A jornalista e antiga presidente
do Sindicato de Jornalistas garante que a precariedade e a falta de recursos
das redações são uma ameaça ao jornalismo livre
João Biscaia | Setenta e Quatro | entrevista
Recusa ser uma figura pública e considera prejudicial que os jornalistas se queiram fazer de vedetas. Mas a meio de uma conversa longa no primeiro andar do Cinema São Jorge, em Lisboa e onde acontecerá o 5.º Congresso dos Jornalistas este fim de semana, um homem aproxima-se da mesa com um dedo levantado e, ignorando se interrompe alguma coisa, pergunta: “é a jornalista Diana Andringa?”.
É. Desde 1968, quando começou a
trabalhar na revista Vida Mundial. Por lá esteve pouco tempo, saindo numa
demissão coletiva, e foi para a publicidade. Por atos subversivos, como ter
papéis em casa e levar roupas a prisioneiros angolanos nas prisões do fascismo,
acabou ela mesma
Depois de sair da prisão,
regressou ao jornalismo. Em 1978 foi para a RTP, onde o novo regime
democrático não a impediu de ser censurada por falar de “coisas desagradáveis”
(a Guerra Colonial) na sua série documental “Geração
Em entrevista ao Setenta e Quatro, relembrando tempos em que os tipógrafos também encarnavam o papel de editores (“Se o senhor Severo me dizia que não entendia, eu ia reescrever.”), Diana Andringa faz um diagnóstico pouco animador do atual estado do jornalismo português. Os jornalistas vivem precários e com tanto “medo que não podem ser livres”. Denuncia os “grupos sem rosto que compram jornais” e a quem interessa mais a influência política que uma boa reportagem. E assume que “tem de haver” um plano público de financiamento de jornalismo, para que este não fique refém das condições que o colocaram em crise.
Disse certa vez que a "precariedade é uma questão de liberdade de imprensa". A Diana foi censurada pelo Estado Novo e esteve nas prisões do fascismo, ainda que não pelo seu trabalho como jornalista. Graças à precariedade, e ainda que não haja censura e fascismo, temos hoje uma imprensa pouco livre?
Quando estava no sindicato de
jornalistas tinha um "leitmotiv": a precariedade no trabalho é uma
ameaça aos direitos humanos. No jornalismo, acaba por ser mais que isso. É uma
ameaça às liberdades de imprensa e de expressão. Um jornalista precário está
indefeso. Uma das grandes conquistas do jornalismo português é a cláusula de
consciência. É uma defesa pouco usada
Neste momento, a imprensa finge ser muito livre, mas não o é. Há a precariedade, as redações extremamente diminuídas, a rapidez exigida ao jornalista. Um jornalista não é inteiramente livre se não tiver tempo para a reflexão, porque o jornalismo não se faz carregando num botão. Somos seres humanos e temos de pensar sobre o trabalho que fazemos, levantar dúvidas. Precisamos de camaradas na redação com quem conversar.
Na RTP, o Jacinto Godinho e eu éramos chamados de "alentejanos", como naquelas piadas reacionárias, porque passávamos horas encostados às paredes a discutir o nosso trabalho. É isto que faz uma redação. É assim que se pratica a liberdade de imprensa.
As redações precisam de gente, para que haja crítica, conversa, e os trabalhos precisam de tempo de maturação. Quando te dizem que tens dez minutos para escrever dez mil caracteres, não és livre. Estas velocidades infernais não servem para nada.
Por outro lado, os jornalistas tornaram-se passadores de recados. Desconfiam dos políticos, mas publicam os recados todos que a magistratura e a polícia querem fazer passar sobre os políticos. Isto faz-me impressão, talvez por ter sido presa política. A meu ver, isto não é liberdade. Liberdade é poder interrogar toda a gente. Dizer ao magistrado que afirma que o primeiro-ministro ou o secretário de Estado é corrupto: "E o senhor? Lembra-se daquela vez que fez isto e aquilo?".
Há autocensura, constrangimento...
Os jornalistas aceitam coisas que não deveriam, em vez de as questionar. Têm essa obrigação, mas não o fazem. Têm tanto medo que não podem ser livres. Um jornalista que hesita em publicar algo vê-se ser ultrapassado pelo que não teve nenhum problema em o fazer. Depois, saem notícias incorretas, falsas ou sem contraditório. Ouvir o outro lado da história é uma das bases do jornalismo e vai sendo esquecida. Ouvimos sempre o polícia, ninguém ouve o ladrão. Talvez conviesse saber porque é que o ladrão decidiu roubar.
