domingo, 7 de agosto de 2022

UCRÂNIA: AS DÔRES QUE O OCIDENTE NÃO VÊ

Relatos de habitantes do Donbas, a região de maioria russa massacrada por Kiev ao longo de oito anos. Ruínas, bombas repressão à cultura local: o horror normalizado. Porque invasão por Moscovo é esperança de paz para muitos

Loic Ramírez, no El Salto | em Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues

À medida que nossa entrevista avança, a onda de choque desencadeada pelas explosões sacode as janelas. “Não se preocupe, é muito longe”, diz Dimitri Chevchenko. Com um sorriso, ele acrescenta: “E hoje as coisas estão tranquilas”. Nosso interlocutor é o responsável pela gestão administrativa da cidade de Yasinovátaya. Ele é uma espécie de prefeito, embora ele mesmo admita que não foi eleito. “Fui nomeado para o cargo há três anos e já estou contando os dias porque você tem que ter muita sorte para continuar vindo trabalhar aqui”.

#Publicado em português do Brasil

Localizada no leste da Ucrânia, a cidade de Yasinovátaya é certamente um lugar pouco seguro. O município faz parte da República Popular de Donetsk (RPD), uma entidade separatista nascida após o golpe de 2014 em Kiev. Há oito anos, a cidade tem sido um dos territórios mais impactados pelo conflito. “25 mil pessoas viviam aqui antes do Maidan, agora são menos de 10 mil”, diz Dimitri. Naquela época, a ofensiva era liderada pelo exército ucraniano, por meio de sua “operação antiterrorista”, que visava aniquilar o movimento separatista nascido no leste do país. Durante várias semanas de intensos combates, os dois lados disputaram o controle da cidade. Alguns a ocuparam, depois outros a ocuparam, até que no final a bandeira preta, azul e vermelha de Donetsk acabou tremulando. E ficou. No entanto, a guerra nunca terminou. Localizada a poucos quilômetros de distância, nos arredores da cidade de Avdéyevka, a linha de frente tem sido uma zona de troca de tiros ininterrupta. “O nosso povo tem avançado”, acrescenta o dirigente, “a frente está agora a apenas 4 quilômetros, antes estava mais perto”.

Em uma das ruas de Yasinovátaya, dois varredores de rua fazem uma pausa, sentados em um banco. Eles trabalham apesar dos tiros que continuam a ser ouvidos. Em algumas partes há buracos no asfalto, sinal de que aqui também caem mísseis. “O que? O que vocês acham daqui? Oito anos aguentando isso!”, grita uma mulher para nós, saindo de casa. De baixa estatura, cabelos curtos e sorriso educado, a senhora, chamada Lilia, vem para desabafar. “Ninguém nos ajuda! O [Denis] Pushilin [presidente da República Popular de Donetsk] não faz nada! Eu não tenho medo de dizer isso! Ele é incompetente!” Com raiva, ela aponta o dedo para as diferentes fachadas dos prédios ao nosso redor, mostrando as marcas deixadas pelas explosões. “Só queremos paz, espero que essa intervenção russa traga, é a única coisa que queremos!”, conclui Lilia, enxugando as lágrimas.

“A verdade é que a operação russa intensificou o conflito, mas não havia outra opção”, assegura Dimitri. Lançada em 24 de fevereiro de 2022, a invasão russa do território ucraniano — chamada de “operação militar especial” pelo Estado russo — causou uma crise internacional ao mesmo tempo em que provocou um terremoto midiático. Seus objetivos anunciados são vários: “proteger o povo de Donbass do ‘genocídio’”, “desnazificar” e “desmilitarizar” o Estado ucraniano e “executar” aqueles que cometeram crimes contra civis ucranianos e russos. Essa intervenção brutal do Kremlin ocorreu após vários anos de imobilidade diplomática.

Os Acordos de Minsk (assinados em 2014 e 2015), que pretendiam fornecer uma saída política para a guerra, nunca foram implementados e o leste do país continuou a sangrar mortalmente. Atores estrangeiros se intrometeram no conflito, guiados por seus interesses econômicos e geoestratégicos, a OTAN de um lado, e Moscou do outro. Os ingredientes do conflito foram queimando até explodirem. Depois de dar início a uma primeira fase ofensiva em praticamente todo o território da Ucrânia, incluindo a capital, a Rússia passou para uma segunda fase, mais focada no leste e sul do país. A “Batalha de Donbass”, como muitos a chamam, na verdade envolve vários atores locais. Beneficiando-se da chegada do poderoso vizinho russo, as tropas das repúblicas de Donetsk e Lugansk lançaram, simultaneamente, a conquista do que consideram seus territórios “ocupados” pelo inimigo ucraniano.

