quarta-feira, 15 de julho de 2020

Quem tem medo da "esquerda radical"?


Falar da esquerda – e ser de esquerda – na América significa navegar uma série de barreiras conceptuais, semânticas e de sensibilidades culturais. Ser abertamente de esquerda não é tarefa simples.

Inês Pedrosa e Melo | AbrilAbril | opinião

Para se falar da esquerda nos Estados Unidos é preciso reconhecer o «elefante na sala»: entre movimentos pelos direitos civis, a contracultura hippie, o labor movement e os sindicatos e uma forte tradição de subversão e luta contra o sistema.

A história da esquerda na América é uma história rica e faz tão parte da cultura americana quanto o estereotipado conservadorismo e religiosidade absurda americanos que a Europa tanto fetichiza. Contudo, ser abertamente de esquerda – e defender abertamente a esquerda – na América não é tarefa simples.

Nas comemorações do feriado de 4 de Julho nos Estados Unidos, dia da Independência e quiçá um dos feriados mais amados pela população americana – um povo criado num amor cego, irracional e patrioticamente absurdo pela sua nação –, o presidente Trump faz uma declaração de quase-guerra àquele que ele chama a «esquerda radical».

Nas suas próprias palavras: «Estamos agora no processo de derrotar a esquerda radical: os marxistas, os anarquistas, os agitadores, os saqueadores e todos aqueles que, em muitas instâncias, não sabem o que estão a fazer. (...) Nunca permitiremos que uma multidão em fúria destrua as nossas estátuas, apague a nossa História, endoutrine as nossas crianças ou espezinhe as nossas liberdades.» 


Nos últimos dias, e entre várias declarações admitidamente absurdas – como, por exemplo, a acusação absurda de Trump ao candidato à presidência Joe Biden de que este é «extrema esquerda» – e medidas progressivamente mais destrutivas – entre as quais a limitação de acesso a métodos contraceptivos ou a ordem de deportação de todos os estudantes internacionais em território americano que frequentem aulas online –, Trump parece ter como objectivo marcar os últimos meses deste mandato a fazer uso da desculpa da pandemia mundial e a aproveitar-se dos medos do cidadão americano médio para fazer uma guerra de ódio contra esse grande monstro da «esquerda radical».

Falar da esquerda – e ser de esquerda – na América significa navegar uma série de barreiras conceptuais, semânticas e de sensibilidades culturais; é necessário, acima de tudo, reconhecer os mitos em que a América foi construída e que estão tão intrinsecamente associados ao que significa crescer e viver neste país, e compreender que ser left-wing neste país tão vasto e imenso, e com uma paisagem política e social tão variada, é caminhar uma linha ténue entre valores comuns e desejos individuais.

Quando me mudei para a Califórnia – admitidamente o estado mais «à esquerda» da América (pelo menos na sua zona litoral, no eixo entre a baía de São Francisco e Los Angeles), influenciada pelas lendas das grandes revoltas e movimentos civis e movimentos contra-cultura, não imaginava a dificuldade que seria ter conversas sobre o que é ser de esquerda, mesmo com aqueles que tanto se definiam como «de esquerda».

Primeiro, importa elucidar sobre uma questão semântica: ser «liberal» na América do século XX é ser de esquerda – os ditos liberals, essa categoria política a que os media se referem continuamente, seja em tom de defesa ou em tom jocoso, acusativo (caso estejamos a falar da Fox News), representam uma abrangente categoria de gente que, em palavras simples, defende políticas sociais progressistas: um sistema de saúde público, investimento na educação, políticas de imigração menos hostis, preocupações ambientais, entre vários outros; medidas que, para todos efeitos, consideraríamos talvez na Europa como uma esquerda dita «ligeira», púdica e sem grandes afiliações teóricas.

Falar de socialismo, ainda que muitas vezes em surdina, é como dizer uma palavra feia, carregada de um legado de medo e ódio. Bernie Sanders, senador e ex-candidato à presidência dos Estados Unidos na última eleição e na eleição deste ano, foi capaz de, despudoradamente, definir-se como socialista e trazer esta ideia de «socialismo» finalmente ao debate público americano; isto fê-lo, talvez, perder uma parte significativa de eleitorado pouco elucidado, e a sua dolorosa derrota face a Joe Biden como candidato de oposição nas próximas eleições relembrou-nos de que a América nunca gostou de «radicais».

