O PRÍNCIPE ANTISSEMITA E OS SÚBDITOS DO IMPÉRIO IMAGINÁRIO
Queriam invadir o Parlamento, executar os inimigos e instaurar uma monarquia. Os conspiradores de extrema-direita do movimento Reichsbürger, os “Cidadãos do Império”, eram liderados por um aristocrata antissemita. A polícia travou-os com a maior operação de contraterrorismo na história da Alemanha: deteve 25 suspeitos e tem mais 29 sob investigação.
Tiago Carrasco | Setenta e Quatro
Quem visitou em 2019 o World Web Forum, em Zurique, na Suíça, deve ter estranhado a presença no palco de um aristocrata alemão a discursar, num inglês sofrível, sobre as desgraças resultantes do fim da monarquia no seu país. O Príncipe Reuss, Henrique XIII, descendente de uma família nobre da Turíngia (ex-Alemanha de Leste), ofereceu à plateia de entusiastas em inovação um autêntico tratado antissemita: lamentou o poder dos judeus capitalistas, defendeu que os Estados Unidos da América financiaram a I Guerra Mundial por razões económicas e que a atual República Federal Alemã não é um Estado soberano ao ser controlada pelos Aliados. “A I Guerra teve como propósito a explosão da população judaica para criar um país para esta comunidade, tal como planeado por Hitler e pela elite dos EUA”, afirmou.
Embora estas ideias sejam centrais no movimento dos Reichsbürger (“Cidadãos do Império”, em português), um grupo ideologicamente difuso que converge na rejeição da legitimidade da democracia alemã e das suas regras, ninguém fez caso do velho príncipe; o seu discurso foi desaguar no oceano de conspirações do YouTube, sem levantar ondas de suspeição nem espuma de medo. Como é que ele foi orador num encontro de empreendedores? A isso ainda ninguém deu resposta.
Passaram-se quase quatro anos, uma pandemia, uma guerra na Europa. Aqueles que se cruzaram com Henrique XIII na Suíça estavam prestes a reconhecê-lo nas televisões de todo o mundo num contexto completamente diferente.
Pouco antes da aurora do passado dia 7 de dezembro, várias dezenas de polícias, fortemente armados e com dispositivos de visão noturna, cercaram o apartamento de Reuss no 5º andar de um prédio bicentenário no bairro de Westend, em Frankfurt, onde trabalhava como empresário do ramo imobiliário e de vinho. O aristocrata, engenheiro de formação, divorciado de uma filha de um banqueiro iraniano, mantinha a reputação de bon vivant e aficionado de carros desportivos, apesar da amargura crescente com as derrotas em processos legais, com vista à recuperação de terras e propriedades da sua família confiscadas pelo Estado há mais de 70 anos.
Passadas horas de buscas, Henrique XIII, de 71 anos, saiu algemado, máscara cirúrgica no rosto, calças de bombazine, camisa azul e casaco de fazenda. Uma aparência nada expectável para alguém que, pouco depois, seria oficialmente indiciado pelas autoridades como suspeito de comandar uma célula terrorista. “O objetivo do grupo era eliminar a democracia na Alemanha, recorrendo à violência e a meios militares”, anunciou o procurador federal Peter Frank. A ministra do Interior, Nancy Faeser, sublinhou que “as investigações fornecem uma vista para o abismo de uma ameaça terrorista por parte dos Reichsbürger”.
Esse abismo era muito mais profundo do que as ambições pessoais do príncipe. Nessa madrugada, cerca de três mil agentes, muitos deles de operações especiais e de contraterrorismo, “varreram” o país de norte a sul. Conduziram ações em 11 estados diferentes, bem como na estância de ski austríaca de Kitzbühel e em Perugia, Itália. Foi a maior operação contra extremistas da história da polícia criminal alemã (BKP) e resultou na detenção preventiva de 25 pessoas e na sinalização de mais 30, num total de 55 suspeitos de pertença ou colaboração com a célula golpista.
“Foram encontradas armas em mais de 50 dos 150 domicílios revistados”, incluindo pistolas de 9mm, espadas, facas, capacetes militares, óculos de visão noturna e as armas de serviço de dois polícias pertencentes à quadrilha, segundo o Departamento de Proteção da Constituição (BKI). Por causa das conversas interceptadas, os investigadores acreditam que o grupo possa ter armamento mais pesado escondido noutros locais. Foram ainda apreendidos 420 mil euros em dinheiro e “aproximadamente 50 quilos de ouro e outros metais preciosos”.
Além de Henrique XIII, participavam na conspiração, segundo a investigação dos procuradores de Karlsruhe, citada pela revista Der Spiegel, dezenas de pessoas integradas na sociedade e com profissões de relevo: um soldado de elite no ativo, vários antigos elementos do Comando de Forças Especiais (KSK) do exército e um polícia suspenso das suas funções. Constituíam o “braço armado” do gangue disposto a matar “os representantes do sistema vigente”.
O elenco da célula inclui também figuras improváveis, como um piloto, um advogado doutorado, um chef de cozinha, uma cantora lírica, um empresário, um médico e uma juíza que tinha exercido funções de deputada federal pelo partido populista de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha).
A escalada dos Reichsbürger
Apoiantes – 23.000 (17.000 em 2017)
Radicais de extrema-direita – 1250 (1150 em 2020)
Apoiantes com potencial de violência – 2021 (2000 em 2020)
Crimes praticados – 1011 (em 2021, o dobro dos praticados em 2020)
Crimes violentos – 184 (125 em 2020)
Apoiantes armados – 500
Licenças de porte de arma retiradas – 1050, desde 2016