terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A INCRÍVEL HISTÓRIA DO GOLPE FALHADO NA ALEMANHA

O PRÍNCIPE ANTISSEMITA E OS SÚBDITOS DO IMPÉRIO IMAGINÁRIO

Queriam invadir o Parlamento, executar os inimigos e instaurar uma monarquia. Os conspiradores de extrema-direita do movimento Reichsbürger, os “Cidadãos do Império”, eram liderados por um aristocrata antissemita. A polícia travou-os com a maior operação de contraterrorismo na história da Alemanha: deteve 25 suspeitos e tem mais 29 sob investigação.

Tiago Carrasco | Setenta e Quatro

Quem visitou em 2019 o World Web Forum, em Zurique, na Suíça, deve ter estranhado a presença no palco de um aristocrata alemão a discursar, num inglês sofrível, sobre as desgraças resultantes do fim da monarquia no seu país. O Príncipe Reuss, Henrique XIII, descendente de uma família nobre da Turíngia (ex-Alemanha de Leste), ofereceu à plateia de entusiastas em inovação um autêntico tratado antissemita: lamentou o poder dos judeus capitalistas, defendeu que os Estados Unidos da América financiaram a I Guerra Mundial por razões económicas e que a atual República Federal Alemã não é um Estado soberano ao ser controlada pelos Aliados. “A I Guerra teve como propósito a explosão da população judaica para criar um país para esta comunidade, tal como planeado por Hitler e pela elite dos EUA”, afirmou. 

Embora estas ideias sejam centrais no movimento dos Reichsbürger (“Cidadãos do Império”, em português), um grupo ideologicamente difuso que converge na rejeição da legitimidade da democracia alemã e das suas regras, ninguém fez caso do velho príncipe; o seu discurso foi desaguar no oceano de conspirações do YouTube, sem levantar ondas de suspeição nem espuma de medo. Como é que ele foi orador num encontro de empreendedores? A isso ainda ninguém deu resposta. 

Passaram-se quase quatro anos, uma pandemia, uma guerra na Europa. Aqueles que se cruzaram com Henrique XIII na Suíça estavam prestes a reconhecê-lo nas televisões de todo o mundo num contexto completamente diferente.

Pouco antes da aurora do passado dia 7 de dezembro, várias dezenas de polícias, fortemente armados e com dispositivos de visão noturna, cercaram o apartamento de Reuss no 5º andar de um prédio bicentenário no bairro de Westend, em Frankfurt, onde trabalhava como empresário do ramo imobiliário e de vinho. O aristocrata, engenheiro de formação, divorciado de uma filha de um banqueiro iraniano, mantinha a reputação de bon vivant e aficionado de carros desportivos, apesar da amargura crescente com as derrotas em processos legais, com vista à recuperação de terras e propriedades da sua família confiscadas pelo Estado há mais de 70 anos. 

Passadas horas de buscas, Henrique XIII, de 71 anos, saiu algemado, máscara cirúrgica no rosto, calças de bombazine, camisa azul e casaco de fazenda. Uma aparência nada expectável para alguém que, pouco depois, seria oficialmente indiciado pelas autoridades como suspeito de comandar uma célula terrorista. “O objetivo do grupo era eliminar a democracia na Alemanha, recorrendo à violência e a meios militares”, anunciou o procurador federal Peter Frank. A ministra do Interior, Nancy Faeser, sublinhou que “as investigações fornecem uma vista para o abismo de uma ameaça terrorista por parte dos Reichsbürger”.

Esse abismo era muito mais profundo do que as ambições pessoais do príncipe. Nessa madrugada, cerca de três mil agentes, muitos deles de operações especiais e de contraterrorismo, “varreram” o país de norte a sul. Conduziram ações em 11 estados diferentes, bem como na estância de ski austríaca de Kitzbühel e em Perugia, Itália. Foi a maior operação contra extremistas da história da polícia criminal alemã (BKP) e resultou na detenção preventiva de 25 pessoas e na sinalização de mais 30, num total de 55 suspeitos de pertença ou colaboração com a célula golpista. 

