sábado, 29 de janeiro de 2022

Erraram ao não fechar as escolas em Janeiro, teve consequências de mortes

PORTUGAL

Covid-19. Carmo Gomes: “Não fechar logo as escolas em janeiro de 2021 foi o erro maior. Teve consequências em termos de mortes”

Dois anos depois da chegada do SARS­-CoV-2 à Europa, os níveis sem precedentes de infeção, e também de vacinação, ajudam a ver a luz ao fundo do túnel. Manuel Carmo Gomes, epidemio­logista e um dos homens que desde o início ajudaram o Governo a perceber o que se estava a passar, explica porquê. Admite que nem sempre conseguiu passar a mensagem e que não fechar as escolas no início de janeiro de 2021 teve impacto no número de mortes. Olhando para a frente, deixa um aviso: “O vírus não tem feito outra coisa se não trazer surpresas”

Afinal, quando é que é expectável atingirmos o pico desta quinta vaga?

Será nas próximas semanas, mas não é possível dizer quando. E poderá ser um pico ao qual se segue um planalto ou várias oscilações. Isto deve ocorrer em toda a Europa. A única coisa certa é que seremos varridos por um tsunami de Ómicron que deixará a população com um elevado nível de imunidade natural.

Para cada caso confirmado, quantos passarão sem ser detetados?

O fator de ampliação que usámos até agora é de 1,5, mas é uma estimativa conservadora. Os estudos da África do Sul dizem que há uma percentagem bastante maior de assintomáticos com esta variante. Não me admirava que por cada caso houvesse duas ou três infeções não-detetadas. E é natural que assim seja, já que grande parte de nós já teve contacto com a vacina ou com o vírus. Sendo infetados, ou não temos sintomas ou temos sintomas ligeiros e não valorizamos. De certo modo, é irónico que a evolução do vírus que nos causou esta pandemia seja também o que nos pode fazer sair dela.

Mas pode surgir uma nova variante ainda mais transmissível que a Ómicron? Ou mais severa?

Não me parece óbvio que haja vantagens evolutivas para o SARS-CoV-2 em tornar-se mais patogénico. O mais provável é surgir uma variante capaz de evadir o sistema imunitário, ou seja, contornar as proteções induzidas pela Ómicron. O que não significa que seja mais transmissível. Aliás, surgiram recentemente dois estudos a sugerir que a Ómicron não é mais transmissível do que a Delta. A carga viral no trato respiratório dos infetados por Ómicron não é superior à dos infetados pela variante antecessora nem perdura mais tempo.

Mas chegou a dizer-se que a Ómicron é a mais transmissível até agora.

Quando o vírus original aqui chegou, estimou-se que o seu R0 (número de contágios que cada infetado gerava sem medidas de contenção) andava entre 2,1 e 2,5. A variante Alfa já estava na zona dos 4/5, mas não fugia aos anticorpos já produzidos. A seguir apareceu a Delta, com uma capacidade de transmissão entre 6 e 8, já a um nível muito parecido com a papeira ou a varicela. Mas também esta não fugia muito ao sistema imunitário.

O que explica então esta propagação nunca vista?

A Ómicron adquiriu a capacidade de evadir a nossa imunidade humoral, ou seja, os anticorpos gerados pela vacinação ou por infeção anterior, alargando tremendamente o universo de pessoas que pode infetar, incluindo vacinados e pessoas com infeção anterior. Há outra diferença nesta variante, que é o facto de o tempo de incubação ter encurtado. Na versão original do vírus, o tempo médio entre a infeção e os sintomas andava à volta dos cinco dias e podia ir até 14. Na versão Delta, encurtou para quatro/cinco dias. E agora é de três. Significa que entre o contágio e a capacidade de transmissão, ainda assintomática, ocorrem 24 a 48 horas. Como é que se controla isto? Não dá tempo.

Mas confirma-se que é uma variante menos nociva?

Sim. A Ómicron consegue dispensar a utilização do recetor celular humano ACE-2, o mais usado pelas versões anteriores do vírus para entrar nas células. Ao conseguir alternativas para entrar, isto faz com que o número de células acessíveis ao vírus nas vias nasais e na faringe seja muito superior ao que é acessível, por exemplo, à variante Delta. Mas esta estratégia de entrada também faz com que seja menos patogénica: não causa os mesmos danos nos pulmões ou em outros órgãos internos, por exemplo.

