Empresas como a Nestlé e a Coca-Cola engarrafam água de fontes públicas – ou mesmo da torneira – e vendem-na como “limpa” ou “purificada”. Um caso de privatização encoberta que gera bilhões e se nutre do consumismo.
JP Sottile* | Truthout*
O Departamento de Saúde e Serviços Humanos do Michigan, nos EUA, alertou recentemente(link is external) a população de Benton Harbor – cidade do sudoeste do estado predominantemente negra – para parar de beber, cozinhar ou escovar os dentes com água da torneira. “Por excesso de precaução”, as autoridades estaduais recomendaram o uso de água engarrafada para evitar a contaminação tóxica do chumbo que flui pelo sistema de água da cidade e, em última instância, pelas casas e corpos dos moradores.
O aviso, junto com 20.000 caixas de água engarrafada, veio aproximadamente três anos(link is external) depois dos primeiros testes revelarem níveis de chumbo além do nível de ação da Agência de Proteção Ambiental, de 15 partes por bilhão (ppb). O “nível de ação” é o limite legal que aciona a ação regulatória. Na verdade, pouco foi feito durante o período em que a água potável da cidade “deixou de atingir, por seis medições consecutivas, os padrões de amostragem nos últimos três anos(link is external)” após o primeiro teste. Tudo isto aconteceu três anos depois do Michigan ter acrescentado uma “ Regra de chumbo e cobre(link is external) ” à Lei de Água Potável Segura de Michigan em 2018.
Esta regra exigia a “remoção de
todas as linhas de serviço de chumbo no Michigan” e “a redução do padrão de 15
ppb” para “12 ppb em 1 de janeiro de
Infelizmente para os cerca de
10.000 residentes de Benton Harbor, foi só em 30 de setembro deste ano, uma
semana antes do aviso oficial, que o MDHS finalmente começou a “distribuir
caixas de água engarrafada para todos os habitantes
Funcionários do estado e
voluntários, desde então, despejaram caixa após caixa de água engarrafada “grátis(link is external)” numa cidade cada vez mais furiosa(link is external). Alguns moradores esperaram mais
de uma hora e meia(link is external) para ter acesso à água
potável que deveria estar prontamente disponível em suas casas. Mas, assim como
a história infame da contaminação por chumbo na cidade de Flint, localizada
Chumbo e Ironia
A ironia não pára por aí, já que grande parte da água engarrafada que bebemos é apenas água da torneira embalada. Um estudo(link is external) de 2018 da Food & Water Watch descobriu que as empresas privadas retiram 64% da sua água engarrafada de fontes municipais de água canalizada. Se envolver filtragem, como no caso da marca Dasani, da Coca-Cola (US$ 1,06 mil milhões(link is external) em vendas de 2020), ou da Aquafina, da Pepsi ( US $ 1,06 mil milhões(link is external) em vendas de 2020), o “processo remove minerais benéficos como cálcio e magnésio”. Isso, conforme afirmou Dan Heil, professor de Fisiologia do Exercício da Universidade de Montana, ao Los Angeles Times, embora “não haja sinais de que a água ‘pura’ seja mais saudável ou melhor para o corpo do que a água da torneira com minerais naturais”.
Apesar disso, a vice-presidente de comunicações da International Bottled Water Association(link is external), Jill Culora, garantiu(link is external) à revista do setor da alimentação The Shelby Report(link is external) que “a preferência do consumidor por hidratação saudável é realmente uma boa notícia para a saúde pública”. Uma análise de mercado de janeiro de 2021(link is external) feita pela Grandview Research vê “o aumento da consciência do consumidor em relação aos benefícios para a saúde do consumo de água engarrafada”, levando ao “crescimento do mercado durante o período de previsão” de 2021-2028. O relatório otimista também observa que “a água engarrafada em vez da água comum… parece ter atingido um ponto sensível para os compradores preocupados com a saúde”.
De qualquer forma, a ironia de que cidadãos “conscientes sobre Saúde” estejam cada vez mais dependentes de microplásticos contaminados(link is external), e garrafas químico-lixiviadas(link is external) não foi propriamente assimilada numa nação que luta com dificuldades para substituir uma decadente infraestrutura de água de cerca de 12 milhões(link is external) de tubos de chumbo que distribuem água potencialmente envenenada a perto de 22 milhões(link is external) de pessoas.
Enquanto isso, empresas privadas invadem fontes de água públicas ou simplesmente filtram a água da torneira que os cidadãos muitas vezes(link is external) se recusam a beber, se não for embalada em plástico produzido petroquimicamente(link is external) e vendido por até 2.000 vezes(link is external) o preço da água das torneiras.