“Foram encontradas armas em mais de 50 dos 150 domicílios revistados”, incluindo pistolas de 9mm, espadas, facas, capacetes militares, óculos de visão noturna e as armas de serviço de dois polícias pertencentes à quadrilha, segundo o Departamento de Proteção da Constituição (BKI). Por causa das conversas interceptadas, os investigadores acreditam que o grupo possa ter armamento mais pesado escondido noutros locais. Foram ainda apreendidos 420 mil euros em dinheiro e “aproximadamente 50 quilos de ouro e outros metais preciosos”. 

Além de Henrique XIII, participavam na conspiração, segundo a investigação dos procuradores de Karlsruhe, citada pela revista Der Spiegel, dezenas de pessoas integradas na sociedade e com profissões de relevo: um soldado de elite no ativo, vários antigos elementos do Comando de Forças Especiais (KSK) do exército e um polícia suspenso das suas funções. Constituíam o “braço armado” do gangue disposto a matar “os representantes do sistema vigente”. 

O elenco da célula inclui também figuras improváveis, como um piloto, um advogado doutorado, um chef de cozinha, uma cantora lírica, um empresário, um médico e uma juíza que tinha exercido funções de deputada federal pelo partido populista de extrema-direita AfD (Alternativa para a Alemanha).

A escalada dos Reichsbürger

Apoiantes – 23.000 (17.000 em 2017)

Radicais de extrema-direita – 1250 (1150 em 2020)

Apoiantes com potencial de violência – 2021 (2000 em 2020)

Crimes praticados – 1011 (em 2021, o dobro dos praticados em 2020)

Crimes violentos – 184 (125 em 2020)

Apoiantes armados – 500

Licenças de porte de arma retiradas – 1050, desde 2016 

“As atividades deste grupo não representam uma grande surpresa para nós”, diz ao Setenta e Quatro Lorenz Blumenthaler, porta-voz do Instituto Amadeu António, que se dedica a monitorizar os crimes de extrema-direita na Alemanha. A organização acompanha o desenvolvimento dos “Cidadãos do Império” há duas décadas e já tinha alertado as autoridades para o aumento do número de membros, bem como para a escalada de ações violentas.

“O que realmente nos surpreendeu foi quão seriamente as forças de segurança encararam esta ameaça e como agiram rapidamente para a travar. As operações especiais só atuam quando o risco é iminente. Esperamos que isto represente o início de uma nova abordagem porque a cena Reichsbürger andava a ser desprezada pela polícia e pelo Estado.”. 

Os alemães habituaram-se a olhar para os Reichsbürger como bando de lunáticos inofensivos. Os primeiros “cidadãos soberanos”, como também se intitulam, surgiram com pouca expressão logo após a II Guerra Mundial. Foi, no entanto, na década de 1990, depois da reunificação da Alemanha, que a sua existência começou a ter eco na comunicação social e na sociedade. Muito por responsabilidade de Wolfgang Ebel, funcionário da empresa pública de caminhos-de-ferro no lado ocidental de Berlim, incluído nos despedimentos em massa que a estatal operou por altura da queda do Muro. 

Ebel conduziu vários processos judiciais para garantir a sua subsistência e foi então que se formaram as raízes da sua ideologia imperial. Segundo o próprio, foi informado por espiões dos Aliados, durante as lutas laborais, de que o Estado alemão era inoperante e que tinha sido por eles incumbido de criar uma forma de gestão alternativa. Autoproclamou-se chanceler do governo do Império por ele criado (KRR) e começou a procurar companhia. 

“Para Ebel, a República Federal era uma associação ilegal que servia de cobertura para uma conspiração judaico-maçónica. Consequentemente, os cidadãos do seu império não teriam que pagar impostos ou multas à República Federal. Isso levou a inúmeras disputas legais”, diz ao Setenta e Quatro Jan Rathje, autor de uma investigação sobre o berlinense. “Ele e os seus seguidores enviaram centenas de reclamações sobre a inexistência da República Federal às autoridades. Emitiram ainda sentenças de morte contra funcionários públicos, que consideravam traidores por trabalharem para um Estado que consideravam ilegal”. Vendiam cursos sobre a verdadeira situação jurídica do país e documentos do império, como passaportes e cartas de condução.

