizem que, se não puderem ter um sistema telefónico e um sistema de comunicação que possa controlar por spyware um país e usa-lo para destruir a sua economia, os seus serviços públicos, os seus sistemas elétricos, então esse país é nosso inimigo, porque se sentem inseguros sem esse controlo.

Quando o presidente Trump disse que a Huawei era uma ameaça à segurança nacional dos EUA, ele quis dizer que não nos sentimos seguros, a menos que tenhamos o poder de destruir qualquer economia que atue de maneira independente dos Estados Unidos – porque pode fazer algo que nós não gostamos. Este é o conceito mais agressivo de segurança que se poderia imaginar. Portanto, é claro que o resto do mundo vê a sua própria segurança nacional como tendo uma dimensão financeira. Ter dimensão financeira consiste em criar um sistema monetário e financeiro que minimize as conexões com o dólar, exceto na medida necessária para comprar e vender dólares com o objetivo de estabilizar a taxa de câmbio.

Ellen Brown – Fala-se muito, mesmo entre os banqueiros centrais, de que precisamos sair do dólar como moeda de reserva global. Mas parece-me que o ouro também é manipulável. Quero dizer, não é o ideal que eu tinha imaginado, um sistema em que em vez das reservas serem uma coisa, como dólares ou ouro que se podem negociar, seria apenas como uma medida. Seríamos capazes de comparar uma moeda com outra de acordo com o que se poderia comprar com ela. Como se tivéssemos uma cesta de coisas que se usam em todos os países. E agora que isso é relatado, não seria tão difícil obter os números, bastaria comparar e dizer: bem, o seu dólar valerá tantos pesos no México ou o que seja. Esta foi a minha ideia, o que acha?
Michael Hudson – Isso responderia a um dos critérios de dinheiro, que é uma medida de valor, mas não serviria para dinheiro internacional. Você precisa ter alguns meios de restrição. Por outras palavras, suponha que os Estados Unidos continuassem com um défice orçamental militar, como na Guerra do Vietname. Não haveria forma de usar a balança de pagamentos como restrição à política dos países deficitários, que geralmente são os agressores militares. A ideia de sair do ouro era que, sob o padrão-ouro, nenhum país pode dar-se ao luxo de fazer guerra, porque fazendo a guerra, a moeda entraria em colapso.

Em 1976, Herman Kahn e eu fomos ao Tesouro – isto é para responder à sua pergunta. Ele colocou um mapa do mundo e disse: "Estes são os países – Escandinávia, Europa Ocidental, Estados Unidos – que não acreditam no ouro. São todos países social-democratas politicamente estáveis. Eles têm fé no governo. Não olhe para esses outros ... aqui está o resto do mundo – Índia, América do Sul, África e grande parte da Ásia. Estas são pessoas que acreditam no ouro. Por que acreditam eles no ouro, mas não na área cultural protestante? Bem, eles não têm fé no governo. Eles não confiam nos governos. Eles querem alguma opção que seja independente do governo. O ouro não serve apenas para subornar os guardas de fronteira se eles estiverem fugindo de algum lugar. Eles querem libertar-se de governos que foram capturados por forças predatórias antidemocráticas".

Ele disse que se devia tentar pensar no que seria uma alternativa ao dólar que as pessoas entendessem. Durante milhares de anos, as pessoas decidiram por ouro e prata (podemos acrescentar platina e paládio), que têm sido o melhor meio de liquidação e, portanto, de restrição monetária internacional. O ouro não deve ser usado como dinheiro. Não deve ser usado como um meio de pagamento normal. Deve ser usado é como restrição da balança de pagamentos, da capacidade dos países de enfrentarem défices crónicos que são principalmente de caráter militar. Por isso, chamei à nossa apresentação de "Gold: the Peaceful Metal". Escusado será dizer que o Tesouro não aceitou isso, porque disseram que tínhamos acabado de explicar como o superimperialismo funciona via dólar. Eles não voltaram ao ouro. Perdemos esse argumento.

