quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

CONTOS POPULARES ANGOLANOS -- Feridas da Flecha e Golpes das Palavras


Ngéji era um velho que vivia numa floresta, tendo apenas por companhia um regato que cantava dia e noite, feliz pela sua existência. Chegou àquele lugar há tantos anos, que ninguém na região se lembra, nem os mais velhos do que ele. Nas aldeias mais próximas diziam que ele veio das longínquas terras de Mbàka, a mítica pátria do mar. Ninguém se atrevia a chegar perto da sua casa, porque tinha fama de comedor de vidas, um ngánga que atacava pela calada da madrugada, quem tinha a desdita de não cair nas suas graças.

Como ninguém andava nas redondezas, além do regato cantante, Ngéji tinha a companhia de nunces, gulungus  ngungas e da imprevidente kasexi, cabrinha alegre que não via maldade nos caçadores. O velho caçava, cultivava a sua lavra, pensava e nas horas do entardecer fixava os olhos no horizonte até ver o sol partir. O amanhecer já o encontrava desperto, solitário com os seus pensamentos. Não falava com ninguém e ninguém o procurava.

Na aldeia mais próxima de sua casa existia um menino muito corajoso, Semuka, que fazia muitas perguntas sobre aquela casa isolada na margem do regato, mas nunca obteve respostas. Um dia resolveu ir ver aquele lugar misterioso. Quando chegou perto da cubata, encontrou Ngéji a dormitar à sombra de uma njíndu carregada de frutos, que os pássaros picavam avidamente. 

Semuka aproximou-se do velho, tocou-lhe nas mãos e ele abriu lentamente os olhos:

- Meu filho, não tens medo de um ngánga?

O menino disse que não sabia o que era um ngánga e também não tinha medo de estar ali. 

Ngéji mandou o menino sentar-se num tronco a seu lado, deu-lhe um munjíndu docinho e depois começou a falar da sua vida:

- Cheguei a estas terras há muitos anos, vindo do ponto onde a terra acaba e o mar começa. Nesse tempo, o rei precisava de todos os homens para combater os inimigos que vinham de além Cassai. Eu participei na guerra mas fui ferido por uma flecha no peito. Senti imensas dores. Ainda hoje dói, só de falar nisso.

- E quando ficaste bom, o que fizeste? – Perguntou o menino.

- Namorei de amor uma mulher jovem e fiquei na aldeia donde tu vieste. Como eu vinha de muito longe, tinha sempre muita gente a fazer-me companhia no prato. Mas quando ia trabalhar para a tonga, ficava sozinho. Falei aos mais velhos da aldeia a minha verdade e revelei o meu pensamento. Se me acompanhavam à mesa, deviam acompanhar-me no trabalho da lavra. Ninguém gostou do que eu disse, nem a família da minha amada mulher. O meu destino ficou traçado pelos mais velhos da aldeia: O homem que veio de Mbàka fala muito e não quer ser nosso filho.

- E tu o que fizeste? – Perguntou Semuka.

- Tentei provar que se derramei o meu sangue nesta terra, passei a ser filho dela. Mas eles não queriam conhecer a minha verdade e fizeram o que achavam certo. Puseram as mulheres da aldeia a espiar a minha vida e um dia uma disse aos velhos que eu era come vidas, um ngánga. Nesse momento percebi que já ninguém me queria, nem a minha mulher. Por isso vim para aqui e cá estou, acompanhado pelo riacho e pelos bichos que bebem a sua água limpa. Tenho tudo o que preciso, só me falta falar. Por isso a partir de hoje tu és o meu amigo. Quando puderes, vem ver-me.

O menino ficou triste com a história de Ngéji e pediu-lhe que não fosse muito severo nos seus pensamentos com o povo da aldeia. O velho sorriu e disse:

- Kwasa jita tchipema: tchipimatuka. A flecha vara o corpo, mas a calúnia trespassa a alma. Não sou eu que tenho de perdoar ao povo da aldeia. São eles que têm de curar a dor profunda que me destroça a alma. Eu não sou ngánga, sou um filho de Mbàka.

Semuka ficou ali com o eremita conversando de tudo e de nada. Quando partiu, o velho disse-lhe com ternura:

- Lembra ao povo da aldeia que a minha verdade não ofende. Aprendi com os meus antepassados estas palavras sábias: ha kúlia kuxindakénya, ha kulyma kutchina-tchina. No prato todos têm companhia mas na tonga estamos sós.

O menino partiu para a aldeia e o coração de Ngéji continuou a chorar, dilacerado pela calúnia. Mas a partir daquele dia as suas palavras e os seus pensamentos ganharam vida com Semuka, o menino que nasceu para ser corajoso.

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