Nesse sentido, a nossa imprensa é pouco livre. O resultado é visível: metemos os jornais ao lado uns dos outros e parece que são iguais. Havia um tempo em que eu dizia que a Lusa escrevia os jornais todos e os editores inventavam títulos diferentes. As notícias são as mesmas. É comum fazer zapping na televisão à hora do noticiário e ouvir a mesma notícia repetida em todos os canais. Isto não me parece uma imprensa muito livre. São agendas pré-determinadas por questões de marketing, de política.
Sendo uma pessoa condescendente, acho que os disparates que oiço na televisão se devem mais à ignorância de quem os diz do que por agenda política, mas acredito que, neste momento, as agendas políticas exercem uma pressão mais forte sobre os jornalistas que há uns anos. Atenção: eu defendo que os jornalistas têm todo o direito a uma opinião, a uma posição, a militar num partido político. Mas quando fazem jornalismo são jornalistas, e não se devem deixar controlar pela agenda política que estiver na moda naquele momento.
Criam-se narrativas inquestionáveis.
A infeliz invasão da Ucrânia não faz de [Volodymir] Zelensky um democrata. Os massacres de inocentes feitos pelo Hamas não justificam um genocídio. Há que estudar a história e o contexto em que as coisas acontecem. Mas isso foi destruído no jornalismo. No meu tempo, ensinava-se que uma notícia deveria trazer o seu contexto. Hoje, isso não existe. O resultado: cria-se uma insegurança imensa na população.
Apercebi-me disso durante a guerra nos Balcãs [1991-2001], quando uma amiga, psicóloga no Hospital Júlio de Matos, me interpelou: "tens ideia do que os teus meninos andam a fazer aos meus meninos?". Os "meus meninos" eram os jornalistas e os dela eram os doentes. Disse-me que muita gente aparecia nas consultas com queixas, com sinais de psicoses, por verem as notícias de uma guerra tão próxima e não perceberem por que razão aquelas pessoas se estavam a matar. Não havia qualquer contexto para todas as aquelas imagens de extrema violência, de mortos e estropiados.
Nós, jornalistas, não nos apercebemos disto: se não tens contexto, tudo passa a ser uma ameaça. Remeteram-se as explicações para uns senhores que nasceram agora, não sei de onde, que não sabem nada mas são chamados de especialistas e analistas. O seu papel é manter e alimentar um pensamento único.
Parece que o jornalismo passou a ser mais um produto que se consome e cuja finalidade é garantir lucro. Isso promove formas de censura?
É difícil responder. O propósito de um jornal, para quem o detinha, sempre foi ser vendido, mas os patrões da indústria, antigamente, interessavam-se pelo jornalismo. Eram pessoas sérias que prezavam um trabalho bem feito. Depois, ao longo do tempo, o produto jornalístico deixou de interessar. Interessam as audiências, o retorno da publicidade e a influência política. Não sejamos inocentes: ninguém compra um jornal que não dá lucro por outra razão que não o poder político que lhe confere.
Neste momento, aos grupos sem rosto que compram jornais interessa mais o negócio que o jornalismo. Ora, por outro lado, e ao contrário do que se tenta espalhar, os meios públicos são mais livres que os privados. Em vários aspetos, incluindo na cabeça do jornalista. Pode parecer estranho, mas o jornalista pensa: "aqui trabalho para o povo", não trabalha para acionistas.
Quando apareceram as televisões privadas, eu era presidente do Sindicato [de Jornalistas]. Faziam-se lá coisas que nos pareciam verdadeiramente anti-deontológicas. Chegámos [nós, os sindicalistas] a ser maltratados e quase expulsos de redações. Uma antiga colega da RTP fazia numa televisão privada coisas que eu sei que se recusaria a fazer — e com razão — na estação pública. "Mas aqui o dinheiro é do patrão", disse-me ela. Ora, o patrão tem os seus interesses. E o jornalista também. Nem que seja o interesse em continuar a ter trabalho, e sem democracia não há jornalismo.
Há uns dias, uma camarada
jornalista propôs, corajosamente, que se revertessem para o Estado alguns
jornais que estão
Quando o Estado apoiou a comunicação social, durante a pandemia, houve quem falasse em "sovietização". Deve haver um plano de financiamento público do jornalismo?
Tem de haver. Não creio que só porque alguém recebe dinheiro público deve, ou irá, ser obediente a quem está no poder. Deverá ser obediente ao povo, essa palavra tão pouco usada. O jornalista, nessa responsabilidade, garante a sua liberdade, e mais capacidade de intervenção.
