domingo, 24 de setembro de 2023

Angola | Salalé e a Fada Mariposa -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Na Kapopa só existiam casas de pau a pique, cobertas a capim. Há medida que entrava dinheiro nasciam os telhados de zinco. Um horror. As chapas começavam a aquecer, mal nascia o sol e nunca mais arrefeciam. O calor fazia nascer pequenas borbulhas rubras no meu corpo de menino. Um dia perguntei à minha Mamã se aquilo era o inferno e ela disse que era o progresso. E explicava que o capim criava bichos terríveis capazes de comer orelhas e narizes das crianças. 

O segundo a aderir ao progresso foi o latoeiro Van-Dúnem, um velho mesmo muito velho. Vivia sozinho com o seu neto, meu Mano João, menino da minha idade. Ele mesmo cortou as chapas à medida e montou o telhado. Depois o senhor Mota também substituiu o capim por chapas de zinco. Pouco gozou a inovação. 

Sua esposa, a Dona Céu, morreu de um dia para o outro. O Velho Tuma disse que foi a biliosa porque os mosquitos andavam a chupar muito sangue de pacaça. A senhora morreu e o marido partiu com os dois filhos, para a Gabela. O meu Tio Vitorino, que quando estava piruca via tão bem de dia como de noite, também trocou o capim por zinco. A Kapopa estava a ficar uma cidade.

O latoeiro fazia candeeiros a pitrol com latas de conservas, baldes, regadores e grandes bacias para tomar banho de caneca. Naquele tempo chamavam artistas aos que transformavam metais, barro ou madeira em utensílios. O Velho Van-Dúnem era mesmo muito velho e vivia sozinho com o seu neto, o Mano João. Fazia peças tão bonitas, que o latoeiro só podia ser senhor de um feitiço muito forte. Convenci-me que era casado com uma fada boa, inspiradora das suas artes. 

Mas onde andava a fada? Em Setembro apareciam mariposas grandes, amareladas e com bolinhas pretas nas asas. A mais bela poisava nos nérios da sebe para sugar o néctar. Aquela era de certeza a fada esposa do Velho Van-Dúnem. Mas porque se escondia de todos? Quando seguia seus voos suaves desaparecia. Amores escondidos.

O Mano João ensinou-me a caçar salalé. A chuva miúda de Setembro amolecia os morros e elas começavam a sair aos magotes. Nós fazíamos-lhes emboscadas. Eram agarradas antes de começarem a voar. Uma lata com água, uma fogueira ao lado coberta com um resto de lata do mestre Van-Dúnem. E uma grande cabaça cheia de malavu sangrado de um pau de bordão, o glorioso champanhe nacional.

Quando a lata ficava cheia de salalé com as asas molhadas, ia para a chapa torrar. Nós comíamos o petisco e bebíamos malavu da cabaça. No final do festim chegava a casa, rindo desalmadamente. Até dançava o calipso. Minha Querida Mãe dizia baixinho ao Papá: - O rapaz tem a cabeça avariada! E se ficar maluquinho? Tinha razão, nasci bastante avariado da cabeça mas aquilo era malavu e alegria de viver. 

O Mano João e eu arranjámos jantes de bicicleta que eram os nossos carros. Marca Janka! Guiávamos os veículos com um pau metido no sulco da câmara-de-ar. Corríamos até à oficina do senhor Gorila e voltávamos à Kapopa a uma velocidade estonteante. 

A biliosa também matou o meu Mano João e nunca mais fui à caça da salalé nos morros da Kapopa. Mas continuei a beber malavu sangrado dos paus de bordão. Dependendo da quantidade, dançava o xaxado, o baião sacudido ou o calipso. 

O meu mano era negro por isso frequentava a escola da Missão com os padres capuchinhos. Eu era burro em aritmética e ele um barra. Ensinou-me os truques todos e por fim já fazíamos corridas para ver quem acabava primeiro as contas de somar, diminuir, multiplicar e dividir. Sabíamos a tabuada de cor e salteada. Não se pode perder um amigo assim. 

O latoeiro Van-Dúnem também morreu. A sua fada devia andar sugando as flores dos nérios, distraiu-se e ele partiu. Até eu parti para o Uíge. Estudar. Nunca mais voltei.

