terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Portugal | HABITAÇÃO, GOVERNO E UM ESPECTÁCULO DE ILUSIONISMO

O Governo, com pompa e circunstância, anunciou medidas para alegadamente responder ao problema da habitação, sem garantir o acesso à habitação a quem não encontra uma casa que possa pagar. 

AbrilAbril | editorial

A arte do ilusionismo é a arte da percepção. Um jogo de enganos que induz no espectador um resultado impossível de se alcançar. Foi mais ou menos isso que o Governo PS fez na passada semana ao anunciar medidas para a habitação. Procurou iludir quem está desesperado, dando a entender que tem resposta a todos os seus anseios, sem na realidade ter nada concreto para os resolver. 

O pacote de medidas anunciado pelo Governo, intitulado «Mais Habitação», tem servido para muito, sem servir para o propósito para o qual devia servir. Serve para aparentar que o Governo tem a habitação como prioridade, serve para garantir que quem lucra com a especulação continuará a lucrar, serve para vender um suposto confronto com a direita quando na Assembleia da República convergem na recusa à resposta do problema e serve para deixar, no essencial, tudo na mesma.

Medidas que não servem para quem realmente precisa, e:

- introduzem novos benefícios fiscais sobre os rendimentos prediais, com particulares benefícios para grupos económicos e grandes detentores de património imobiliário;

- confirmam que o valor das rendas dos novos contratos continuará a subir, para além de manter o essencial da Lei que o governo de Passos Coelho impôs e que levou os preços das rendas até ao limite; 

- propõem uma medida para enfrentar o aumento das taxas de juro, mas possibilita aos bancos continuarem a agravar o valor das prestações, com a promessa de que parte deles será paga com dinheiros públicos;

- mantém o carácter limitado na construção e promoção de habitação pública.

Fossem estas medidas uma clave musical e seriam a clave da especulação, pois não existe combate à bolha do mercado imobiliário, assumindo que os interesses de quem não tem casa ou está em vias de perdê-la são compatíveis com os interesses de quem vive da inflação das rendas e prestações bancárias.

Foi e é uma opção do Governo continuar a manter benefícios fiscais, iludindo com o fim dos vistos Gold. Foi e é uma opção do Governo manter a lei Cristas, iludindo os impactos nefastos desta lei com o Estado a pagar as rendas. Foi e é uma opção do Governo a criação da possibilidade das instituições financeiras oferecerem crédito à habitação a taxa fixa, iludindo a recusa de tocar nas taxas spread. Foi e é uma opção do Governo apenas alocar fundos do PRR para a construção de habitação, iludindo o facto de não se alocarem mais verbas de forma a responder estruturalmente ao problema. 

Surgiram com isto as vozes da encenação. A direita procurou invocar uma bem ensaiada divergência com o Governo com o «direito à propriedade» e (veja-se!) até invocam a Constituição para encetar o ataque, sem nunca dizer que a especulação está salvaguardada. O Governo fez-lhes o favor.

O Governo, independentemente de uma ou outra medida positiva, terá de fazer uma escolha: continuar a submeter-se aos interesses dos grupos económicos e dos especuladores imobiliários ou proteger os inquilinos dos despejos e das subidas de rendas e aprofundar as medidas que garantam o aumento da oferta pública de habitação.

Imagem: António Cotrim / Agência Lusa

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