Falar
da esquerda – e ser de esquerda – na América significa navegar uma série de
barreiras conceptuais, semânticas e de sensibilidades culturais. Ser
abertamente de esquerda não é tarefa simples.
Inês
Pedrosa e Melo | AbrilAbril | opinião
Para
se falar da esquerda nos Estados Unidos é preciso reconhecer o «elefante na
sala»: entre movimentos pelos direitos civis, a contracultura hippie, o labor
movement e os sindicatos e uma forte tradição de subversão e luta contra o
sistema.
A história
da esquerda na América é uma história rica e faz tão parte da cultura americana
quanto o estereotipado conservadorismo e religiosidade absurda americanos que a
Europa tanto fetichiza. Contudo, ser abertamente de esquerda – e defender
abertamente a esquerda – na América não é tarefa simples.
Nas
comemorações do feriado de 4 de Julho nos Estados Unidos, dia da Independência
e quiçá um dos feriados mais amados pela população americana – um povo criado
num amor cego, irracional e patrioticamente absurdo pela sua nação –, o
presidente Trump faz uma declaração de quase-guerra àquele que ele chama a
«esquerda radical».
Nas
suas próprias palavras: «Estamos agora no processo de derrotar a esquerda
radical: os marxistas, os anarquistas, os agitadores, os saqueadores e todos
aqueles que, em muitas instâncias, não sabem o que estão a fazer. (...) Nunca
permitiremos que uma multidão em fúria destrua as nossas estátuas, apague a
nossa História, endoutrine as nossas crianças ou espezinhe as nossas
liberdades.»
Nos
últimos dias, e entre várias declarações admitidamente absurdas – como, por
exemplo, a acusação absurda de Trump ao candidato à presidência Joe Biden de
que este é «extrema esquerda» – e medidas progressivamente mais
destrutivas – entre as quais a limitação de acesso a métodos contraceptivos ou
a ordem de deportação de todos os estudantes internacionais em território
americano que frequentem aulas online –, Trump parece ter como objectivo marcar
os últimos meses deste mandato a fazer uso da desculpa da pandemia mundial e a
aproveitar-se dos medos do cidadão americano médio para fazer uma guerra de
ódio contra esse grande monstro da «esquerda radical».
Falar
da esquerda – e ser de esquerda – na América significa navegar uma série de
barreiras conceptuais, semânticas e de sensibilidades culturais; é necessário,
acima de tudo, reconhecer os mitos em que a América foi construída e que estão
tão intrinsecamente associados ao que significa crescer e viver neste país, e
compreender que ser left-wing neste país tão vasto e imenso, e com
uma paisagem política e social tão variada, é caminhar uma linha ténue entre
valores comuns e desejos individuais.
Quando
me mudei para a Califórnia – admitidamente o estado mais «à esquerda» da
América (pelo menos na sua zona litoral, no eixo entre a baía de São Francisco
e Los Angeles), influenciada pelas lendas das grandes revoltas e movimentos
civis e movimentos contra-cultura, não imaginava a dificuldade que seria ter
conversas sobre o que é ser de esquerda, mesmo com aqueles que tanto se
definiam como «de esquerda».
Primeiro,
importa elucidar sobre uma questão semântica: ser «liberal» na América do
século XX é ser de esquerda – os ditos liberals, essa categoria política a
que os media se referem continuamente, seja em tom de defesa ou em
tom jocoso, acusativo (caso estejamos a falar da Fox News), representam
uma abrangente categoria de gente que, em palavras simples, defende políticas
sociais progressistas: um sistema de saúde público, investimento na educação,
políticas de imigração menos hostis, preocupações ambientais, entre vários
outros; medidas que, para todos efeitos, consideraríamos talvez na Europa como
uma esquerda dita «ligeira», púdica e sem grandes afiliações teóricas.
Falar
de socialismo, ainda que muitas vezes em surdina, é como dizer uma palavra
feia, carregada de um legado de medo e ódio. Bernie Sanders, senador e
ex-candidato à presidência dos Estados Unidos na última eleição e na
eleição deste ano, foi capaz de, despudoradamente, definir-se como socialista e
trazer esta ideia de «socialismo» finalmente ao debate público americano; isto
fê-lo, talvez, perder uma parte significativa de eleitorado pouco elucidado, e
a sua dolorosa derrota face a Joe Biden como candidato de oposição nas próximas
eleições relembrou-nos de que a América nunca gostou de «radicais».
Medidas
sociais progressistas à parte, os conceitos facilmente se misturam e as ideologias
tornam-se difíceis de navegar. Há valores que entram em confronto directo.