Apesar de tido como extremista antissemita, o ex-ferroviário nunca usou a violência como método ou estratégia política. Nas décadas seguintes, apesar dos avisos de radicalização de instituições como a Amadeu António, as entidades competentes pensaram que as dores de cabeça provocadas pelos seus sucessores se limitariam a multas por incumprimento fiscal, conduzir sem carta e a um pequeno número de ameaças vazias. A ligação ao radicalismo de extrema-direita foi absolutamente ignorada. 

O caso mudou de figura em outubro de 2016, quando  no topo da agenda pública esteve a discussão se a Alemanha devia ou não deixar entrar mais refugiados. Em Georgensmünd, perto de Nuremberga, na Baviera, o Reichsbürger Wolfgang Plan, de 50 anos, matou a tiro um dos polícias das forças especiais encarregue de confiscar as armas que guardava no seu domicílio. Feriu outros três. O treinador de artes marciais, posteriormente condenado a prisão perpétua, detinha, legalmente,  31 armas de fogo. 

Birgit Mair, especialista em extrema-direita no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Consultoria, em Nuremberga, não hesita em classificar ao Setenta e Quatro o homicida como perigoso ativista de extrema-direita: “Tinha na sua página de Facebook uma montagem com membros do governo enforcados e uma enorme panóplia de conspirações contra judeus”. O BKI passou a vigiar os Reichsbürger a partir do crime de Georgensmünd. 

Havia então alguma relutância em associar o movimento à extrema-direita, em parte porque os seus elementos não partilham de crenças ideológicas padronizadas.“Há os que se denominam cidadãos soberanos e criam um Estado só para si, os que acreditam que a Alemanha é uma empresa – BRD GmbH – controlada pelas forças aliadas que ocuparam o país no rescaldo da 2ª guerra mundial, ou os que se regem pelas leis e fronteiras do último sistema que consideram legítimo, o império alemão, quer no seu modelo do século XIX ou de 1937”, explica Mair. Movimentos semelhantes existem nos EUA e no Reino Unido, adaptados aos contextos nacionais. 

Hoje, o Departamento de Proteção da Constituição alemã identifica 1250 elementos de extrema-direita entre os Reichsbürger, 5% dos 23 mil militantes em toda a Alemanha. O número tem vindo a crescer: em 2017, o número total de “cidadãos-soberanos” não ultrapassava os 17 mil e os radicais xenófobos eram menos de 800. Em 2021, cometeram 1011 crimes, 184 dos quais violentos, entre eles tiroteios, roubos e resistência à autoridade.

CRONOLOGIA DO ÓDIO

Agosto de 2016 – O reichsbürger Adrian Ursache disparou sobre vários polícias que o tentavam prender em casa, em Reuden, na Saxónia-Anhalt, depois de se ter recusado a cumprir as leis do país e declarado a soberania da sua residência. Ameaçou “matar toda a gente” que tentasse invadir a sua propriedade. Acabou condenado a sete anos de prisão por tentativa de homicídio. 

Outubro de 2016 – Wolfgang Plan assassinou um polícia de 32 anos e feriu outros três, em Georgensmünd, na Baviera, depois de resistir a tiro à tentativa de apreensão das 31 armas que detinha legalmente. Fez ameaças de morte a governantes e partilhou centenas de conspirações contra judeus. Foi condenado a prisão perpétua. 

Maio de 2019 – Um seguidor dos “cidadãos-soberanos”, de 50 anos, foi preso por manter os seus dois filhos menores em cativeiro, numa cave da região francónia de Lichtenfels. O agressor não queria que os filhos fossem expostos à realidade de um Estado que considerava ilegítimo. 

Fevereiro de 2022 – Manfred J., de 62 anos, atropelou uma brigada policial que o mandou parar em Lörrach, Baden-Württemberg. Um dos agentes ficou gravemente ferido. O agressor apresentou-se em tribunal não como alemão, mas como cidadão do Grão-Ducado de Baden. Pela primeira vez, a procuradoria federal decidiu tomar as rédeas de um caso contra um Reichsbürger. Enfrenta agora julgamento por tentativa de homicídio. 

Abril de 2022 – Um “cidadão do império” de Boxberg, Baden-Württemberg, abriu fogo com armas de guerra sobre uma brigada policial com mandato para o deter em casa. Feriu vários agentes e incendiou uma casa. As autoridades descobriram que escondia um verdadeiro arsenal. O caso encontra-se em julgamento.