Medidas sociais progressistas à parte, os conceitos facilmente se misturam e as ideologias tornam-se difíceis de navegar. Há valores que entram em confronto directo.

Circulei primeiro pela Academia americana e depois pelo meio desta left-wing profissional e educada com uma certeza quase inabalável de que me encontrava em terreno fértil, disponível para discussões abertas sobre o que é ser esquerda e como podemos fortalecer a esquerda na América.

Em várias conversas que fui tendo ao longo dos anos, a maior parte delas com pessoas da minha faixa etária – jovens adultos nos seus 20 e 30 anos, auto-designados liberals –, ouvia confissões cansadas de gente que sonhava com um país mais aberto, mais progressista e que melhor tratasse os seus cidadãos. As medidas por que suspiravam, como as que mencionei no parágrafo anterior, não eram particularmente «radicais», nem tão pouco impossíveis, mas sim semelhantes a tantas outras políticas «socialistas» europeias que eu tanto tomava como garantidas.

Por outro lado, deparei-me várias vezes com a outra face da moeda: que muitos dentro desta categoria – e especialmente na região de Silicon Valley – se auto-definiam como liberals e que sonhavam com medidas de esquerda, mas sem quererem «pagar» por elas, e recusavam a ideia de pagar tantos (ou mais) impostos, ou de depender tão significativamente de impostos: os chamados «socially liberal, but fiscally conservative» (em português: «socialmente liberal, mas conservador em termos fiscais»).

Tentar explicar-lhes que a maneira como se financiam serviços públicos, como a saúde e a educação, era, acima de tudo, através de impostos era por vezes um desafio. Seja por uma descrença generalizada na capacidade do governo americano saber gerir o dinheiro público, ou pelo sistema fiscal americano e o pagamento de impostos ser um absolutamente pesadelo, os sonhos de esquerda de muitos embatiam com força na cruel realidade de que para atingir bens colectivos é preciso esforços colectivos.

Não pretendo generalizar que esta questão de descrença nos impostos sejam muito comuns; creio, acima de tudo, que são um símbolo de um dos grandes problemas que a esquerda americana várias vezes tem de entrentar.

Creio que é aqui que reside, talvez, o cerne do grande desafio da esquerda americana, aquilo que a tem levado a falhar vezes e vezes sem conta, a razão pelo qual me parece improvável, ou impossível, levar um presidente abertamente «socialist ao poder: o individualismo extremo que caracteriza a sociedade americana.

A crença cega na ideia de mobilidade social. A ideia do self-made man, que faz pela sua vida e não quer ajudar os outros porque chegou onde chegou pelo seu próprio trabalho. Ideias que, noutros países, a esquerda repele – ou tentar repelir. E crescer, viver entre estes mitos é um desafio por si só.

Trump encerra o seu discurso de 4 de Julho com uma acusação: «Ao longo dos tempos, sempre houve quem esteve disposto a mentir sobre o passado para ganhar poder no presente. Aqueles que mentem sobre a nossa História, aqueles que querem que tenhamos vergonha de quem somos, não estão interessados em justiça ou em cura. O objectivo deles é a demolição.» 

Não deixa de ser irónico que Trump se preocupe com esta «esquerda» cujo único objectivo é a destruição quando, depois de três anos e meio de um mandato durante o qual foram feitos tantos esforços – muitos com sucesso – para demolir importantes medidas sociais conquistadas ao longo de décadas, ou mesmo séculos, de luta.

Para Trump e para o conservadorismo americano, a esquerda há-de ser sempre o inimigo. Que dizer então das tentativas contínuas da administração actual de tentar silenciar a história da esquerda deste país, e destas tentativas contínuas de silenciar vozes dissonantes?

Se ainda existe esperança, a pouca que talvez exista, ela reside nesta nova geração de jovens, que, embora a braços com os seus demónios e dúvidas individuais, aprendem hoje sobre a esquerda e, a cada dia que passa, se orgulham cada vez mais da orientação política, e cada vez mais a defendem.

Se, por um lado, o individualismo faz parte da cultura americana, por outro, vejo nos movimentos sociais recentes uma generosidade que enche o coração e uma fome de justiça aquece a alma, e dá esperança pelo futuro.

A «esquerda radical» que tanto amedronta Trump – não dizem que os rufias só são rufias por não saberem lidar com as suas inseguranças? – está nas mãos dos jovens, e eles não vão a lado nenhum.

*Cineasta e editora de vídeo

Imagem: Donald Trump CréditosJim Lo Scalzo / EPA

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