Circulei
primeiro pela Academia americana e depois pelo meio desta left-wing profissional
e educada com uma certeza quase inabalável de que me encontrava em terreno
fértil, disponível para discussões abertas sobre o que é ser esquerda e como
podemos fortalecer a esquerda na América.
Em
várias conversas que fui tendo ao longo dos anos, a maior parte delas com
pessoas da minha faixa etária – jovens adultos nos seus 20 e 30 anos,
auto-designados liberals –, ouvia confissões cansadas de gente que
sonhava com um país mais aberto, mais progressista e que melhor tratasse os
seus cidadãos. As medidas por que suspiravam, como as que mencionei no
parágrafo anterior, não eram particularmente «radicais», nem tão pouco
impossíveis, mas sim semelhantes a tantas outras políticas «socialistas» europeias
que eu tanto tomava como garantidas.
Por
outro lado, deparei-me várias vezes com a outra face da moeda: que muitos
dentro desta categoria – e especialmente na região de Silicon Valley – se
auto-definiam como liberals e que sonhavam com medidas de esquerda,
mas sem quererem «pagar» por elas, e recusavam a ideia de pagar tantos (ou
mais) impostos, ou de depender tão significativamente de impostos: os chamados
«socially liberal, but fiscally conservative» (em português: «socialmente
liberal, mas conservador em termos fiscais»).
Tentar
explicar-lhes que a maneira como se financiam serviços públicos, como a saúde e
a educação, era, acima de tudo, através de impostos era por vezes um desafio.
Seja por uma descrença generalizada na capacidade do governo americano saber
gerir o dinheiro público, ou pelo sistema fiscal americano e o pagamento de
impostos ser um absolutamente pesadelo, os sonhos de esquerda de muitos
embatiam com força na cruel realidade de que para atingir bens colectivos é
preciso esforços colectivos.
Não
pretendo generalizar que esta questão de descrença nos impostos sejam muito
comuns; creio, acima de tudo, que são um símbolo de um dos grandes problemas
que a esquerda americana várias vezes tem de entrentar.
Creio
que é aqui que reside, talvez, o cerne do grande desafio da esquerda americana,
aquilo que a tem levado a falhar vezes e vezes sem conta, a razão pelo qual me
parece improvável, ou impossível, levar um presidente abertamente
«socialist ao poder: o individualismo extremo que caracteriza a sociedade
americana.
A
crença cega na ideia de mobilidade social. A ideia do self-made man,
que faz pela sua vida e não quer ajudar os outros porque chegou onde chegou
pelo seu próprio trabalho. Ideias que, noutros países, a esquerda repele
– ou tentar repelir. E crescer, viver entre estes mitos é um desafio por
si só.
Trump
encerra o seu discurso de 4 de Julho com uma acusação: «Ao longo dos tempos,
sempre houve quem esteve disposto a mentir sobre o passado para ganhar poder no
presente. Aqueles que mentem sobre a nossa História, aqueles que querem que
tenhamos vergonha de quem somos, não estão interessados em justiça ou em cura. O objectivo deles é
a demolição.»
Não
deixa de ser irónico que Trump se preocupe com esta «esquerda» cujo único
objectivo é a destruição quando, depois de três anos e meio de um mandato
durante o qual foram feitos tantos esforços – muitos com sucesso – para demolir
importantes medidas sociais conquistadas ao longo de décadas, ou mesmo séculos,
de luta.
Para
Trump e para o conservadorismo americano, a esquerda há-de ser sempre o
inimigo. Que dizer então das tentativas contínuas da administração actual de
tentar silenciar a história da esquerda deste país, e destas tentativas
contínuas de silenciar vozes dissonantes?
Se
ainda existe esperança, a pouca que talvez exista, ela reside nesta nova
geração de jovens, que, embora a braços com os seus demónios e dúvidas
individuais, aprendem hoje sobre a esquerda e, a cada dia que passa, se
orgulham cada vez mais da orientação política, e cada vez mais a defendem.
Se,
por um lado, o individualismo faz parte da cultura americana, por outro, vejo
nos movimentos sociais recentes uma generosidade que enche o coração e uma fome
de justiça aquece a alma, e dá esperança pelo futuro.
A
«esquerda radical» que tanto amedronta Trump – não dizem que os rufias só
são rufias por não saberem lidar com as suas inseguranças? – está nas mãos dos
jovens, e eles não vão a lado nenhum.
*Cineasta
e editora de vídeo
Imagem:
Donald Trump CréditosJim Lo Scalzo / EPA
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