quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Com os olhos em Zaporíjia (e a memória em Chernobyl) -- Curto... do Expresso

José Cardoso | Expresso - curto

Eram cinco horas da manhã do dia 26 de abril de 1986 quando o homem que acabou com a União Soviética recebeu um telefonema: tinha havido uma grave explosão numa central nuclear, de consequências ainda desconhecidas.

O resto foi-se sabendo a conta-gotas, nos dias ou semanas seguintes. Na então União Soviética, a televisão levou 18 dias até falar sobre o assunto. E o assunto era a explosão do reator número quatro da central nuclear de Chernobyl, perto da cidade soviética de Pripyat, no território da atual Ucrânia. O acidente libertou para a atmosfera radiações equivalentes a 500 bombas de Hiroshima, com nuvens radioativas a espalhar-se pelo hemisfério norte, desde o centro e norte da Europa até ao Japão.

Demorou um dia e meio até começar a retirada de 49.614 pessoas de um primeiro perímetro em torno da central. Na tiroide de algumas delas foram registadas radiações 37 mil vezes superiores às de um raio X ao tórax. Mais tarde seriam retiradas mais 41.986 pessoas, de uma zona de 30 km à volta da central. No total seriam deslocadas cerca de 200.000 pessoas. Pripyat tornou-se uma cidade fantasma, no centro de uma vasta zona sem vivalma e de acesso interdito.

O Centro Nacional de Investigação Médica de Radiação da Ucrânia calculou em 2018 que o desastre de Chernobyl afetou 5 milhões de cidadãos da antiga União Soviética, incluindo 3 milhões na Ucrânia, que na altura era uma das “repúblicas socialistas” da União Soviética. Na mesma altura, o mesmo organismo estabelecia em 1,8 milhões de ucranianos, incluindo 377.589 crianças, o total de pessoas com o estatuto de vítimas do desastre.

Todos os parágrafos anteriores podem parecer informação despropositada numa newsletter que se pretende de atualidade noticiosa. Mas não o é. Porque é o espectro de Chernobyl que volta a pairar por estes dias sobre a Europa por causa do que está a acontecer noutra central nuclear ucraniana, a de Zaporíjia, ocupada pelas tropas russas. E porque é para Zaporíjia que convergem hoje, quinta-feira, dia 1 de setembro, os olhares de meio mundo.

A central, que já sofreu bombardeamentos, está segura? Há o perigo de acidente nuclear? Depois de várias peripécias e jogos de forças, inspetores da Agência Internacional da Energia Atómica devem entrar finalmente esta quinta-feira nas instalações. E daqui a vários dias revelarão o seu diagnóstico.

O espectro de Chernobyl, esse, continua a pairar. O acidente foi há 36 anos, mas o perigo continua lá. Os restos do reator foram sepultados num gigantesco sarcófago de betão, para conter a dispersão de radiação dos destroços, mas as ruturas e as fugas obrigaram, há apenas cinco anos, a construir uma carapaça ainda maior e mais “blindada”.

A explosão foi há mais de três décadas e meia, mas as radiações nucleares duram muitos milhares de anos. Quanto ao homem que nesse dia atendeu o telefonema às cinco da manhã, chamava-se Mikhail Gorbatchov e morreu ontem.

OUTROS ASSUNTOS

SAÚDE I – Demitida a ministra da Saúde, um dos nomes de que se fala para a substituir é o de Fernando Araújo, presidente do conselho de administração do hospital de São João, no Porto. Algumas das ideias que defende para o Serviço Nacional de Saúde são ESTAS.

SAÚDE II – A grávida Nádia teve pré-eclampsia, esteve 50 horas em trabalho de parto, fez 20 transfusões de sangue e acordou sem útero. Eis o seu testemunho.

CARESTIA DE VIDA I – Está aí a maior subida das rendas dos últimos 30 anos. O Governo diz estar atento às preocupações e as associações dos proprietários vão já avisando que estarão contra medidas que as possam congelar.

CARESTIA DE VIDA II – Continua a dança dos preços dos combustíveis, que esta semana tiveram o maior aumento dos últimos três meses. O Governo prorrogou para o mês que hoje começa as medidas para tentar “limitar os estragos”.

CARESTIA DE VIDA III – No meio do aumento generalizado, e em vários casos galopante, de produtos e serviços, o que podem os cidadãos fazer? É disso que trata o mais recente episódio do podcast Money, Money, Money. Pode ouvi-lo AQUI.

APELO – Do jornalista angolano Hamilton Cruz, apresentador do Jornal da Meia-Noite do canal estatal angolano, que se opôs a “ordens superiores”, se demitiu um dia depois das eleições e agora diz temer pela vida.

PROTESTO – Do sindicato da polícia, que enviou uma carta a todos os presidentes de Câmara que é uma mistura de desabafos, críticas e apelos.

GREVE – Dos funcionários judiciais, hoje e amanhã, pelo que são de esperar atrasos nos tribunais, que reabrem esta quinta-feira depois das férias.

