Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
A presidente do Banco Central Europeu (BCE), representação máxima europeia do poder financeiro (independente da Democracia) ralhou forte e, sem dó nem piedade, aumentou a taxa de juro e ameaçou outros aumentos. Empenhada na criação de uma recessão económica, ela não tolera governos que, por vontade própria ou para se manterem no poder, procuram responder a problemas prementes com que os cidadãos se deparam. Para ela, os governos devem conduzir os povos à emulação salvífica pelo sacrifício.
Christine Lagarde não quer "medidas transversais de apoio" às pessoas e à economia. Ela combate tal opção evidenciando as carências dos muito pobres como forma de justificar que os menos pobres e as classes intermédias sejam considerados privilegiados e arredados dos seus direitos. É a cartilha neoliberal na sua dicotomia perversa: a caridade transformada numa máquina de criação de pobreza. É claro que os mais pobres merecem redobrada atenção e proteção. Não em forma de esmolas para tempos de aflição, mas sim com medidas de proteção que lhes garantam cidadania. Riqueza para isso existe, e muita. Os estados dispõem dela ou podem ir buscá-la intervindo nos mecanismos de acumulação de riqueza.
A inflação está a depauperar a esmagadora maioria dos cidadãos. Esse depauperamento é a via mais rápida para a recessão. Ora, numa sociedade democrática há direitos universais, com forte impacto social e económico - como são, por exemplo, o salário justo, as pensões de reforma, a proteção da saúde, o direito à habitação - que devem ser garantidos a todos os cidadãos. O Estado social desaparecerá rapidamente se estes compromissos não forem efetivados. Desaparecendo, não existirá mais a Democracia.
A inflação atual - foi anunciado esta sexta-feira que, em Portugal, o valor em setembro é de 9,3%, face aos 8,9% de agosto - não foi causada pelos salários, nem pelo nível de consumo dos portugueses que hoje já cortam forte em despesas essenciais. A sua origem está nas disfunções das cadeias de produção e de distribuição bem evidentes na pandemia, está na crise energética e de matérias-primas e no belicismo. O grande perigo para os povos é querer-se combater a inflação aumentando o desemprego e empobrecendo os trabalhadores.
No plano nacional, o Governo não pode andar a brincar à construção de compromissos assentes em previsões mais que duvidosas, como vem fazendo por estes dias na Concertação Social. Sejamos verdadeiros: se de imediato não houver atualização dos salários no setor privado e na Função Pública e se, por efeitos de "dinâmicas do mercado", os salários dos portugueses crescerem em média, em 2022, entre 3 e 3,5%, como se prevê, e com a inflação a seguir a trajetória atual, no dia 31 de dezembro os salários de quem trabalha em Portugal valerão menos cerca de 5% do que valiam no passado dia 1 de janeiro. Essa perda não será ocasional, mas sim permanente.
Por outro lado, o indispensável crescimento futuro dos salários implica que se tenham em conta a inflação, a produtividade, bem como ganhos para fazer subir a parte do rendimento que vai para o trabalho.
As especificidades complexas dos tempos que vivemos resolvem-se com realismo, responsabilidade e determinação. É possível uma política salarial justa e contributos dos trabalhadores para tornar as empresas mais produtivas e competitivas se houver ação sindical e negociação coletiva intensa, feita a partir das realidades concretas dos setores e das empresas.
*Investigador e professor universitário
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