E isso é vantajoso para o vírus?

A nova estratégia do vírus — apostar mais na fuga ao sistema imunitário em vez de aumentar a sua transmissibilidade — faz todo o sentido numa população que está maioritariamente imunizada (por vacinação ou por infeção natural). E é a usada pelos coronavírus respiratórios sazonais que nos causam constipações todos os invernos. Em média, somos reinfetados por estes coronavírus em cada dois a cinco anos porque eles mudam gradualmente, de forma a evadir as nossas proteções imunitárias. Tal e qual como faz o vírus da gripe. É fascinante estar a assistir na primeira fila da plateia a esta evolução.

Por isso referiu que fazia sentido a imunização natural?

Fui mal interpretado. O que disse foi que iremos ser imunizados naturalmente pela Ómicron em 2022. É só uma questão de tempo. Está a acontecer desde o início de janeiro em Portugal, na Europa, na América do Norte. Mas é muito importante continuarmos o reforço da vacina, porque protege da doença grave. O mesmo se aplica para tudo o que possa reforçar o nosso sistema imunitário, como dormir bem e ter uma alimentação saudável. E devemos retardar ao máximo a propagação do vírus continuando a usar máscara, evitando aglomeração de pessoas, etc. Senão haverá uma inundação dos cuidados de saúde primários e levará demasiadas pessoas às urgências, muitas desnecessariamente. Estas medidas não devem, porém, dar-nos a ilusão de que conseguimos parar o tsunami Ómicron.

Não foi prematuro a DGS ter aliviado as regras de isolamento?

Não acho que tenha sido. Qualquer medida tem vantagens e inconvenientes. Eu defendi que as escolas deviam reabrir normalmente para o segundo período. Quando coloco num prato da balança ter os miúdos em casa pelo terceiro ano, com todos os problemas que isso causa, a eles e aos pais, e do outro lado um aumento de casos, que provoca peso nos cuidados de saúde primários e hospitais, apesar de tudo achei que era melhor reabrir as escolas. Mas é um balanço extremamente difícil. Em todos os nossos atos vamos ter de tomar estas decisões, avaliando riscos e vantagens. Por exemplo, quando vamos visitar os nossos familiares a um lar. Neste momento há um risco maior de estarmos infetados sem saber. Mas podemos achar que, tomando as precauções necessárias, é mais vantajoso ir lá visitá-los.

A proteção das vacinas contra a infeção cai poucas semanas após a inoculação. Vamos continuar a tomar mais doses?

Existe uma perda da proteção que se deve à gradual diminuição da concentração de anticorpos no sangue. Contudo, a proteção contra doença grave é assegurada por uma segunda linha de defesa — a chamada imunidade celular (células B e T), e esta não decai com facilidade. Mesmo que sejamos infetados, existe alta probabilidade de não termos doença severa. Vários estudos mostram que o reforço vacinal, além de repor os níveis de anticorpos, melhora ainda mais a imunidade celular. No futuro, poderá ser necessário reforçar de forma muito mais seletiva, em grupos mais vulneráveis, como os idosos ou pessoas com estados de imunossupressão. No fundo, o que se faz com a gripe.

Durante quanto tempo teremos de nos proteger com máscaras, testes, distanciamento físico?

Penso que nos próximos quatro ou cinco meses isto ainda será fundamental para retardar a Ómicron. Se o vírus não trouxer mais más surpresas, penso que depois iremos relaxando estas medidas. Pensemos nos vulgares coronavírus das constipações ou no vírus da gripe como modelo provável para o que se passará no futuro com o SARS-CoV-2. Mas atenção, ele não tem feito outra coisa senão trazer surpresas.

Dizer que estamos a transitar da pandemia para a endemia faz sentido?