Colheita Amarga da Nestlé
Em 2017, o estado de Michigan
acabou com um subsídio que pagava cerca de dois terços das contas de água dos
residentes da cidade de Flint, de acordo com um morador(link is external) que falou
com Steve Carmody da Michigan Public Radio, “por causa de água que não atingia
os padrões federais de qualidade que datam de
Nesse ano, as atividades da Nestlé com água engarrafada arrecadaram US$7,7 mil milhões em todo o mundo com, noticiava o Bloomberg(link is external), “mais de 343 milhões de dólares deste total a serem arrecadados a partir do Michigan, onde a empresa engarrafa a Ice Mountain Natural Spring Water and Pure Life, a sua marca de água purificada. Surpreendentemente, a Nestlé apenas precisava de pagar(link is external) uma taxa nominal anual burocrática de 200 dólares por cada uma das suas fábricas de engarrafamento para garantir os direitos de extrair, embalar, vender e exportar a água do Michigan. Assim, enquanto o povo de Flint e, sabemos agora, o povo de Benton Harbor(link is external) e Hamtramck(link is external) e Wayne(link is external), e talvez(link is external) outros ainda desconhecidos, tinham graus variados de água contaminada com chumbo dentro das suas casas, a Nestlé não pagava quase nada para extrair “milhões de litros(link is external)” e vendê-los com milhões de dólares de lucro. Isto não era apenas uma privatização de facto de um recurso público vital mas o povo do Michigan estava basicamente a subsidiar as operações da Nestlé com ouro líquido barato. Um modelo lucrativo que a Nestlé tem sido replicado pelos Estados Unidos.
Pureza Mítica
A Floresta Nacional de San
Bernardino, (link is external)na Califórnia, está localizada cerca de
Porém, a 23 de abril deste ano, o
Conselho de Controlo de Recursos Hídricos do Estado da Califórnia emitiu uma
ordem provisória de cessação de atividade(link is external), alegando que a
Nestlé desvia ilegalmente(link is external) milhões de litros
de água para além da quantia permitida de
Para a sua marca Pure Life(link is external), a Nestlé aproveita, na Califórnia, os sistemas municipais de água de Sacramento(link is external), Livermore(link is external), Pasadena(link is external), Ontário(link is external), Los Angeles(link is external) e Cabazon(link is external). Em Sacramento, a Pure Life e outras empresas de água engarrafada pagam um dólar por três mil litros(link is external) de água do município, o mesmo preço cobrado a residentes e empresas locais. A principal diferença, diz o Sunset(link is external), é que “o lucro não é devolvido à comunidade, pois a maioria das garrafas é exportada”. E, claro, goza de uma boa margem de lucro.
A Pure Life também extraiu 100 milhões de litros por ano da ensolarada cidade de Phoenix, Arizona, até encerrar a sua polémica(link is external) fábrica, após menos de três anos de iniciar a operação. O Sunset argumenta que a prova de que a operação da Pure Life em Sacramento não era benéfica para a cidade utilizando o facto de que os 35 milhões de dólares de investimento(link is external) se traduziram em apenas 15 empregos perdidos(link is external) quando a torneira foi fechada, em 2019.
A ironia numa história cheia de ironias é que tanto a Califórnia(link is external) quanto o Arizona(link is external), e Phoenix em particular(link is external), têm enfrentado secas(link is external) devido às alterações climáticas(link is external) que restringem cada vez mais o fluxo de água para as quintas(link is external) e, no último ano, para cada vez mais residentes(link is external). Com o avanço rápido da crise climática, parece na melhor das hipóteses contraproducente permitir que estas empresas engarrafem água potável e as reembalem em plástico à base de petróleo que está em vias(link is external) de produzir mais emissões do que o petróleo em 2030. Pior ainda: as garrafas plásticas de água têm de ser transportadas através de uma cadeia de abastecimento movida a petróleo para que possam ser compradas por preço premium e levadas às residências pelos consumidores que podiam e deviam ter acesso ao mesmo líquido de forma segura e eficaz nas suas torneiras. O facto de a água pública estar a ser canalizada, embalada e revendida com enorme lucro em regiões com escassez de água é tristemente emblemático de um processo parasitário de privatização que, a longo prazo, parece imprudente e totalmente insustentável.
Tubarões na água
Como a Bloomberg
Businessweek apontou(link is external) em
Mas a Nestlé não está sozinha.
Como a Consumer
Reports observou em 2020(link is external), “uma fábrica de 25 mil
metros quadrados da Coca-Cola… fervilhava com atividade” em Detroit, enquanto
muitas outras empresas foram forçadas a suspender as operações devido às
restrições da Covid-
Sobre Detroit, a Consumer
Reports também descobriu que a Coca-Cola pagou uma média de 0,01 dólares
por cada
Quando a Sunset Magazine investigou
com profundidade o saque(link is external) da água da Califórnia,
encontrou a CG Roxane(link is external), a empresa dona da Crystal
Geyser. Esta ganhou(link is external) 36 milhões de dólares em 2020
despejando 159 milhões de litros de água em garrafas de plástico. A sua água é
parcial de “água de poço e de nascente de Weed”, uma pequena cidade perto
do afetado pela seca(link is external) monte Shasta e de
Olancha, uma cidade perto do aqueduto de Los
Angeles(link is external). Este aqueduto traz água através de
A empresa foi atraída em parte pela fiável(link is external) nascente do Olancha, conhecida por se manter mesmo durante anos de seca. O problema é que também contém naturalmente arsénico. Assim, a Crystal Geyser filtrou-a para atingir os padrões federais de água potável. Durante 15 anos, a empresa armazenou ilegalmente os remanescentes deste processo na “poça de arsénico(link is external)”, colocando(link is external) em perigo “a zona da nascente e a vida selvagem” de acordo com uma investigação(link is external) do Departamento de Justiça. A Crystal Geyser também despejou(link is external) 87.000 litros da sua água tóxica, potencialmente cancerígena, nos esgotos da Califórnia. Como o Sunset claramente escreveu(link is external) “o custo para a empresa foi uma multa de cinco milhões de dólares que não é considerada(link is external) uma ameaça aos seus negócios.