CORTE – Da linha ferroviária da Beira Baixa, entre Castelo Branco e Alcains, por causa dos incêndios. Não se sabe quando é que a circulação será reposta.

REGRAS – Um pouco por todo o mundo aumenta a discussão em torno do Metaverso, o novo mundo da realidade virtual que se cruza com a realidade da Internet. Há quem a apresente como uma revolução maior ainda, mas os desafios dos limites e da regulação são ainda maiores.

FRASES

“Mano, preciso do contacto da Amnistia Internacional, urgente!”.
Hamilton Cruz, apresentador do Jornal da Meia Noite, no principal canal de notícias da televisão estatal angolana, que não acatou ordens superiores e se demitiu, um dia após as eleições, em mensagem ao colaborador do Expresso Nelson Francisco Sul

“Não aceitamos que V. Exas se ofendam e descarreguem em cima dos comandantes”
Sindicato da polícia, em carta enviada aos presidentes de Câmara

“Como comemorar uma independência trazendo o coração de alguém que representa a nação de que o Brasil se separou?”
Eliana Alves Cruz, escritora brasileira, sobre a ida do coração de D. Pedro para o Brasil

"Gorbachev foi um dos principais responsáveis pela destruição da União Soviética e a restauração do capitalismo na Rússia, quando o que se impunha era o aperfeiçoamento do socialismo"
PCP, no comunicado sobre a morte do último líder da União Soviética e responsável pela abertura do país ao mundo

O QUE ANDO A LER

“Com mão segura e lâmina afiada o cirurgião fez um corte no peito do morto. Abriu a pele e a gordura até se deparar com o esterno, um osso longo que recobre o coração e fica preso às costelas. Serrou-o com dificuldade, de cima para baixo, tomando cuidado para não cortar os órgãos internos, e viu o pericárdio, saco branco fibroso que protege o coração. É preciso arrancar deste corpo o coração que já não bate – dizia a si mesmo enquanto abria caminho afastando os pulmões endurecidos pela doença -, mas não se arranca facilmente o coração de um morto, sobretudo se o morto for um rei”.

É assim que começa um livro que a minha camarada Iza de Salles Freaza, antiga correspondente do Expresso no Brasil, publicou em 2008 (por cá no ano seguinte), e que agora ficou mais do que atual por causa da agitação provocada pela inédita exposição pública do coração do rei D. Pedro e posterior envio para o Brasil, para ser o símbolo-mor do bicentenário da independência.

Intitulada precisamente “O coração do rei” (editora Planeta), a obra – para cujo resgate à estante surge agora um pretexto de ouro - retrata a vida apaixonante de D. Pedro, Imperador do Brasil e Rei de Portugal. É certo que por obra perpassam situações, diálogos e até apartes e estados de alma de várias das personagens só passíveis de serem lidos num romance histórico.

Mas não se pense que se trata apenas da imaginação de Iza Salles a funcionar. Não. O livro resulta de uma minuciosa investigação histórica, com base nos relatos dos bastidores da corte feitos por Frei António de Arrábida, que foi tutor, confessor, confidente e conselheiro de Pedro desde que este, ainda infante, começou a ser preparado para reinar, até à morte, em 24 de setembro de 1834, após derrotar o seu irmão Miguel na guerra contra o absolutismo.

“Meu coração é teu, ó Porto”, dissera D. Pedro quando o sentiu a enfraquecer irremediavelmente e chamou mulher e filha para se despedir e manifestar a vontade de entregar o órgão à cidade sem a qual não teria vencido o irmão que lhe usurpara o trono nem teria colocado nele a filha, D. Maria II.

O coração tem lá estado desde então, num vaso de prata, por sua vez dentro de um vaso de cristal, na capela-mor da Igreja da Lapa. Pela primeira vez, foi agora exposto publicamente – e seguiu para o Brasil.

Sendo a história de vida de um “rei-guerreiro” que teve duas pátrias, como lhe chama Iza de Salles Freaza, é também a história – oficial e não oficial – de um certo período da vida de dois países, um dos quais está a celebrar os 200 anos da independência.

Sobre a História de Portugal, do Brasil, e de como uma está umbilicalmente ligada à outra, muito mais há para contar. Um bom contributo é o livro que a Casa das Letras está agora a lançar - “1822 – das Américas portuguesas ao Brasil” -, no qual oito historiadores portugueses e brasileiros se debruçam sobre múltiplos acontecimentos da vida política e social brasileira e portuguesa desde 1800 para explicar a evolução além-Atlântico provocada pela chegada ao Rio de Janeiro, no início de 1808, da família real portuguesa, da corte, e de mais 10 mil pessoas.

Uma evolução que levaria à criação de um Reino Unido com Portugal e Algarves, em 1815, e à independência do Brasil, sete anos depois, a 7 de setembro de 1822. Como diz no início da obra uma das historiadoras, e co-coordenadora do livro, trata-se de “compreender a instalação da corte no Rio de Janeiro, as mudanças na sociabilidade local e, sobretudo, a reconfiguração administrativa da nova capital do império luso compatível com as exigências impostas pela “monarquia carioca”.

Tenha um dia bom e vá andando por AQUI

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