Apesar da abundância de petróleo,
país abandona projeto social e de desenvolvimento: recursos vão para os
rentistas, em forma de juros da dívida. Venda acelerada de refinarias, no
governo Temer e Bolsonaro, fez Brasil refém de importações
João Soares e Felipe
Salgado na DW Brasil | em Outras Palavras
Às vésperas da crise financeira
global de 2008, precipitada pela falência do tradicional banco de investimentos
Lehman Brothers, nos Estados Unidos, a Petrobras fez a primeira extração de
petróleo em um campo do pré-sal brasileiro. O então presidente Luiz Inácio Lula
da Silva utilizou o feriado do 7 de setembro, Dia da Pátria, para fazer um
pronunciamento em cadeia nacional. “O pré-sal é um passaporte para o futuro”,
afirmou. “Iremos transformar uma riqueza perecível, como o petróleo e o gás, em
fonte de riqueza perene e inesgotável para o povo brasileiro”.
Passados 12 anos, o Brasil se
consolidou como um dos maiores produtores globais de petróleo, ocupando o 9º
lugar no ranking atualmente. O trabalho de inteligência desenvolvido na
Petrobras reduziu custos de produção e conferiu alta competitividade ao óleo
brasileiro. Com um enorme volume de reservas por explorar, a euforia que marcou
o discurso do ex-presidente parece se confirmar nos números. Todavia, a visão
de longo prazo parece ter ficado no caminho, pois a receita gerada pela
exploração de óleo e gás vem sendo endereçada como um “tapa-buraco”
fiscal.
Em meio aos efeitos do
coronavírus sobre a economia global, uma guerra comercial entre Arábia Saudita
e Rússia levou o preço da commodity ao “fundo do poço”, com o barril do tipo
Brent cotado em menos de 24 dólares pela primeira vez desde 2002. Visto que o
setor de óleo e gás tem a terceira maior contribuição para o PIB do Brasil, era
previsível que os efeitos da desvalorização fossem sentidos no país. Mas o
receio interno se dá, sobretudo, pela destinação imediatista dos recursos
provenientes dessa atividade.
+ Em meio à crise
civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta
que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais
intensamente.
A situação do Rio de Janeiro
ilustra esse quadro. Com participação de 71% na produção nacional de óleo e gás
em 2019, o estado tem 20% do seu orçamento atrelado às receitas advindas do
setor. Não à toa, o governador Wilson Witzel (PSC) tratou a queda do preço
internacional como uma “hecatombe”. Nos últimos anos, municípios produtores do
estado foram inundados com royalties do petróleo, contrapartida criada para
compensar o impacto ambiental da atividade exploratória.
O período de bonança possibilitou
obras faraónicas que vão do calçadão de porcelanato em Rio das Ostras à Cidade
da Criança, em Campos dos Goytacazes, conhecida como “Disney de Campos”. A obra
custou 17 milhões de reais. Hoje, com a queda nos preços, essas cidades têm
esgoto a céu aberto e outras carências sociais.
Fundos de longo prazo
Quando as gigantescas reservas do
pré-sal foram descobertas pela Petrobras, o Congresso Nacional e o governo
federal materializaram, em leis, o objetivo de aproveitamento no longo prazo da
riqueza gerada pelo petróleo em águas ultramarinas brasileiras, direcionada
para setores chave do país.
“O arcabouço jurídico por trás da
divisão da renda do petróleo evidencia que há, ali, um entendimento de que esse
dinheiro devia ter uma destinação especial”, explica Edmar Almeida, pesquisador
do Instituto de Energia da PUC-Rio. “Há vários instrumentos criados para que a
renda do petróleo se torne fonte de desenvolvimento”.
Já em 2008, ano da primeira
extração de óleo no pré-sal, foi criado o Fundo Soberano do Brasil (FSB), com o
objetivo de reverter os lucros da atividade exploratória em investimentos e
projetos de interesse nacional. Dez anos depois, tudo mudou. Em maio de 2018,
quando acumulava R$ 30 bilhões, a poupança foi extinta pelo então presidente
Michel Temer, que destinou o montante para pagamento da dívida pública.
