Por seus serviços como jovem rei, Juan Carlos teria direito a um lugar de honra na história. Mas, depois de uma série de escândalos, sua ida ao exílio deve ser vista como uma fuga da Justiça, opina Gabriel González.
Eu
admito: Juan Carlos era meu herói. Mas isso foi há muito tempo. Eu tinha 17
anos na época, morava na Alemanha e começava a me interessar por política
quando o então jovem rei apareceu nas telas de televisão. Foi em 23 de
fevereiro de 1981, quando parte das Forças Armadas espanholas e da polícia
tentaram um golpe contra a ainda jovem democracia. Tanques percorriam as ruas,
o Parlamento foi ocupado por golpistas, o governo não conseguiu reagir.
Então,
aquele jovem rei, que até então todos haviam subestimado, entrava na frente de
uma câmera dentro do uniforme de comandante em chefe das Forças Armadas
espanholas e ordenava que os soldados retornassem imediatamente a seus
quartéis. A tentativa de golpe entrava em colapso já durante a madrugada.
Naquela época, ele salvara a democracia espanhola.
Com
o fim da Guerra Fria e a queda da Cortina de Ferro, a questão de como mudar
pacificamente e ordenadamente de um sistema autoritário para uma democracia
também se colocou em muitos países do leste e do sudeste da Europa. Naquela
época, muitos olhos estavam voltados para Madri: a Espanha era vista como um
modelo de mudança bem-sucedida, e Juan Carlos era a figura central dessa
mudança.
Por
que estou listando todos os antigos atos heróicos de Juan Carlos? Porque eles
tendem a desaparecer em segundo plano, tendo em vista os eventos atuais e as
más condutas reais. E porque é precisamente a partir da discrepância entre o
passado glorioso e a queda por culpa própria que se torna reconhecível a
extensão do lado trágico dessa ida ao exílio.
Como
alguém que começou sua carreira de monarca de maneira tão brilhante, como jovem
e corajoso chefe de Estado, formador e defensor da democracia espanhola, pôde
sofrer uma queda tão profunda ao longo dos anos? "Humano, demasiado
humano", talvez dissesse Nietzsche. "Bom material para a minha
próxima tragédia real", Shakespeare provavelmente teria murmurado.
Com
a partida
inglória de Juan Carlos, que pode e deve ser vista como uma fuga da Justiça
espanhola, os críticos da monarquia naturalmente ganham novo impulso. Isso é
normal e é até bom que assim seja: nenhum rei pode estar acima da lei! Aliás,
os presidentes dos EUA também não – mas isso é outra história. Juan Carlos
deveria, portanto, responder e se explicar diante de um tribunal na Espanha.
Isso deveria ser tido como óbvio em uma monarquia constitucional moderna.
Em
algum momento, Juan Carlos começou a agir como se ninguém pudesse atingi-lo e
tudo lhe fosse permitido: dar bronca em presidentes da América Latina
(Hugo Chávez, 2007), fazer safáris na África, incluindo fotos ao lado de
elefantes abatidos por sua majestade (2012), uma série de escapadas sexuais,
que sua mulher, rainha Sofia, suportou estoicamente. E agora o atual caso de
corrupção em que ele supostamente está envolvido.
Juan
Carlos foi se tornando uma figura cada vez mais triste. Exatamente como o personagem
principal da obra de Miguel Cervantes, alguém cuja melhor época ficou no
passado distante e que só chama a atenção por vexames. Já ultrapassado por
um mundo que ele não entendia mais e cujas demandas em transformação numa
monarquia (caso alguém ainda queira alguma) ele não conseguia ou queria
cumprir.
Em uma de suas últimas fotos tiradas na Espanha, Juan Carlos está triste e abandonado no banco do carona de seu carro. Seus olhos fixos no vazio. Será que ele reconhece que perdeu seu lugar de honra nos livros de história? E que ele mesmo é o culpado? Sim, admito que sinto pena dele de alguma forma. Mas sua queda foi devida a seus próprios erros. Para mim, pessoalmente, permanece a impressão triste: heróis idosos quase nunca fazem uma boa figura.
Gabriel González | Deutsche Welle | opinião