Ontem morreu o repórter Jaime Saint Maurice. Tenho pena que os jovens jornalistas de hoje não conheçam as suas reportagens. Muita pena. Ele começou na fabulosa escola do jornalismo desportivo angolano onde também andaram Aníbal de Melo, Luís Alberto Ferreira, Rebelo Carvalheira e tantos outros. O Jornalismo Angolano ficou muito mais pobre. Os jovens de hoje também. Morreu um grande jornalista angolano. 

Este parte aquele parte e todos, todos, se vão. Na noite de ontem recebi a notícia da morte do médico Mário Pádua. Passou a infância em Benguela, estudou no Liceu Diogo Cão no Lubango, depois no Salvador Correia em Luanda e finalmente foi estudar Medicina para Portugal. Em 1961 foi mobilizado como alferes médico. Regressou a Angola com as tropas enviadas por Salazar, depressa e em força.

Mário Pádua desertou e foi dar assistência médica, na fronteira de Angola com o Congo, aos milhares de refugiados angolanos do Norte que fugiram dos massacres das milícias, depois do 15 de Março de 1961. Eta uma lenda para os rapazes do meu tempo. Um militante comunista. Foi médico nas fileiras do PAIGC e na Argélia. Nas horas vagas escreveu grandes livros. Não percam “Guerra de Angola -  Diário de um Médico em Campanha”,  “No Percurso de Guerras Coloniais”, “A Estrada de Mil Léguas” e “Insurreição - Os anos Dourados do Colonialismo”. 

Um Setembro qualquer volto à Kapopa com a lata meia de água, faço uma fogueira, em cima de três pedras ponho uma chapa para torrar o salalé, que sai em magotes dos morros com o barro amolecido pela chuva miúda. Antes sangro um bom pau de bordão, encho a cabaça e fico ali petiscando e bebendo. Se a mariposa que amigou com o velho latoeiro aparecer e me vir a dançar o calipso vai pensar que estou com a cabeça avariada. Mas não. É só do malavu e alegria de viver. Temos de amar a vida até ao último sopro.

Setembro de sol e morte. Sombras de ferro projectadas pela guerra. No dia 11 deste mês do ano de 1973 foi desencadeado um golpe de estado no Chile para derrubar o governo socialista de Salvador Allende. Dirigiram o golpe oficiais da Marinha e do Exército chileno, com apoio militar e financeiro do governo dos EUA. A CIA preparou a tortura e o morticínio. 

No dia do golpe prenderam o poeta Pablo Neruda, o que escreveu 20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada. Os Versos do Capitão. O Canto Geral. Esteve 11dias preso às ordens dos assassinos da CIA. No dia 23 de Setembro de 1973, há 50 anos,  os esbirros de Pinochet injectaram-lhe uma bactéria que o envenenou. Foi fornecida pelo estado terrorista mais perigoso do mundo. Chama-se Clostridium botulinum. 

Os assassinos da CIA, um ano depois mudaram a kitanda para Angola. Começaram por desencadear um atentado contra Lúcio Lara quando ele presidia a um comício do MPLA no Bairro Popular, no dia 9 de Novembro de 1974. A seguir organizaram uma greve de camionistas que o engenheiro Fernando Falcão e o capitão do MFA Fonseca de Almeida conseguiram desmontar. Os dois pertenciam à Junta Governativa presidida pelo Almirante Rosa Coutinho. 

Depois os oficiais da CIA organizaram e executaram todas as mortandades até ao dia em que a IX Brigada comandada pelo Herói Nacional David Moisés (Ndozi) e a unidade especial Corvos ao Imbondeiro, comandada por Nelson Gaspar,  libertaram o Norte de Angola. E os nazis sul-africanos foram esmagados no Triângulo do Tumpo, Batalha do Cuito Cuanavale. Estão de volta. Pela mão dos que chegaram ao poder às costas dos milhares de angolanos mortos causados pelos EUA, o regime racista de Pretória e seus aliados.

Oiçam Neruda: Antes da escrita e da Imprensa, já existia na Terra a poesia.

E leiam o que diz o Povo ao Presidente João Lourenço pela voz poética de Pablo Neruda: Se pouco a pouco deixas de amar-me deixo de te amar, pouco a pouco!

*Jornalista

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