A geração actual dos dirigentes europeus, sem qualquer excepção, é a mais acéfala de sempre perante Washington, a ponto de deixar as populações do continente à mercê de uma estratégia aventureirista.
José Goulão* | opinião
Comecemos com algumas citações.
Petro Poroshenko, ex-presidente da Ucrânia (2014-2019): «Nós teremos trabalho, eles não; teremos pensões, eles não, teremos apoio para as pessoas, crianças e pensionistas, eles não; as nossas crianças irão para escolas e jardins de infância, as crianças deles irão para os abrigos».
Discurso em Odessa, Maio de 2015. «Eles» são os habitantes da região ucraniana do Donbass e o quadro traçado «é o que acontecerá quando ganharmos esta guerra», ou seja, a operação de punição e genocídio lançada pelas tropas do regime ucraniano e os seus destacamentos nazis contra a população do Leste do país, de maioria russófona – que provocou pelo menos 14 mil mortos entre 2014 e 2021.
Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia: «Existem heróis indiscutíveis: Stepan Bandera é um herói para certa parte dos ucranianos, o que é uma coisa normal e legal. Ele foi um dos que defenderam a liberdade da Ucrânia».
Stepan Bandera, agora consagrado oficialmente como «herói da Ucrânia», foi o chefe da organização nazi OUN/UPA, constituída segundo o modelo das SS e que colaborou com as tropas invasoras de Hitler nos massacres de milhares de polacos, judeus e resistentes soviéticos; aconteceu em 1941, ano em que o avô da presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, foi um dos oficiais alemães que conduziu essas chacinas na Ucrânia soviética. Bandera igual a liberdade, eis o conceito que o Ocidente apoia desde 2014 na Ucrânia.
Josh Cohen em publicação do Atlantic Council, think tank associado à NATO: «A Ucrânia tem um problema real com a violência de extrema-direita (e não, isto não é uma manchete do RT). Parece coisa de propaganda do Kremlin mas não é».
Entretanto, o presidente dos Estados Unidos da América, Joseph Biden, deslocou-se à Europa para dirigir uma cimeira da NATO, um encontro do G7 e uma reunião do Conselho Europeu. Como faz um imperador para dar ordens aos seus suseranos, disponíveis e prontos para cumprir o que lhes for recomendado
No rescaldo dos encontros teceram-se loas comoventes à «unidade» dentro da NATO e da União Europeia, que «nunca foi tão forte» como neste momento de crise em que é preciso apoiar o regime «democrático» de Zelensky na guerra com a Rússia do «carniceiro Putin», como definiu Biden. A seguir o imperador partiu para a Polónia e, num discurso inflamado, exclamou em relação ao presidente russo: «Pelo amor de Deus, esse homem não pode continuar no poder».
Numa frase que dizem descuidada caíram todas as máscaras, desnudou-se a hipocrisia de «liberais» e «iliberais» – que nesta e muitas outras matérias são unha com carne – desvendou-se o cinismo do Ocidente civilizado. Biden revelou afinal o que todos os seus subordinados pensam mas era suposto não confessar publicamente.
A tournée do imperador
Por um lado, parece não haver qualquer problema com o nazismo na Ucrânia, uma vez que o assunto não foi uma única vez ventilado nas declarações oficiais e nos documentos resultantes das reuniões de Bruxelas e Varsóvia. Pelo contrário, o presidente dos Estados Unidos garantiu que «não há nazismo na Ucrânia porque a Rússia quer matar o judeu Zelensky», argumento anedótico próprio de quem vive num universo de ficção: não parece ser intenção de Moscovo eliminar o presidente ucraniano; e quanto à colaboração de dirigentes que se dizem judeus com o nazismo, Zelensky está longe de ser o primeiro. Menahem Begin, que chegou a primeiro-ministro de Israel, fundou e chefiou o grupo terrorista sionista Irgun, que esteve na base da criação do exército israelita e foi treinado pelas forças armadas de Hitler. A História não costuma ser o forte dos presidentes norte-americanos, principalmente em assuntos tão inconvenientes. No entanto, é bastante conhecida a declaração do ex-primeiro ministro sionista Benjamin Netanyahu, por ser mais recente, segundo a qual Hitler só praticou o massacre dos judeus por sugestão do mufti, o chefe religioso islâmico de Jerusalém.
Por outro lado, a política norte-americana para com a Rússia não foge ao comportamento geral de Washington em relação a todos os governos que divergem do padrão «democrático» único estabelecido, para que assim possa funcionar a «ordem internacional baseada em regras» que se sobrepõe ao Direito Internacional – com a cumplicidade do secretário-geral da ONU, tornada mais evidente a propósito da situação na Ucrânia.
O que Joseph Biden fez na Polónia, perante o incómodo de quem acha que há coisas que são para fazer, não para anunciar em público, foi manifestar o seu objectivo de mudar o governo e o regime em Moscovo tal como os Estados Unidos fizeram recentemente no Brasil, Paraguai, Honduras, Bolívia, Ucrânia e tentam permanentemente concretizar em Cuba, na Venezuela, no Peru, na Nicarágua, no Casaquistão e outras antigas repúblicas soviéticas não sintonizadas com Washington. O aparelho conspirativo de Washington procura há muito promover uma «revolução colorida» em Moscovo para recolocar no Kremlin uma marioneta como foi Boris Ieltsin e a sua corte de «liberais», continuando assim o saque do país e neutralizando-o como rival na corrida gananciosa às riquezas naturais do planeta. Procurando desta maneira eternizar a estratégia unipolar do caminho para o globalismo ao travar a construção de uma nova ordem multipolar. O Ocidente está visivelmente em pânico perante a possibilidade de uma mudança deste tipo.
Os estrategos norte-americanos não previram, contudo, o renascimento na Rússia de uma cultura nacionalista de inspiração czarista e cariz religioso que, convivendo com o neoliberalismo económico – como acontece naturalmente, e por maioria de razão, em governos com vocação autoritária – reage de modo determinado às tentativas de submissão e humilhação. E a estrutura oligárquica do poder, com Vladimir Putin à cabeça, tem sabido explorar esse tradicionalismo russo em termos de propaganda, tornando simultaneamente ridículas as tentativas para identificar a situação actual com os tempos da União Soviética. Putin representa estruturas sociais e de poder que foram derrubadas pelos bolcheviques, daí o seu arreigado anticomunismo e a condenação de Lenin e dos seus companheiros, identificados como estrangeirados que obrigaram a Rússia a sustentar todas as repúblicas integrando a União Soviética, sobretudo a Ucrânia.