Outubro de 2022 – Elisabeth R., de 75 anos, era o cérebro por detrás do plano para um golpe de Estado na Alemanha, levado a cabo por fanáticos Reichsbürger. Queriam destruir todas as centrais elétricas para provocar o caos e criar condições para o desencadeamento de uma guerra civil. Ao mesmo tempo, pretendiam raptar o ministro da saúde, Karl Lauterbach, e reunir-se com Vladimir Putin. Foram apanhados numa armadilha da polícia quando se preparavam para recolher armamento pesado num parque de estacionamento.

Doutrinados para a posse de armas de fogo, de forma a protegerem as fronteiras e se defenderem de um Estado que consideram inimigo, detêm um arsenal que impõe respeito: a polícia revogou a licença de porte de arma a 1050 elementos desde 2016, mas ainda não conseguiu desarmar meio milhar deles. Em abril de 2022, em Boxberg, no estado de Baden-Württemberg, um “cidadão-soberano” abriu fogo sobre a polícia com armas de calibre de guerra. Feriu vários agentes e incendiou uma casa. 

UM PLANO MAQUIAVÉLICO

Os habitantes da pacata vila de Bad Lobenstein, no coração do feudo que a dinastia Reuss governou ao longo de quase 900 anos, nunca sonharam que algo semelhante pudesse ocorrer nas redondezas. Nem que o retiro de caça de Henrique XIII, um palacete branco com muralhas altas, adornado com chifres de veado, estátuas de ursos e javalis e uma torre fortificada, nas margens do rio Saale, fosse o ponto de encontro de um grupo bizarro que pretendia invadir o Parlamento alemão, em Berlim, para eliminar governantes e deputados, de forma a restabelecer uma monarquia na Alemanha, chefiada pela majestade local. Para sua surpresa, foi mesmo isso que aconteceu ali ao longo do último ano. 

Stephen K., professor de 37 anos, não quer revelar o apelido. Com “loucos” não se brinca, diz ao Setenta e Quatro. Ajeita os óculos antes de recordar os estranhos sinais que, agora, entende estarem relacionados com o plano. Ele vive a menos de um quilómetro da herdade cinegética de Reuss e costuma andar de bicicleta nas imediações, junto ao rio. “Viam-se, de vez em quando, uns desconhecidos andarem de um lado para o outro com walkie-talkies e uma vez vi uma mulher sair com uma bandeira imperial, preta, vermelha e branca. Uns vizinhos dizem que viram símbolos misteriosos no brasão de armas dos Reuss e outros dizem ter visto chegar carros com matrículas de outras partes do país”, relata. “Daí a imaginar que se estava ali a preparar um golpe de Estado, vai uma grande diferença.” 

“O objetivo do grupo era eliminar a democracia na Alemanha, recorrendo à violência e a meios militares”, anunciou o procurador federal Peter Frank.

Stephen recupera ainda o escândalo   ocorrido no último verão em Bad Lobenstein. O príncipe Reuss foi convidado para um evento pelo presidente da câmara, um político eleito como independente, mas igualmente suscetível a teorias da conspiração. Quando um repórter local do Ostthüringer Zeitung lhe perguntou porque tinha convidado um reichsbürger para um encontro oficial, o autarca esmurrou-o. Acabou por ser suspenso de funções. 

Por esta altura, já a BKP andava a investigar os golpistas. As campainhas de alarme soaram em consequência do desmantelamento de outra tentativa de golpe com contornos insanos, levado a cabo por cinco pessoas ligadas aos Reichsbürger e ao Querdenker, organização que encheu as ruas alemãs em protesto contra as medidas sanitárias durante a pandemia de covid-19 e os programas de vacinação. Os conspiradores planeavam raptar o ministro da Defesa, Karl Lauterbach, quando  estivesse em direto num programa televisivo, abatendo os guarda-costas com as armas que já tinham garantido e forçando a demissão do governo. Depois, pretendiam atravessar o Mar Báltico com o governante até ao enclave russo de Kaliningrado, de forma a pedir uma audiência no Kremlin com o presidente Vladimir Putin. 

Quem fazia parte do plano do príncipe golpista?