A batalha de Mariúpol é, sem dúvida, uma das batalhas que mais tem recebido atenção da mídia. Porto e cidade de quase meio milhão de habitantes antes da invasão, localizada no sul da Ucrânia, Mariupol é hoje um campo de ruínas a céu aberto. Em suas ruas e entranhas, enfrentaram-se principalmente membros do (famoso) Regimento Azov e as tropas russas, apoiadas pelas unidades da RPD. Poucas pessoas ainda vivem lá, devido à falta de eletricidade e água encanada. Ao longo das avenidas, os poucos veículos que vemos são de ajuda militar ou humanitária (da Rússia). Acima deles, a letra Z, convertida em símbolo de apoio ao ataque russo. Sua origem é incerta, mas a maioria das fontes sugere que originalmente era uma simples identificação militar de certas unidades que participavam da invasão.

A poucos quilômetros de Mariupol, chegamos à cidade de Volodarskaye. Anteriormente chamado Nikolaskoye, voltou ao seu nome soviético depois de ser tomado por forças separatistas. Durante os eventos de 2014, foi organizado um referendo na cidade para avaliar a possibilidade de adesão à república secessionista de Donetsk, onde também houve uma consulta popular. “Nós mesmos organizamos isso, os habitantes”, diz Valentina Dorojolskaya, uma aposentada que integra o Partido Comunista da Ucrânia. “A votação foi feita nas ruas ou em carros particulares porque o município não autorizou o uso de escolas ou outros prédios como centros de votação”.

Segundo os organizadores, cerca de 8.600 pessoas conseguiram participar da consulta (a região tem mais de 20 mil habitantes) e, dentro desta, a opção de independência ganhou com 6.500 votos a favor. Legítima ou não, a ideia de um referendo não conseguiu reverter o peso do conflito naqueles anos – e a região permaneceu sob a bandeira ucraniana. “Hoje nos sentimos libertados”, diz Vladimir Chebanov, cidadão de Volodorskaye. O homem é um ex-mineiro, 75 anos, bigode preto e olhos azuis. Ele também é membro do Partido Comunista. Como muitas pessoas aqui, ele apoia a “operação especial”. “Depois de 2014, não podíamos comemorar o 9 de maio, não podíamos levantar a bandeira vermelha – lembra Vladimir – também não podíamos sair para protestar”. A partir de 2015, o Partido Comunista da Ucrânia foi proibido de participar das eleições e seus membros foram perseguidos pelos grupos ucranianos mais nacionalistas. Vários cidadãos relatam que durante os oito anos de governo pós-Maidan era obrigatório falar ucraniano em espaços públicos oficiais, nas escolas ou na administração estatal; “mas o russo ainda era falado na rua”.

Ao contrário de Mariupol ou de outras cidades de médio porte da região, Volodorskaye não sofreu combates. A retirada das forças ucranianas foi sem resistência diante do avanço russo e do exército da RPD. O sentimento de pertencimento ao passado soviético em comum certamente facilitou, pelo menos nas gerações mais antigas, a recepção das tropas invasoras. A política de comunicação do Kremlin consistia em ressaltar os paralelos entre a Grande Guerra Patriótica e o conflito atual, assimilando o inimigo ucraniano ao regime de Hitler. A questão dos símbolos é uma parte essencial da identificação e da guerra midiática. Em todos os lugares é possível ver a bandeira da Vitória do Exército Vermelho contra a Alemanha nazista. O vermelho, com foice e martelo, quase sempre acompanha a bandeira da Federação Russa, por mais paradoxal que seja essa união. Mas esse elemento catalisador tem seus limites, principalmente no que diz respeito a uma parcela da juventude que não se sente herdeira desse passado. “Não tenho opinião sobre a guerra, só gosto de passear com meus amigos”, diz Masha, 13 anos, cercada por sua turma. “Você pergunta aos jovens quem é Lênin e eles respondem que é uma avenida”, lamenta Valentina.