Tive problemas de censura na RTP, sem dúvida. Tive de apresentar queixa ao sindicato porque me censuraram uma série documental chamada Geração de 60, por causa de um episódio sobre a Guerra Colonial."É por causa da tua mania de falar sobre coisas desagradáveis; porque é que que não falas dos Beatles?", disse-me o meu diretor. Demorou dois anos, mas o episódio foi para o ar.
Uma vez, noticiei uma
manifestação contra o governo
Escrever que os trabalhadores "pedem" é uma escolha ideológica. E ter uma opinião contrária vai contra o fabrico do consenso que afirma que os ricos é que têm razão e por isso é que são ricos. Há jornalistas muito cúmplices dessa construção de uma narrativa consensual, muitas vezes sem a consciência disso.
Há uma degradação do ofício jornalístico, que acaba por se alimentar a si próprio. O jornalismo está descredibilizado?
Sim. A própria ideia do que é um jornalista vem-se degradando há muito tempo. Desde que dou aulas que pergunto, no início do ano letivo, quem quer ir para a imprensa, para a rádio e para a televisão. Muitos queriam ir para a televisão. E eu juro que não é perseguição minha, mas eram os que tinham piores resultados nas provas. Julgavam que a televisão é uma coisa que se faz com um bom palminho de cara e uma voz decente. Mas a televisão é muito mais trabalhosa que a imprensa, porque é, simultaneamente, texto, imagem e som.
Criou-se a ideia do jornalista como vedeta. Está errado. Somos um veículo que passa informação. Somos aquelas pessoas felizes a quem pagam para ouvir e contar histórias. Temos muita sorte. Não somos assim tão importantes, mas os jornalistas têm vindo a convencer-se que sim. E então já está a ver o jornalismo todo deturpado. Começa a degenerescência, deixa de haver cuidado no que se escreve e se faz.
Eu sei que muita da falta de cuidado, de erros evitáveis, vem da precariedade, das pobres condições de trabalho. Uma das coisas mais importantes numa redação é a memória. Ora, a uma certa altura as redações concordaram que os mais velhos fossem afastados: porque ganhavam um pouco mais ou tapavam a progressão. Quantas vezes não tive eu de tirar dúvidas com os jornalistas mais velhos, porque não entendia um nome, uma palavra, uma referência? Liam os nossos trabalhos e avisavam-nos das calinadas que escrevíamos.
Muita coisa se perdeu e o jornalismo piorou. Na [revista] Vida Mundial, os tipógrafos eram o nosso primeiro público. Diziam-me: "Ó, Andringa, não percebo isto que escreveste aqui". E se o senhor Severo me dizia que não entendia, eu ia reescrever. Hoje, já não tens o senhor Severo. Já não tens a datilógrafa que te diz: "isto aqui está um bocado confuso". Escreves e publicas imediatamente. Perdeu-se tempo, perderam-se modos e espaços de reflexão, e com o desaparecimento da memória nas redações os jovens jornalistas não se aperceberam disto.
Mas há cursos superiores que ensinam o jornalismo.
Nunca achei que deveria haver licenciaturas de jornalismo. As pessoas deveriam formar-se em Direito, em História, em Antropologia, em Medicina, e depois num mestrado aprenderiam as técnicas do jornalismo. Fariam jornalismo sabendo alguma coisa. Em vez disso, os jornalistas de hoje acham que sabem tudo sobre tudo — principalmente os de televisão — quando são tremendamente ignorantes sobre uma série de coisas. Isso está a minar a nossa democracia.
Consciente ou inconscientemente, os jornalistas de hoje promovem um tipo de informação que manipula o público. Os noticiários com ecrãs divididos em quadrados, as imagens repetidas, os diversos oráculos com frases sempre a passar têm efeitos psicológicos nas pessoas. Promovem a desconcentração, porque não há tempo para refletir. O telespectador é confrontado com tanta informação que fica desarmado.
O analfabetismo funcional no nosso país é, infelizmente, muito alto. Há uma população envelhecida que não tem literacia mediática, especialmente para o digital. Tudo isto é perigoso. Estamos a fomentar o medo e a imposição de um regime de força, de um líder forte que traga ordem ao caos. Ora, um regime de força, sabemo-lo bem, rebentará com aquilo que é a nossa base, a liberdade de imprensa. A atitude dos jornalistas tem algo de suicida.
