Em jogo no país, mais que a disputa entre esquerda e candidato que flerta com o fascismo: também a capacidade de fazer a velha política se dobrar às ruas – e de superar o deserto neoliberal e história de derrotas, com novos atores políticos
Vladmir Safatle, no El País Brasil |
Peço licença para escrever pela
primeira vez na primeira pessoa do singular, peço desculpas sem saber muito bem
porque esse procedimento se impôs no assunto
Eu nasci no Chile, meses antes do golpe de estado que derrubaria Salvador Allende e implementaria não apenas uma das ditaduras mais sanguinárias em um continente onde nunca faltou sangue correndo nas ruas, mas o primeiro laboratório mundial para um conjunto de políticas econômicas, conhecidas como neoliberalismo, que trariam concentração de renda e morte econômica para populações em todo o globo. Esse modo de gestão social, que se vende como defensor de liberdades e da autonomia individual, começou com golpe de estado, desaparecimento de cadáveres, mãos cortadas e estupro. O que diz algo a respeito de sua verdadeira essência autoritária.
Minha mãe costumava dizer que nos meses em que ela começava a se descobrir como uma jovem mãe de 24 anos, era comum ouvir bombas explodindo e tiros nas ruas. Eram os últimos meses do governo de Salvador Allende. Meu pai, que tinha a mesma idade, havia participado da luta armada contra a ditadura brasileira no grupo de Marighella e havia preferido tentar ajudar, de qualquer forma que fosse, a experiência socialista de Allende a aceitar a proposta de sua família e terminar os estudos na Inglaterra. Impotentes, como escoteiros que observam uma floresta em chamas, eles começavam suas vidas adultas com um filho e uma catástrofe.
O governo Allende era apunhalado por todos lados. Vítima de lockouts financiados por Nixon e seu macabro braço direito Henry Kissinger, depois louvado como “grande estrategista” por ter conseguido um aperto de mão entre seu presidente e Mao-Tse Tung enquanto mandava o povo chileno para um inferno de 25 anos, Allende parecia uma figura trágica grega. Se o Chile desse certo, o único país na história em que um programa marxista de transformação social havia sido implementado pelo voto e respeitando as regras da democracia liberal mostraria uma via irresistível em um momento histórico no qual estudantes e operários lideravam insurreições em vários países centrais do capitalismo global. O Chile era o ponto frágil da Guerra Fria, pois ensaiava um futuro que havia sido negado em várias outras ocasiões. Nele se tentava pela primeira vez um socialismo radical que recusava a via da militarização do processo político.