Os arrependimentos da Nestlé
Depois de anos de controvérsias e
batalhas com ativistas locais, a Nestlé S.A. finalmente arrependeu-se e vendeu
a Nestlé Waters North America, incluindo as suas operações de engarrafamento de
água Ice Mountain no Michigan, a um par de fundos de investimentos(link is external) de Nova
Iorque, a One Rock Capital Partners e a Metropoulos & Co. Depois do negócio
de 4,3 mil milhões de dólares, estas mudaram o nome da operação para “Blue Triton
Brands(link is external)” e reduziu a sua taxa de extração de galões por
minuto (gpm) em Michigan para 288 gpm, que fica abaixo do limite regulamentar de monitor(link is external)ização(link is external) estabelecido em resposta a
anos de controvérsia em torno das operações da Nestlé no estado. A Blue Triton,
que agora abrange a supracitada Ice Mountain, junto com a Poland Spring, Deer
Park, Ozarka, Zephyr Hills, Arrowhead, Pure Life e Splash, terão capacidade de extrair
A Nestlé permanece líder mundial em água engarrafada, apesar desta venda, e mantém o seu domínio(link is external) sobre as conhecidas “marcas premium” Perrier, S.Pellegrino e Acqua Panna. O controle da Perrier pela Nestlé parece adequado, já que as marca de saúde e luxo Perrier, no final dos anos 1970, preparou o cenário para a transformação do negócio de água engarrafada numa operação multibilionária.
A Perrier, que tinha feito parte de um “nicho(link is external)” de mercado de águas minerais, passou de três milhões de garrafas em 1975 para cerca de 200 milhões de garrafas às vésperas dos anos 1980. Impulsionada por uma campanha de marketing enfatizando tanto a salubridade quanto o luxo do “pedigree francês e preço premium” da água, como o escritor especialista em alimentação, Robert Moss, detalhou em Serious Eats(link is external), a Perrier capitalizou o “desejo crescente dos baby boomers por estatuto, à medida que a geração se desfazia de suas camisetas tingidas e começava a entrar no mundo corporativo.”
Quando Ronald Reagan foi eleito
em
Não seja ingénuo
Sabia que “Evian” é “ingénuo” [naïve] escrito ao contrário?
Esta foi a piada mais contada
quando a marca Evian(link is external) e a água engarrafada se
tornaram omnipresentes no início dos anos
Talvez a ironia mais cruel de todas seja que quanto mais as populações dependem da água engarrafada, que é basicamente água privatizada, menos urgência política é dada a tornar a bem mais barata água que flui nas nossas torneiras limpa, segura e acessível a todos. Não é por acaso que os norte-americanos consumiram obsessivamente cada vez mais água engarrafada durante a era das marcas de luxo e de consumo conspícuo ou que essa sede tenha coincidido com o início da chamada revolução Reagan e o seu amplo ataque à natureza e eficácia Estado e às suas regulamentações.
Foi uma mudança política significativa baseada na noção neoliberal de que a regulação governamental era inerentemente má, a privatização era inerentemente boa e o Estado sempre deveria ser visto com suspeita e desdém. Trouxe consigo o desprezo pelos investimentos públicos não associados ao complexo militar-industrial. Enquanto empresas como a Nestlé tiraram proveito da onda de desregulamentação da era Reagan, a infraestrutura essencial foi relegada à decadência. Décadas de indiferença ao investimento público levaram ao surgimento da água contaminada com chumbo que, por sua vez, força os cidadãos a confiar na água engarrafada privatizada como a única opção segura.
Talvez por isso, a população de Benton Harbor não tenha vontade de rir(link is external). Esta, assim como os habitantes de muitas outras cidades nos EUA enfrentam hoje um longo e custoso caminho de reparação e reconstrução. Tal como milhões de outros que ainda estão por saber que os canos de água lhes trazem bem mais(link is external) do que apenas água.
O pacote legislativo de infraestruturas(link is external) de
1,2 biliões de dólares, recentemente aprovado nos EUA aloca(link is external) 55 mil milhões para gastos
relacionados com água e 15 mil milhões especificamente para a substituição das
canalizações de chumbo. As estimativas(link is external) para substituir todas
canalizações de chumbo variam entre
De facto, é apenas mais mil milhões do que os 14 mil milhões(link is external) que os norte-americanos gastaram só neste ano em água privatizada que preferem beber de uma garrafa de plástico.
JP Sottile é jornalista, historiador e realizador de documentários.
Artigo originalmente publicado no TruthOut(link is external). Tradução de Antonio Martins para o Outras Palavras(link is external). Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
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