Lentamente, a fumaça preta sobe ao céu que cobre os prédios. Ao longe, as sirenes dos bombeiros ressoam. A cidade de Donetsk acaba de ser duramente atingida pela artilharia ucraniana. Como se nada tivesse acontecido, o resto da cidade continua com sua atividade normal. Os ônibus (marshutkas) continuam percorrendo as avenidas enquanto as pessoas vão para o trabalho. “Também não vamos dar a eles o prazer de chorar e de ter medo todos os dias”, diz Katya com um grande sorriso. Moradora de Donetsk, a jovem de 26 anos é militante de esquerda e membro de um clube feminista chamado Aurora, fundado na cidade em 2016. Com sua amiga Svetlana, somos guiados pelo bairro de Kievski, no norte de Donetsk, muito perto das linhas ucranianas. “As pessoas foram embora aos poucos”, comentam caminhando pelas ruas quase vazias. Os dois continuam a viver neste distrito, “para não abandonarem os avós e os pais” que se recusam a sair.

“Para nós, esta guerra começou com Maidan — explica Svetlana — mas as raízes são ainda mais profundas, o nacionalismo ucraniano, historicamente ligado à parte oeste do país, foi se fortalecendo nos últimos anos, especialmente com os eventos de 2004”. Naquele ano, a chamada “Revolução Laranja” abalou a capital ucraniana depois que os resultados das eleições presidenciais apontaram o candidato Viktor Yanukovych, próximo a Moscou, como o vencedor. Milhares de pessoas participaram das manifestações, usando uma fita laranja como símbolo de protesto, denunciando a fraude eleitoral e apoiando o candidato da oposição, Víktor Yúshchenko, defensor da reaproximação com a União Europeia. O resultado foi a anulação das eleições e a convocação de uma nova votação em 26 de dezembro de 2004, que foi vencida pelo senhor Yushchenko.

Considerada um prelúdio dos protestos que foram “Maidan”, a Revolução Laranja também faz parte, por sua vez, de uma série de “revoluções coloridas” no território pós-soviético promovidas pelo governo norte-americano ao longo dos primeiros anos dos anos 2000. O objetivo dessa política desestabilizadora era enfraquecer a Rússia, retirando governos aliados. “A partir deste período, aumentou um discurso discriminatório em relação às pessoas daqui”, diz Svetlana, “uma espécie de donbassofobia”. Ao contrário dos movimentos ultranacionalistas contemporâneos, que alimentaram o antissemitismo acima de tudo, o nacionalismo ucraniano foi construído em torno de outro inimigo: a Rússia. A parte oriental da Ucrânia era então percebida como povoada por “russos” e pessoas que faziam parte de uma espécie de “quinta coluna” traidora.

“O nacionalismo ucraniano nasceu no século 19”, diz Dimitri Yevguenevich enquanto olha para o vidro quebrado em sua janela. A escola número 5 da cidade, localizada em frente à sua casa, foi bombardeada esta manhã, deixando sequelas por toda a rua. Felizmente, não havia crianças dentro, mas três funcionários morreram. “Deixe-me contar uma anedota”, continua este ex-professor de história e cultura da Universidade de Donetsk. “Em 1991, quando ainda vivíamos na URSS, viajei para o oeste da Ucrânia, perto de Leópolis (Lviv). Me perdi e e pedi a um homem que me mostrasse o caminho. Quando lhe disse que vinha de Donetsk, ele respondeu: ‘Ah, um moskal’ (maneira depreciativa de chamar os russos) e me apontou na direção oposta”.

A invasão russa do território ucraniano não pode ser analisada sem levar em conta a divisão anterior da nação ucraniana. Uma grande parte de Donbass já havia se separado de Kiev e acumulava ressentimentos e ódio. Outra parte, embora morando no Estado ucraniano, não se sentia parte dele, sendo até mesmo marginalizada por seu caráter político ou pela cultura a qual pertencia. Tal situação também explica o avanço russo cujas vitórias, na parte oriental, não se devem apenas à sua superioridade militar. Mas, ao mesmo tempo, a intervenção militar russa provavelmente reforçará o nacionalismo ucraniano e a divisão do país. Cria e criará fraturas das quais nascerá o desejo de vingança, com o risco de distanciar cada vez mais a paz de Donbass.

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