Durante a pandemia, falou sobre a "ética da responsabilidade" sobre as palavras usadas. Um estudo da Universidade do Minho concluiu que os jornalistas "orientaram cidadãos para o confinamento". Por um lado, isso promoveu boas práticas de saúde pública num momento crítico. Por outro, demonstra o poder, e a disponibilidade, que o jornalismo tem em fabricar consentimento, em linha com o poder político.
Ao retirar o contexto da transmissão de uma notícia, o mundo vai se tornando incompreensível, e o que é incompreensível cria pânico. Hoje vivemos todos mais ou menos assustados. Estamos a assistir a isso com a narrativa mediática criada à volta do Serviço Nacional de Saúde. Eu não quero que as pessoas fiquem contentes quando as coisas correm mal, mas vamos lá ter calma.
A história das ativistas despidas pela polícia durante a revista na esquadra depressa se deixou cair. Nem no meu tempo era comum a PIDE fazer isso, mas os jornalistas pareceram não se indignar muito. No final, toda a situação ficou a parecer uma coisa normal, e que os polícias têm direito a desnudar as pessoas, porque, coitadinhos, ganham pouco.
Aqui há tempos, a convite do Sindicato de Jornalistas, fui dar uma formação a magistrados. Disse-lhes que ainda estou à espera que me mostrem um jornalista que tenha escalado as paredes da Polícia Judiciária, entrado pela janela e roubado um processo. Porque a violação do segredo de justiça ou é feita assim ou são os magistrados, ou os seus funcionários, a dar as informações aos jornais para que se destruam as pessoas.
Os jornalistas não podem aceitar ser passa-recados. Como é que se noticia que um secretário de Estado tem haxixe em casa? É manipulação da opinião pública. Como é que o jornalista soube que estava lá esse haxixe? Não sabemos, mas duvido que tenha sido a mulher-a-dias. Convém citarem-se as fontes. De repente, desapareceu essa necessidade. Aceitou-se que há fontes que estão acima da luta de classes: se a polícia diz, se o magistrado diz, se Carlos Alexandre diz, então tem de ser verdade.
Como jornalistas, temos de pensar nas nossas condições de trabalho, temos de nos preocupar em exigir um salário decente, mas também temos de pensar, acima de tudo, naquilo que fazemos aos outros. Isso faz parte da ética da profissão. Deixou de se discutir o que é ético. Se calhar acham que são discussões de velhos, mas os jornalistas têm o dever de garantir a dignidade das pessoas.
Ninguém vai para o jornalismo porque quer ser rico, mas porque acredita que informar é bom para o povo e importante para a democracia, porque se vai denunciar o que está errado. Mas a formação ética é negligenciada. Há que respeitar o outro, ou acabamos desrespeitados. É aí que começa a descredibilização da profissão, e a culpa não é do estagiário. É do editor, é do diretor. Andamos a disparar nos nossos próprios pés e podemos estar a abrir caminho para o fim da democracia.
Há um partido político em cujos eventos tem havido ameaças e agressões a jornalistas. A última foi esta semana. Mesmo assim, o seu líder é das personalidades com mais tempo de antena nos espaços noticiosos (na televisão). Qual é a responsabilidade dos jornalistas perante uma força política anti-democrática que dá ótimas manchetes?
No momento em que um jornalista é agredido, todos os seus camaradas se devem retirar de imediato e não há notícia sobre isso. Houve um tempo em que isto seria evidente. Quando esteve cá um presidente norte-americano, a RTP foi fazer reportagem. Deixaram entrar primeiro os jornalistas norte-americanos. Eu protestei e imediatamente todos os fotojornalistas portugueses baixaram as câmaras e disseram que não faziam imagem.
Noutra vez, houve uma conferência de imprensa de Henry Kissinger ali no aeroporto. Fui escalada para lhe fazer duas ou três perguntas. Faço a primeira pergunta e Kissinger ignora-me e passa a palavra a um jornalista norte-americano, que diz: "a minha pergunta é a da jornalista portuguesa a que o senhor não respondeu". Ele passa para um segundo jornalista norte-americano, e leva a mesma resposta. Passa para um terceiro e ele responde-lhe o mesmo. Isto era o que se fazia quando ainda nos chamávamos camaradas uns aos outros.
A situação atual no jornalismo português não se resolve com atos simbólicos. Temos de fazer greves, para ver se as pessoas percebem que precisam do jornalismo. Também é essencial, e alguns jornalistas já o fazem, colocar estes acontecimentos no contexto histórico. A extrema-direita sobe em todo o lado. Temos de tornar evidente aquilo que ela faz — e fez — nos vários países onde governou. Mas alguns jornalistas parecem ter ficado fascinados com a força das massas e das pessoas que falam alto.
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