Para quem tenha nascido nos anos
de 1970 (sensivelmente entre 1970 e 1980) e tenha, hoje, os seus 54, 50, 45, 40
anos, e seja pai, mãe, encarregado de educação, com casa para pagar ao banco,
ou renda de casa a pagar ao senhorio, uma pergunta se impõe: para onde foram os
três mil milhões de euros despejados na TAP? Para quem, hoje, tenha chegado a
meio da carreira tributária, a meio da carreira profissional (se a tiver), seja
como professor, médico, polícia, oficial de contas, enfermeiro, agente
cultural, profissional do sector terciário, pequeno e médio empresário, outra
pergunta se impõe: por que houve dinheiro para os bancos e para quem trabalha
congelamentos de ordenados e de progressão nas carreiras? Para quem -
desempregado de longa duração, dependente de subsídios do Estado, de redes de
solidariedade social, outra pergunta se impõe: para onde foram os nossos
sonhos? Para quem oiça Galamba e Cavaco uma pergunta se impõe: que país é este?
Portugal é, antes de mais, o país
que, à beira de celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974 e não obstante as
notícias de crescimento económico acima da média europeia previstas pelo BCE,
conta ainda com dois milhões de pobres. Portugal é o país onde, não obstante os
inúmeros e óbvios sinais de progresso que Abril nos deu (SNS, sobretudo) há um
ressentimento geral, uma vez que a sensação que todos temos é a de que, aqui,
empobrecemos a trabalhar. É o país dos recibos-verdes (criação cavaquista), é o
país onde, mesmo com contrato, os salários são manifestamente baixos face ao
custo de vida. País onde um Primeiro-Ministro do PSD convidou à emigração dos
mais jovens em tempo de TROIKA. País onde um outro Primeiro-Ministro, também do
PSD, para ter um cargo chorudo na Europa, entregou o país a essa "má
moeda" - escreveu Cavaco -, chamado Santana Lopes. Portugal, que, com
Salazar, era pouco mais que um país medieval com aviões a passar por cima, é o
lugar onde, depois de uma ponte cair, um Primeiro-Ministro, agora do PS, dos
mais bem preparados da nossa democracia, saiu do cargo porque Portugal não
podia "cair num pântano político". Portugal é o país onde a classe
política em exercício, criada no cavaquismo e no guterrismo, é quase toda filha
das "jotas" partidárias: da JSD à JS, da Juventude Popular à Juventude
Comunista, dos grupescos da IL aos arremedos de políticos que vêm do Chega.
Para os portugueses que não são filiados em partidos, a impressão que dá,
ancorada em factos, é que, neste país, só quem tiver o cartão do PS ou do PSD,
pode almejar a viver com alguma qualidade de vida.
Neste sentido, Portugal é ainda
esse país de Rafael Bordalo Pinheiro onde todos - empresários, políticos,
autarcas - mamam as tetas da "porca da política". Por estes e outros
factos incontornáveis é que as palavras de Cavaco Silva são uma óbvia
manipulação da verdade histórica, na medida em que Cavaco Silva, o político que
mais tempo dirigiu o país depois de Salazar, é directamente responsável pela
fragilização do Estado. Defensor da livre iniciativa, fez, porém, entrar
interesses privados em sectores estratégicos da economia, com impacto nas
políticas de emprego que à minha geração foram oferecidas. Dos salários baixos,
em nome do perpétuo combate à inflação, à precariedade laboral, foi com Cavaco
Silva que a minha "geração rasca" (disse um iluminado) cresceu nas
escolas e nas universidades tendo o deus-dinheiro como valor absoluto. Muitos
dos políticos actuais são filhos da cábula, da praxe e da estupidez
institucionalizada na educação alienante que (de)forma os jovens portugueses há
décadas, incapazes de se projectarem num Portugal mais justo e digno, porque
roubados na igualdade de oportunidades. Quem é rico em Portugal, vive; quem é
pobre ou da classe média, paga impostos e mata-se num quotidiano sem energia
vital. Assim, o cavaquismo consolidou, na democracia, a existência comezinha de
se ser funcionário público com ordenado baixo, mas certinho.
O PS, assombrado por Cavaco,
repetiu esse liberalismo à portuguesa, sem nunca combater as oligarquias
instaladas. Com o cavaquismo regressaram os tiques de autoritarismo
salazarista: quem se esqueceu da célebre carga policial na Ponte 25 de Abril?
Quem não se lembra das cargas sobre os estudantes na 5 de Outubro? País feito à
imagem e semelhança do homem de Boliqueime, Portugal é hoje, como ontem, o país
da protecção dos interesses de classe: país de serventuários dos partidos e das
empresas e das famílias ricas. "Nunca me engano e raramente tenho
dúvidas", disse Cavaco.
Para a minha geração, Portugal é
um país onde é impossível viver. Saúde, habitação, educação: tudo caro,
inacessível para os nossos rendimentos. Com a mais longa ditadura da Europa,
Portugal é um país, hoje ainda, semi-analfabeto, inculto, pobre. Vítimas, na
verdade, da nossa cegueira, do nosso atavismo, aceitamos que a nossa
democracia, esse regime que Cavaco deplora, seja hoje o regime da raiva e do
ódio. Ora, o PS, bem como toda a Esquerda, têm de se unir contra o ódio e a
raiva vindas de um político para quem Os Lusíadas tinham quatro cantos.
Montenegro, de resto, não diria coisa diferente - e que ideias de facto tem o
líder do PSD para não trair a minha geração e os nossos filhos - os da classe
média, os filhos dos pobres?
*Professor, poeta e crítico
literário