Ellen Brown – Não será a razão pela qual saímos do padrão ouro, simplesmente porque não há ouro suficiente e acabamos aproveitando-o, e...

Michael Hudson – Não, há muito ouro. Não havia ouro suficiente para pagar o défice militar. Todos os meses os dólares que gastávamos no Vietname eram entregues aos bancos da Indochina que eram franceses, entregavam os dólares a Paris e o general De Gaulle trocava esses dólares por ouro. Tivemos que pagar em ouro pelo défice militar, que era a fonte absoluta dos défices da balança de pagamentos dos EUA nas décadas de 50, 60 e 70. Os Estados Unidos saíram do ouro para que pudessem dar-se ao luxo de fazer guerras sem a restrição de perder o controlo sobre o sistema monetário internacional.

Ellen Brown – Procurámos ouro no mercado interno mas não funcionou. Quero dizer, foi necessário usar frações dos empréstimos de reserva...

Michael Hudson – Sim, é claro que o ouro não funciona no mercado interno. Certamente não é um suprimento de dinheiro doméstico apropriado. Estou a falar apenas de acordos entre bancos centrais internacionalmente.

Ellen Brown – Disse que não deve ser negociado. Mas, se não, como se define a balança de pagamentos?

Michael Hudson – Pode ser negociado. Existe um mercado. A Ellen disse, corretamente, que os preços do ouro são manipulados. Bem, neste momento, os EUA e os bancos centrais estão manipulando o seu preço para mantê-lo baixo, da mesma maneira que estão manipulando o mercado de ações e títulos comprando antecipadamente. No caso do ouro, eles estão vendendo antecipadamente. Se continuarem a vender ouro a um preço muito baixo, as pessoas verão que, se podem comprar ouro a um preço mais baixo amanhã, por que deveriam comprá-lo a um preço mais alto hoje? Portanto, sim, o ouro é manipulado hoje em dia pelos EUA – especialmente pela equipa de proteção contra quedas que atua a nível internacional para manter o preço do ouro baixo desencorajando outros países e populações de comprá-lo como proteção contra o colapso do sistema financeiro.

Então, voltamos ao facto de o sistema financeiro não funcionar corretamente. Num sistema financeiro funcional, não seria necessária uma referência doméstica ao ouro. Temos um sistema financeiro doméstico que funciona bem sem ouro. Ouro é o que se tem quando o sistema financeiro se torna disfuncional e há um colapso.

Ellen Brown – Bem, quase parece que nesse caso se precisa de algum tipo de regulador global. Mas isso é como um governo mundial, uma aberração contra a qual todos lutamos.

Michael Hudson – Certamente que não queremos um governo mundial. No momento, todos os planos para um governo mundial são neoliberais. Eles visam essencialmente limitar, quebrar a regulamentação governamental democrática dos negócios das grandes empresas e monopólios. A ideia de um governo mundial é destruir a capacidade de qualquer governo democrático fazer as suas próprias leis no interesse do trabalho e da sociedade. Haveria um governo paralelo da riqueza, o governo dos grandes proprietários. É o que a Universidade de Chicago chama de regime de Direito e Economia. E isto é fascismo à escala internacional.

Há um livro maravilhoso de Quinn Slobodian de 2008, Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism , mostrando como esses planos foram desenvolvidos pelos fascistas na década de 1930 e pelos promotores fascistas da Universidade de Chicago. Os promotores fascistas eram pessoas como Hayek e von Mises e os economistas de Genebra da Liga das Nações. Quando dizem que são anti-governo, eles são realmente anti-democracia. Eles pretendem um governo com punho de ferro por grandes empresas, grandes mineiras e grandes do petróleo – e acima de tudo, por grandes bancos. Essa é a razão pela qual as pessoas não confiam num governo internacional. Seria um punho de ferro internacional fascista, a maneira como as manobras das classes financeiras, classes rentistas e neocons organizam as coisas.