Rüdiger von Pescatore – Era o líder do braço militar do grupo. Coronel aposentado, 69 anos, foi comandante de um pelotão de paraquedistas estacionado em Calw, Estugarda, nos anos 90. Depois decidiu fazer uma ação ao estilo de Tancos: desviou 165 pistolas e espingardas do stock da Alemanha de Leste e apenas 11 reapareceram. Em 1999, foi expulso do exército. Em 2019, publicou uma mensagem enigmática nas redes sociais: “A verdade só virá ao de cima após uma mudança de sistema”. 

Peter Wörner – O braço direito de Pescatore no campo militar e corresponsável pela criação do que chamavam “Novo Exército Alemão”. Wörner serviu na mesma companhia de Pescatore e foi treinado para sobreviver em condições extremas. O Der Spiegel chama-lhe “uma espécie de Rambo alemão”. Até foi tema de uma reportagem da estação televisiva ZDF em 2016, em que apareceu nas montanhas a comer uma ratazana. Durante buscas em sua casa, as autoridades encontraram armas ilegais e um vídeo em que se conjurava um golpe contra o Governo. Terá sido um dos pontos de partida para desmantelar a rede de Reuss. 

Andreas M. – Trabalhava como logística na unidade de forças especiais (KSK), em Calw. Mais burocrata do que operacional, esteve destacado no Afeganistão e até escreveu um livro sobre a experiência: “Podes Morrer Todos Os Dias”. Recusou-se a tomar a vacina contra a Covid-19 e levantou suspeitas por argumentar que “a obrigatoriedade da vacina não era conforme à lei dos Aliados que governam a Alemanha”. Os serviços de espionagem do exército descobriram que era membro do Querdenker e deram-lhe meses de baixa. Em outubro do ano passado, fez uso da sua identificação militar para levar outros membros do grupo às casernas de Calw, de forma a perceberem se tinham condições para albergar as tropas golpistas. 

Birgit Malsack-Winkermann – Juíza no Tribunal de Berlim, 58 anos, doutorada em Direito e ex-deputada, é a figura mais conhecida entre os insubordinados. Os investigadores acreditam que estava a passar informação importante sobre o interior do Parlamento, onde trabalhou entre 2017 e 2021 como deputada do partido de extrema-direita AfD. Ironicamente, Winkermann tinha também a cargo o arbítrio sobre expulsões de elementos extremistas do partido, em que era vista como uma figura moderada. Um facto surpreendente visto ter proferido frases como “os refugiados estão colonizados por bactérias resistentes a antibióticos”, ter culpado as máscaras da morte de uma criança de 13 anos, e de se ter referido ao Grande Reinício, uma teoria da conspiração que versa sobre o propósito de elites judaicas criarem o coronavírus para revigorar o sistema financeiro. A juíza foi vista a jantar com Henrique XIII num restaurante em Berlim, encontro mediado por outra figura da AfD. Há mais dois elementos ligados aos populistas de extrema-direita a serem investigados. 

Maximilian Eder – Antigo coronel das forças especiais, de 63 anos, chegou a estar destacado no Kosovo. Recebeu 50 mil euros de Reuss para equipar o exército golpista mas foi acusado pelos colegas de usurpar o dinheiro. Radicalizou-se durante a pandemia com a adesão ao movimento Querdenker. Nas catastróficas cheias de 2021, falseou um uniforme e foi prestar ajuda voluntária com um grupo de ativistas anti-vacinas, do qual também fez parte o suspeito Peter Wörner. Só causaram confusão e foram multados em 3500 euros. No passado mês de novembro, equipado com farda militar, publicou um vídeo em que antecipava um golpe de Estado até ao dia de Natal. 

Michael Fritsch – Ex-inspetor da polícia de Hannover, 59 anos, causou desconfiança na esquadra quando entregou o seu bilhete de identidade e colocou “Prússia” como local de nascimento. Foi descrito na célula como “o responsável pela segurança, com coração e cabeça”. Fritsch foi um dos suspeitos que treinou tiro nas Montanhas de Oschenberg, perto de Bayreuth. Esteve também envolvido na compra de uma dezena de telefones de satélite, que funcionariam mesmo sem rede de telemóvel. Assinou, como vários outros, um pacto de confidencialidade, cuja rutura dava direito à sentença de morte. 