Uma iniciativa semelhante
continua vigente. Trata-se do Fundo Social, que recebe todos os recursos arrecadados
pela União com o pré-sal. Instituído em 2010, ele acumulava R$ 24 bilhões em
maio do ano passado. Por lei, 50% de sua destinação deve ir obrigatoriamente
para a educação pública. O restante pode ser alocado em projetos de
desenvolvimento social e regional nas
áreas de cultura, desporto, saúde pública, ciência e tecnologia e meio ambiente.
Um projeto de lei em tramitação,
porém, pode reduzir os recursos do Fundo Social. No dia 10 deste mês, a
Comissão de Assuntos Económicos (CAE) do Senado aprovou uma emenda a um projeto
de lei que altera regras do setor elétrico com a finalidade de modificar a
distribuição dos recursos obtidos pela União em áreas do pré-sal. Caso seja
aprovada em plenário, o montante destinado ao Fundo Social cairia para 30%, com
outros 30% endereçados a Fundos de Participação dos Estados (FPEs), além de 20%
para a União, exclusivos para investimentos em saúde e educação, e outros 20%
para o Fundo de Expansão dos Gasodutos de Transporte e de Escoamento da
Produção (Brasduto).
Política industrial interrompida
por escândalo de corrupção
A preocupação de que a riqueza do
pré-sal fosse convertida em desenvolvimento socioeconómico de longo prazo
sempre foi acompanhada pela expectativa da criação de uma cadeia produtiva
dinâmica em torno do setor de óleo e gás. Além de agregar valor à produção, a
estratégia poderia fomentar a inovação e impulsionar o desenvolvimento
tecnológico no país.
Após a descoberta do pré-sal, os
governos petistas tentaram assentar a Petrobras no epicentro de um projeto
nacional de desenvolvimento. A iniciativa perpassava a expansão da cadeia de
refino, que permitiria a agregação de valor à produção do óleo bruto. Diversas
obras voltadas a esse objetivo, porém, estavam no centro do escândalo de
corrupção desnudado pela Lava Jato, o que levou à interrupção da estratégia e
devastou as finanças da estatal.
Desde o governo Michel Temer, a
empresa passou a vender ativos e se desfazer de unidades de negócios para focar
no que lhe traz maior retorno imediato: a produção do pré-sal. A nova
orientação torna as atividades da companhia vulneráveis às flutuações da
cotação internacional do petróleo. Em momentos de baixa, como agora, as
atividades ficam comprometidas. Com o valor do barril abaixo de 25 dólares, o
investimento nos campos do pré-sal sequer dá retorno suficiente para que seja
mantida a exploração.
A política adotada pela Petrobras
é criticada por especialistas que consideram fundamental a preservação de sua
estrutura vertical. Entre eles, Marcelo Simas, que atuou na Petrobras por 22
anos e é chefe de gestão do conhecimento na consultoria Energy Hub. Ele avalia
que o padrão de concorrência das companhias de petróleo se caracteriza pela
extensão das atividades do “poço ao posto”, ou, mais recentemente, do “poço ao
poste”, já que se posicionam como empresas integradas de energia.
“Quando os preços do petróleo
estão em alta, ganha a atividade de exploração e produção. Em baixa, como no
momento atual, é o refino que se beneficia”, analisa. Simas entende que a
Petrobras está indo na direção contrária à lógica capitalista, pois pretende
encolher, abrindo mão do seu poder de mercado. Como exemplo, destaca a proposta
de venda das oito refinarias da empresa (metade de sua capacidade de refino) e
o repasse do controle de seu braço de comercialização de derivados, a BR
Distribuidora.
Foco nas renováveis
Apesar da crítica de Simas, que
encontra eco no setor, há quem pense que não se justifica investir na cadeia
produtiva do petróleo ante um cenário de transição energética. Edmar Almeida,
da PUC-Rio, enxerga um ciclo de três décadas em alta competitividade para o
pré-sal brasileiro. O economista defende que, nesse período, o país canalize as
receitas do petróleo e a política industrial energética para transformar o país
em uma potência tecnológica nas energias renováveis.
“Os países industrializados
saíram das energias fósseis para as renováveis. Nós trabalhamos com a
hidrelétrica e biocombustíveis desde os anos 1970. Recentemente, avançamos
muito na eólica e solar. Cerca de 80% do dinheiro público investido em pesquisa
e desenvolvimento nas renováveis está concentrado em Alemanha, China, EUA, e
França. Chegamos tarde no petróleo e estamos perdendo a oportunidade de
participar, ombro a ombro, dessa corrida tecnológica”, aponta.
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