Ellen Brown – Concordo totalmente. É muito assustador. Queremos soberania para todas as pequenas nações, e até para as nossas pequenas cidades, Estados e assim por diante. Mas como se conseguirá que todos trabalhem juntos? Por exemplo, a Venezuela tem o problema da dívida, como qualquer país que está fortemente endividado com estrangeiros, fundos abutres ou qualquer outra coisa. Não existe um tribunal reconhecido universalmente onde se possa ir. Parece que, em algum nível, precisamos de algum tipo de esforço de colaboração em que todos concordemos com as regras.

Michael Hudson – Absolutamente certo. Claro que os Estados Unidos não reconheceriam nenhum tribunal internacional. Então, novamente, teríamos o resto do mundo pertencente ao tribunal e os Estados Unidos ficando de fora e não reconhecendo o tribunal. O meu [livro] Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (1968 & 2003) descreve a história dessa política.

Mas está certa: deveria haver um tribunal que reconhecesse coisas como dívidas odiosas para os governos. O problema da Venezuela é que, sob os ditadores que os americanos instalaram por assassinato e à força, a Venezuela comprometeu as suas reservas de petróleo como garantia para os seus títulos internacionais. Isto dá um direito adquirido aos credores para coloca-la em incumprimento e saquear as reservas de petróleo e os investimentos feitos nos Estados Unidos, adquiridos pelos distribuidores de petróleo. Então, sim, é preciso um conjunto de regras internacionais para anular dívidas incobráveis. Isto significa uma alternativa ao FMI. É preciso um anti-FMI. Em vez de agir em nome dos credores que impõem austeridade aos países, deve criar-se uma organização representando a sociedade. E o interesse da sociedade é crescer. Em vez de promover a austeridade como o FMI, promoveria a prosperidade. Em vez de financiar a dolarização do governo dos EUA e dar o controlo mundial aos EUA, faria parte do grupo de desdolarização.

Então, teríamos um grupo de nações pró-crescimento da economia mundial, usando financiamento para crescimento e desenvolvimento com crédito produtivo. Temos os Estados Unidos fornecendo crédito predatório, austeridade, cortando na Segurança Social, cortando o Medicare e tendo uma economia polarizada que está encolhendo e acabará parecendo a Grécia ou a Argentina. O resto do mundo seguiria políticas financeiras mais produtivas e menos oligárquicas. Este deveria ser o nosso sonho global. Mas tem havido pouca preparação para isso. Os neoliberais do setor financeiro reuniram um grupo de lobby quase conspirativo em Direito e Economia para promoverem as regras da Parceria Transpacífico e da OMC impedindo os governos de imporem multas antipoluição, regular monopólios ou fechar paraísos fiscais. Se você multar uma empresa de petróleo por poluir, o governo é obrigado, de acordo com essa lei internacional, a pagar às empresas de petróleo o que elas teriam ganho se continuassem envenenando o meio ambiente. Isto é…

Ellen Brown – Chocante.

Michael Hudson – Definitivamente. É uma forma de morte internacional.

Ellen Brown – Concordo totalmente.

A primeira parte desta entrevista encontra-se aqui

[*] Presidente do Instituto para o Estudo de Tendências Económicas de Longo Prazo (ISLET), analista financeiro de Wall Street, professor de pesquisa de economia da Universidade de Missouri, Kansas City e autor de J is for Junk Economics  (2017),  Killing the Host  (2015),  The Bubble and Beyond  (2012), Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (1968 & 2003), Trade, Development and Foreign Debt (1992 & 2009), Finance as Warfare (2015), The Myth of Aid (1971) e outros.

O original encontra-se em www.informationclearinghouse.info/54045.htm Tradução de DVC.

Esta entrevista encontra-se em https://resistir.info/

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