Alexander Q – É administrador do maior canal de Telegram sobre a teoria da conspiração QAnon, com 131 mil assinantes na Alemanha. É aí que dissemina mentiras como a descoberta dos corpos de 600 crianças durante as cheias de 2021 no oeste da Alemanha que, segundo ele, tinham sido aprisionadas e violadas por membros da elite nacional. Os investigadores acreditam que Q ajudava no recrutamento para a célula.

Acabaram por ser apanhados pela polícia graças à infiltração de um agente secreto nos grupos de Telegram que usavam para comunicar. Foi aí que a polícia também tomou conhecimento das ações da célula encabeçada por Henrique XIII. Seguiram-se meses de escutas telefónicas, monitorização de conversas em chats e vigilância junto aos lares dos suspeitos (a BKP vigia atualmente mais de 900 canais de redes sociais usados pelos Reichsbürger). Numa das interceções, as autoridades apanharam Reuss a exclamar: “Acabou-se a brincadeira. Vamos destruí-los!”. 

O grupo aguardava ansiosamente a chegada do “Dia X”, o momento em que duas dúzias de homens e mulheres afetos à sua causa irromperiam  pelo Bundestag (Parlamento alemão) para sequestrar a democracia. Isso criaria, de acordo com o seu plano, uma agitação social que conduziria à queda do regime, para o qual contribuíram os grupos armados de vigilantes  já recrutados nas regiões da Floresta Negra e da Saxónia, entre outras. Os conspiradores tinham inclusivamente arquitetado um governo provisório, que incluía a juíza da AfD, Birgit Malsack-Winkemann, como ministra da justiça, e uma médica da Baixa Saxónia, que doou 20 mil euros ao grupo, na pasta da “espiritualidade”.  

Os suspeitos não são todos Reichsbürger identificados: alguns dos implicados vêm da cena anti-vacinas ou são mesmo apoiantes do QAnon, movimento inorgânico de teorias  da conspiração criado nos EUA e que hoje tem grande influência na Alemanha. Os seus seguidores acreditam que Donald Trump vai desmascarar cultos satânicos e pedófilos de uma seita oculta formada pela elite do Partido Democrata. 

O psicólogo social Andreas Zick, especialista em radicalização e extremismo na Universidade de Bielefeld, não tem dúvidas de que a extrema-direita alemã tirou partido do vasto espaço crítico criado pelas mais diversas teorias da conspiração, especialmente  as  surgidas durante a pandemia. “A extrema-direita procurou ativamente os protestos da Covid-19, coorganizou-os e motivou-os habilmente para se tornarem mais radicais”, comenta ao Setenta e Quatro. “Ideologicamente, os protestos anti-vacinas foram extremamente apelativos para a estratégia da extrema-direita de ganhar poder na esfera pública. Para esse fim, eles também procuraram ‘alianças com populistas de extrema-direita e indivíduos sensíveis a conspirações.”

Indícios não faltam: em agosto de 2021, um comprovativo de abertura de conta bancária associada à rede de uma seita Reichsbürger conhecida como Reino da Alemanha,  indiciava que Michael Ballweg, líder nacional do Querdenker, era também ele um “cidadão-soberano”. Na teia de Reuss, Maximilian Eder, o suspeito encarregue de equipar o exército golpista, organizou vários protestos contra as medidas de combate à covid-19. E até há um político do partido Die Basis que nasceu a partir da mobilização dos Querdenker. 

A inclusão das várias correntes conspirativas no mesmo plano de ataque ao sistema democrático vem responder às dúvidas de milhares de alemães que assistiram, incrédulos, à tomada das escadas do parlamento em agosto de 2020 por milhares de manifestantes. “Muitos perguntaram, nessa altura, o que estavam a fazer juntos idosas esotéricas, neonazis, libertários de esquerda e ativistas anti-vacinas”, recorda Zick. O psicólogo acredita que a Alemanha sofreu um fenómeno de co-radicalização. “Os radicais de extrema-direita são bem-sucedidos quando tolerados e encontram grupos que partilham parte da ideologia com eles. Apoiantes da AfD, Querdenkers e muitos outros também envolveram diretamente a extrema-direita nos protestos porque esta lhes oferecia força e proteção.

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