Nenhum. Uma doença endémica é uma doença instalada numa determinada área geográfica que pode dar origem a casos em qualquer altura, como é o caso da tuberculose ou da gripe. Por definição, a covid é uma doen­ça endémica desde o dia 2 de março [de 2020] e que ainda não regulou as características epidémicas. Ao contrário da gripe, instalada na comunidade e que origina epidemias no inverno. O que as pessoas querem saber é quando é que a covid se torna previsível e regular, como a gripe.

E quando é que tal deverá acontecer?

Não sabemos ainda o que será um número normal de casos por dia no inverno, por exemplo. É provável que haja novas vagas de infeção, mas não com esta dimensão. É preciso mais tempo para ver como se irá comportar o vírus sem estas medidas de controlo que temos tomado.

Reuniu-se muitas vezes com o Governo. Em algum momento sentiu que não foi ouvido?

Houve situações em que a minha opinião não prevaleceu, mas em momentos de grande incerteza é natural que isso aconteça. A situação mais séria aconteceu em janeiro de 2021. Quando saímos do Natal, tinha chegado a Delta, que originou nova onda, matando 5800 pessoas em janeiro. Na primeira reunião do Infarmed, a 12 desse mês, recomendei fechar tudo, inclusive as escolas. Houve colegas que acharam o contrário. Foi uma discussão difícil. O facto é que tivemos uma subida tremenda de casos e a 22 o Governo decidiu fechar tudo. Acredito que se tivéssemos fechado mais cedo teríamos evitado muitos óbitos.

Foi o maior erro até agora?

Acredito que sim, porque teve consequências em termos de mortes.

Não devia ter havido maior contenção logo no Natal?

Não fui um dos que opinaram que deveríamos impedir o Natal. Receei que, se tomássemos medidas muito rígidas, íamos ter um Natal clandestino, e ainda era pior. O Governo foi muito criticado, mas não acredito em medidas que não são verificáveis e que não colhem junto da nossa tradição.

Foi por causa da decisão das escolas que saiu do Infarmed?

Coincide com esta altura, mas não foi só por causa disso. Eu não estava a conseguir gerir a minha vida, porque estava com o trabalho de aconselhamento direto ao Governo, a comissão técnica de vacinação e as aulas. Não queria abdicar da comissão, porque é uma área em que trabalho há mais de 20 anos, nem podia deixar as aulas, que me pagam o ordenado. Os encontros no Infarmed eram muito exigentes. As reuniões preparatórias com a presença das senhoras ministras eram extremamente desgastantes.

Saiu zangado com alguém?

Ninguém se zangou comigo, eu não me zanguei com ninguém, mas houve pessoas que tomaram posições que me desgostaram muito.

Como passou a ser a sua rotina?

Muito focada na epidemia. O que custou mais ao longo deste tempo foi o excesso de trabalho e as poucas horas de sono. E só foi possível porque o meu trabalho na faculdade foi muito aliviado e estou em final de carreira. Houve o retorno de poder participar, dar opinião e ter acesso a informação, mas não passa disso. Do ponto de vista financeiro, zero.

E disse que foi alvo de ameaças?

Sim, mas nunca físicas. Foi mais intenso na altura das reuniões do Infarmed e quando havia decisões sobre os confinamentos. Depois foi esporádico.

A certa altura, havia uma espécie de confronto entre cientistas de fações diferentes. Isso não gerou ruído?

Sim. Com a Ómicron, houve colegas que acharam que isto era o fim da pandemia, mas eu também fui mal-interpretado. Houve muito ruído sobre se as escolas eram locais de infeção e também sobre a vacinação das crianças. É normal. Não poderia ter sido de outra maneira, porque a pandemia é muito complexa, mexe desde a molécula até à socialização das pessoas, e ninguém tem esse conhecimento todo.

Em 2020 percebeu o que aí vinha?

Em fevereiro, fui chamado pela DGS, com outros colegas, para fazer previsões sobre o número de casos de covid quando o vírus chegasse a Portugal. A China era a única fonte de informação. Mas eles tiveram uma política de controlo que ninguém tinha. Tínhamos a noção de que iria haver uma grande epidemia, mas não da sua extensão geo­gráfica e da sua duração, de maneira nenhuma. Os nossos cálculos subestimaram muito o que iria acontecer.

Isabel Leiria e Raquel Albuquerque | Expresso (site provisório)

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